Há russos que me querem matar porque eu, dono de uma funerária, digo piadas
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Há russos que me querem matar porque eu, dono de uma funerária, digo piadas

DIÁRIOS DA GUERRA JUlHO 2022

DEPOIMENTO
Alexandr Kuchkov
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira e Teresa Abecasis, em Zaporizhzhia)

Há dias recebi uma mensagem de um russo, já recebi várias de outros russos mas esta era curiosa, ele escreveu “falas muito, vamos rastrear o teu endereço de internet e descobrir onde moras, a seguir vamos aí matar-te na tua casa”, sabem o que eu fiz?, respondi-lhe “para quê esse trabalho todo, esta é a minha morada, pega, anda”, dei-lhe o meu endereço e disse-lhe para vir, espero-te, isto não se trata sequer de coragem física, trata-se de liberdade, não tenho nada que temer porque sou livre, digo piadas e depois?, chamo-me Alexandr Kuchkov, tenho 44 anos e o meu trabalho é relacionado com a organização e a realização de funerais, cremação e tudo o que tem que ver com isso, com o serviço fúnebre, sou o dono de uma funerária em Zaporizhzhia e antes de 24 de fevereiro filmei um vídeo sobre o que seria a guerra no século XXI, disse que a guerra era impossível, que não podia ser, que a humanidade tinha evoluído de determinada maneira que se tornou impossível ter destas coisas, defendi que esta guerra não fazia sentido mas alguém achou que fazia e está a matar aqui e agora, nesse vídeo eu dizia que toda gente que quer guerra devia trabalhar numa funerária para ver a dor de mães e pais que choram os filhos que perderam, eu faço piadas mas sei o que é dor, no início da guerra era tão difícil acabar um funeral, estávamos no meio de um enterro e entretanto começavam os bombardeamentos e as pessoas fugiam, tinham de o fazer, a cerimónia ou era interrompida ou nem sequer acabava, fizemos cremações em que as pessoas nunca mais vieram reclamar as cinzas, as pessoas fugiram para outras cidades e outros países, tenho ali estantes cheias de urnas com cinzas de mortos por reclamar, tivemos pessoas que nos deixavam cadáveres e diziam “confiamos em vocês, façam o enterro” mas não ficavam para o funeral, iam fugir, aproveitava-se qualquer oportunidade que surgisse para se sair de Zaporizhzhia.

"Trabalhem numa funerária. Vejam a dor." O apelo que Alexandr Kuchkov partilhou nas redes sociais um mês antes da guerra

Foi tão perigoso no início, ninguém entendia exatamente o que se estava a passar e se iria ser pior ou muito pior, bom nunca era, tivemos mortos a serem enterrados enquanto as suas famílias estavam a caminho de outros sítios, são cadáveres-órfãos, entendem?, tive de fazer o enterro de uma família inteira que morreu num ataque de míssil a uma zona residencial, quatro pessoas num apartamento que morreram todas, uma tia deles veio pedir-me “faz o funeral”, fiz, eu tinha amigos na Rússia e mandava-lhes fotos, contava-lhes isto e sabem o que é que eles me diziam?, “a guerra acaba em três dias, é preciso limpar-vos dos nazis”, nazis?, eu sou judeu, mas quais nazis?, como é que um judeu pode ser nazi?, eu tenho dupla nacionalidade, sou ucraniano e israelita, a minha filha está em Israel e serve no exército israelita, mas quais nazis?, mas a partir do final de março a situação começou a acalmar, não que tenha ficado boa mas pelo menos passou a ser mais previsível, os russos no início estavam a aproximar-se muito do centro de Zaporizhzhia mas entretanto as nossas tropas travaram o avanço deles e eu decidi ficar, se os russos viessem nunca na vida ficaria porque não aceito viver sob o domínio deles, eu tenho um filho de dois anos e uma mãe idosa de 83, tenho de protegê-los, a minha mãe faz vídeos comigo para o TikTok, o vídeo mais visto tem oito milhões, tenho outros com dois milhões, três, quatro, sete milhões, há um vídeo que as pessoas acham sempre muito engraçado, a minha mãe está diante de um caixão em que está lá supostamente o cadáver de um soldado russo sem cabeça e eu pergunto-lhe “onde está a cabeça dele, mãe?” e ela responde-me “já era uma pessoa sem cabeça quando decidiu vir para cá matar civis”, as pessoas riem-se sempre muito deste, a minha mãe é muita engraçada, comecei a fazer estes vídeos quando a situação em Zaporizhzhia estabilizou - o humor é uma forma de catarse mas também de estímulo do nosso moral, funciona, motiva-nos, é até uma outra forma de união entre nós ucranianos mas tem custos, comecei a receber ódio e ameaças, umas bem estúpidas, “o Kadyrov já está a caminho de ti pessoalmente”, “o Putin vai pessoalmente matar-te”, “os serviços secretos russos já te estão a perseguir”, coisas assim, por isso quando aquele russo me disse que iria descobrir o meu endereço de internet, o meu IP, queria lá saber, pega lá a minha morada, há um vídeo que gravei a 17 de julho que se aplica a isto, “não fiquem calados, a vida é demasiado curta para isso, mas também não digam demasiada merda porque assim a vida pode ficar ainda mais curta”, ahahahahahah.

Antes da guerra, Alexandr Kuchkov construiu um bunker debaixo da funerária. Começou por ser uma brincadeira, mas acabou por servir de refúgio. Foto: Teresa Abecasis/CNN 

 

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