O telefone de António Santiago Martins não pára de tocar. “Quantas querem?” Num caderno, anota números quase indecifráveis. São 30 refeições para o posto do comando central, em Travanca, 120 para um dos grupos de bombeiros no terreno, faltam ainda chegar 41, umas quantas para os militares que vieram comer aqui e se sentaram, por alguns minutos apenas, nas mesas colocadas em fila no centro do salão nobre da Junta de Freguesia de Pinheiro da Bemposta. “Ainda demoras?”, pergunta a um. “Temos 20 já a sair, não te preocupes”, responde a outro. Aqui funciona o centro de distribuição “para todos os elementos que estão no terreno, ou no teatro de operações, em linguagem técnica”, explica Santiago Martins, secretário da direção da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Oliveira de Azeméis, que, desde domingo, é um dos responsáveis por garantir a alimentação dos bombeiros em ação no concelho. Recebem as refeições ou os kits de alimentação, já prontos, vindos do quartel, em Oliveira de Azeméis, e levam-nos onde é preciso, por montes e vales, estradas alcatroadas e caminhos empedrados. “É preciso saber por onde ir para evitar as chamas, tem de ser tudo feito em segurança e com rapidez.”
“Hoje estamos a falar de 300 refeições, mas iniciámos com 600 e tal no primeiro dia. Ou seja: 600 e tal ao meio-dia, 600 e tal ao jantar, 600 reforços ao pequeno-almoço, 600 reforços à uma da manhã e 600 reforços às 16:00. Isto em termos de logística é qualquer coisa de aterrador, mas que nós levámos, não digo com facilidade, mas com uma enorme entrega”, explica, visivelmente orgulhoso. Numa primeira fase, procuraram restaurantes que lhes entregassem as refeições prontas, mediante um determinado valor. Depois, ao perceberem que a situação se iria prolongar, decidiram mudar de estratégia: “Passámos a ser nós, associação humanitária, a confecionar as refeições, com a ajuda de muitos voluntários”, explica. A estas juntam-se todas as refeições oferecidas por restaurantes, associações e até particulares, sobretudo nos dias de maior intensidade do fogo. “Contámos com a colaboração de muitas pessoas e estamos eternamente gratos a essas pessoas que nos ajudaram a levar a cabo esta tarefa que é muito difícil. Este é o segundo grande incêndio que me cai nas mãos e nunca vi tanta solidariedade.”
Esta quinta-feira o almoço foi “massinha à lavrador”, com carne e legumes. “Está bem boa”, comenta um dos militares. No outro dia foi frango, logo à noite será febras com arroz. As refeições chegam em marmitas de alumínio, tão quentes que queimam os dedos dos voluntários que as distribuem por caixas para os diferentes destinos. “Fazemos questão de lhes dar as refeições ainda quentes, é um consolo para quem está a trabalhar tanto. E só nos podemos regozijar porque o feedback que nos têm dado é: nós já estivemos em muitos incêndios mas dificilmente seríamos tão bem tratados noutro sítio.” A comida é tão boa que até uma raposa apareceu por ali a rondar e tornou-se mais uma cliente para o jantar, brincam. “Só ela é que vai ter saudades destes dias.”
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"Trabalhámos de noite e de dia mas fome ninguém passou"
Quem os vê ali hoje, o António, a Isabel, a Fátima, o Constantino, e os outros, todos sorrisos e boa disposição, a oferecerem cafés e barritas energéticas, não imagina o sufoco que passaram nos últimos dias. “Têm sido dias com muito trabalho, mesmo muito trabalho. Dormi seis horas desde domingo. Hoje está muito mais calmo. Queria ver se ia dormir a casa”, diz António Santiago, com a voz embargada. Ainda há dois dias praticamente não tinham mãos a medir. O concelho esteve a arder por todo o lado e os bombeiros mal tinham tempo de parar para comer quanto mais para descansar. “Tive homens a dormir no relvado e no passeio aqui à frente. Estavam todos exaustos. É um trabalho muito difícil e muito exigente. Fazemos o que podemos por eles. Trabalhámos de noite e de dia mas fome ninguém passou.”
António Justino, comandante da corporação de Oliveira de Azeméis, confirma. "Comida, água, descanso, higiene, medicamentos, todo o suporte logístico é da responsabilidade da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Oliveira de Azeméis." A ele cabe-lhe organizar o combate aos incêndios a partir do seu “gabinete” num camião da proteção civil no posto de comando de Palmaz, onde tem um mapa do território e todo o sistema de telecomunicações. O posto foi instalado num terreno cedido por um privado, na rua principal, onde estão estacionados vários veículos e há ainda uma tenda de apoio logístico, que é também local de repouso e alimentação dos operacionais. Mesmo ao lado, o centro de dia abriu-lhes as portas e disponibilizou as instalações sanitárias e quartos para “umas dormidas rápidas”. “Não é fácil, mas temos que descansar para manter a capacidade de combate”, justifica. O fogo não sabe as horas nem recolhe à noite para descansar. “Somos nós que temos de nos organizar. Vamos descansando à vez e fazendo a rendição a cada 24 horas.”
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“Querem ajudar? Façam-se sócios dos bombeiros"
Paletes e paletes de água. Sumos. Leite. Bolachas de água e sal. Bolachas de chocolate. Bolachas maria. Maçãs. Pêras. Bananas. Barritas. Bebidas energéticas. Pão de leite. Pão fatiado. Salsichas. Atum. São caixas e caixas espalhadas pelo quartel-sede dos Bombeiros Voluntários de Oliveira de Azeméis. “Já tivemos muito mais, estava isto tudo cheio, teve que ser a Câmara a disponibilizar um espaço porque já não cabia tudo aqui”, conta José Rodrigues, membro da direção. Desde que colocaram um anúncio nas redes sociais a pedir a ajuda da população não pararam de chegar donativos. “A sociedade civil tem sido impecável, mais aqui de Oliveira de Azeméis e dos arredores, também temos tido alguns vêm de fora e até de longe para vir entregar-nos coisas.” A resposta da população foi tal que, a determinado momento, os bombeiros tiveram que avisar que já não precisavam de mais coisas. “Mas não recusamos nada. Se as pessoas nos entregam, nós distribuímos. Estamos a ver quem é que ainda precisa e o que não fizer falta entregamos a associações e a lares do concelho, não se vai desperdiçar nada, isso podemos garantir.”
Os bombeiros têm este quartel operacional, umas instalações relativamente recentes onde estão as viaturas e o centro de logística, e têm ainda o quartel antigo, localizado no centro de Oliveira de Azeméis, que tem colchões e balneários, onde costumam pernoitar os peregrinos e onde os bombeiros podem descansar “com o melhor conforto possível”. “É mesmo só descansar, porque a cabeça está na parte operacional, nos fogos, eles quase não conseguem dormir.” Nestes dias, têm ainda um outro local “onde está pessoal a confecionar as refeições que depois vão ser distribuídas no terreno, que é para isso que cá estamos, para garantir que corra tudo bem, que nada falhe.” E continuam com o seu trabalho habitual, porque “a vida segue”, há acidentes, transportes, emergências médicas e tudo o resto que costumam fazer no apoio à população. “Trabalhamos sempre 24 horas por dia.”
É por tudo isto que José Rodrigues deixa o apelo: “Querem ajudar? Façam-se sócios das associações humanitárias dos bombeiros, nós precisamos, é uma forma de nós nos sentirmos legitimados e apoiados. Não se podem lembrar dos bombeiros só nestas alturas, nós estamos aqui o ano inteiro.”
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“Mesmo com os riscos, adoro ser bombeiro"
“O nosso foco tem de ser dar-lhes o máximo possível. Tudo aquilo que nós possamos fazer é pouco em relação àquilo que eles estão a fazer por nós”, diz José sobre os bombeiros que esta semana estiveram na região. “Aquela gente merece e precisa que nós estejamos com eles. As empresas têm sido excepcionais em termos de apoio, os particulares também, mas o agradecimento maior vai para os nossos homens - nossos e de todo o país - a salvar vidas e bens, e infelizmente a dar a própria vida em alguns casos.”
Marco Barbosa, de 34 anos, sentiu na pele a perigosidade destes incêndios. Bombeiro profissional de Oliveira de Azeméis há três anos, estava no combate ao fogo em Macinhata da Seixa, no alto do monte, quando a situação se tornou “caótica, muito caótica, muito difícil, muito mesmo”: “O vento de repente virou e apanhou-nos a todos, só não apanhou o motorista porque estava dentro da viatura. Queimámo-nos quatro, eu e o meu chefe, que fomos para o hospital da Feira, um primo meu que foi para o hospital de Gaia e a namorada que foi para o São João do Porto.” Marco ficou lesionado “na mão, na orelha, um bocadinho na nuca também, mas nada de grave”, garante, mostrando a mão enfaixada e desvalorizando os ferimentos. Os colegas também estão a recuperar bem, diz, confiante. “Mesmo com os riscos, adoro ser bombeiro.” Não sabe explicar. “É um gosto que se tem, só isso. O mais difícil são os incêndios, tanto no mato como nas casas ou nas fábricas, porque é das poucas coisas que nos bota em risco.” Mas, na verdade, é para isso que está aqui, não é? Impedido de continuar na frente de fogo, Marco continuar a vir para o quartel ajudar no que pode. “Não posso ficar em casa.”
Lurdes também não conseguiu ficar em casa: “Vi a coluna de fogo e disse ao meu marido ‘vamos ver o que se passa’. Vim para ver o que se passava no primeiro dia e só saí daqui às 3 da manhã”, conta. Quem a conhece não se surpreende. Lourdes trabalhou durante 32 anos no setor de telecomunicações dos Bombeiros de Oliveira de Azeméis. Está reformada há um ano mas não tem feitio para ficar parada. “Quando ouço uma sirene eu também sou voluntária. Há lá coisa melhor do que ser voluntária?" Nestes dias, tem sido a cozinheira da corporação, preparando as refeições de todos os que comem no quartel. São já quase 15:00 quando, depois de enviados todos os almoços para o terreno, Lurdes traz um tacho enorme e fumegante para cima da mesa com uma massada de carne.
Enquanto uns almoçam, um outro grupo já está a preparar as sandes para o lanche dos operacionais. Fatias de pão, queijo, fiambre, uma peça de fruta, sumos. “Aqui não se pára”, comenta José Rodrigues. “Isto hoje parece que está mais calmo mas tivemos dias muitos complicados e ainda é preciso ficar no terreno porque ainda há muitos pontos quentes e há sempre uns reacendimentos. Temos que continuar vigilantes." Para a população, o pior já passou. Mas os bombeiros ainda têm trabalho pela frente: "Isto ainda não acabou."