Da porta de casa de Inês Ferreira ao eucaliptal queimado são meia dúzia de passos, não mais. É sair de casa, atravessar a estrada e “foi aqui, foi aqui que o fogo parou”. Tivesse o fogo atravessado a rua e não estávamos agora aqui a falar. Tivesse o fogo dado mais dois passos e sabe-se lá. Inês Ferreira baixa os olhos. “Foi muito assustador.”
Começou tudo na terça-feira por volta do meio-dia e meia. “Começou a atear ali daquele lado, via-se um fumo escuro, ainda longe.” Inês assomou à porta, preocupada. Mas o marido, que chegou a essa hora para almoçar, descansou-a: “Já está a acalmar”, disse-lhe. Sentaram-se à mesa, junto à janela com vista para os eucaliptos, estava um calor abrasador, nem dava para abrir os vidros. Deixaram-se ficar naquela moleza até que já eram duas horas e ele teve que voltar ao trabalho, “até logo”, meteu-se no carro e foi. O fumo parecia mais perto, mas nada de preocupante. Inês tinha que se despachar para daí a pouco pegar na moto e também ela ir trabalhar. O seu turno no lar da terceira idade de Santa Eufémia começava às 15:30. Mas já não chegou a ir. Uns minutos depois, nem sabe como, tudo tão de repente, e o fogo estava ali mesmo perto, a vir em direção à casa. A quantos passos? “Fiquei logo encurralada, ele já não conseguiu voltar e eu já não consegui sair, fiquei aqui com os meninos.”
Os meninos já são crescidos. O Vítor tem 19 anos e o Ricardo tem 17. E de um momento para o outro parece que ficaram ainda mais crescidos e fortes, pegaram em baldes de água e desataram a molhar o terreno, as paredes, as janelas. Queriam enfrentar o fogo, meter-se pelos eucaliptos. O Vítor é jovem, talvez não tenha tanta noção do perigo. “Vi a cara do demónio no fogo”, diz ele. Mas são meninos ainda. Tiveram medo. “Foi doloroso ouvir o meu filho dizer que íamos morrer aqui. Pensámos mesmo que íamos morrer. Foi um autêntico inferno.”
Vale d'Água, freguesia da Boa Vista, Leiria, é um lugar com poucas casas. Algumas estão abandonadas, duas pertencem a emigrantes, as outras não tinham ninguém àquela hora, “as pessoas andavam na sua vida, a trabalhar. Só estávamos nós na aldeia”, conta Inês. Eles os três, a cadela Lady e o cão Marley. Os bichos ainda mais atarantados do que os humanos. Estavam Inês, Vítor e Ricardo de um lado para o outro, a fazer o que podiam para afastar o fogo, parecia que tinham passado uns minutos e já tinha passado uma hora e meia, quando apareceu a GNR. Vítor gritou-lhes a pedir ajuda: “Estamos aqui”. Não há tempo a perder. É preciso ir. Inês não quer mas tem de ir, por causa dos filhos. Depressa, depressa. Não levaram nada. “Só levei os meus filhos, os cães e a roupa que tinha no corpo.” O carro a passar por entre as chamas. Uma aflição enorme. Só descansaram quando chegaram a casa dos familiares. Ao telemóvel chegavam-lhes imagens aterradoras. “Pensei: eu já perdi tudo. Achei que quando voltasse já não ia ter casa, não ia ter nada. Uma vida toda perdida.”
Foi preciso esperar por quarta-feira à noite para terem autorização para regressar a casa. Ela não sabia o que esperar. “Já viu? A casa não ficou nada queimada, nada. Foi como se ficasse dentro de uma bolha, ardeu tudo à volta, o fogo passou ao lado.” “Foi um milagre”, diz Ricardo. “Foi um milagre”, concorda Vítor. “Foi um milagre de deus”, conclui Inês. “E foi já a segunda a vez.” Há dois anos escapou de um cancro, agora de um incêndio. Quando isto tudo passar há de ir a Fátima, acender uma vela e agradecer as bênçãos. “Tenho muita fé, e tenho razões para isso.”
Infelizmente a fé não lhe cura o medo, uma inquietação estranha, como se a casa, a sua casa, onde sempre foi feliz, já não fosse um lugar seguro. “Já vi vários fogos, mas como este nunca. Em 35 anos nunca tinha visto uma coisa assim. E agora, depois de ter visto o fogo aqui tão perto, muito sinceramente, tenho medo. Eu sei que já não vai atear mais nada mas é muito difícil. Tento esquecer mas, quando deitamos a cabeça na cama, a imagem que nos vem é a do fogo à frente da casa.”
03
“Foi por pouco. Se estivéssemos à espera dos bombeiros estávamos bem governados”
Agostinho Romeiro para o carro na berma da estrada e sai a correr com uma pá na mão em direção ao fogo. Não vai dar, sozinho não vai conseguir. Tira o telemóvel do bolso da camisa e liga para os bombeiros, para o filho, para o vizinho. “Traz água. Está a começar a arder na estrada da Serrada, a seguir à santa. Tem que se atacar antes que se espalhe. Vem já.” Dado o alerta, fica ali, a olhar para o fogo, impotente. “Já viu isto?”
São 11:30 da manhã de quinta-feira na freguesia de Caranguejeira. O incêndio que lavrou desde terça-feira pelos montes e vales, praticamente descontrolado, deixando quilómetros e quilómetros de paisagem cinzenta à sua passagem, já está em fase de rescaldo, mas Agostinho sabe que o perigo ainda não passou.
Tem 71 anos e morou toda a vida ali, conhece bem os perigos dos fogos de verão. “Desde pequeno que estou habituado a andar na frente, já assisti a muito.” A 4 de agosto de 2005 – sabe a data de cor, nunca a irá esquecer – viu o fogo a passar-lhe por cima. Literalmente. “Estava dentro da vacaria com mais quatro homens. Não fugi dali porque sempre me senti à vontade, era um espaço grande. Mas a verdade é que o fogo passou-nos por cima. Já tinha visto isso nos filmes e a gente acha que só acontece nos filmes, mas não, acontece mesmo. Ardeu tudo à volta. Foi uma coisa impressionante.”
Depois de 2005, o pior incêndio que viu foi este. “Parecia uma coisa de nada." De repente, tornou-se uma coisa grande. Sem bombeiros nas redondezas, homens e mulheres juntaram-se para defender as terras, com tanques de água e mangueiras, tratores, pás, ramos e o que mais tivessem à mão, tentando controlar o fogo para que não chegasse às casas. “Começámos às duas da tarde e andámos aí até às três da manhã, se não fosse o pessoal isto tinha sido muito pior, tinha galgado por aí acima e depois ninguém dava conta”, sentencia Agostinho.
Há duas noites, ninguém dormiu na Caranguejeira. “Mandaram-nos para casa mas quem é que conseguia? A gente defende o que é nosso. Pode não ser meu, mas é de alguém.” Mesmo depois dos bombeiros dizerem que já tinha acabado, os homens continuaram de vigia. “Tem que se fazer o rescaldo em condições, e não fizeram.” Foi por isso que Agostinho Romeiro decidiu vir por este caminho. Tinha acordado cedo para ir à médica ver da tensão que tem andado alta, vinha no carro em vez de trazer o trator com o tanque, vinha de camisa em vez de ter a roupa de trabalho, mas ainda assim decidiu dar uma volta maior porque o fogo tinha sido apagado mas, por entre a paisagem desoladora, com árvores queimadas e chão de cinzas, os cepos ainda ardem, há lumaréu por todo o lado, basta um vento mais forte e pode haver reacendimentos. Até parecia que adivinhava. Ao passar a Santa, saindo da rota dos peregrinos para a estrada da Serrana, encontrou as labaredas.
Até que enfim que chega Arlindo com o seu trator, um tanque de 330 litros e uma mangueira de cem metros. Agostinho roda rapidamente a manivela para desenrolar a mangueira, Arlindo aponta a água para as chamas. Os dois homens trabalham em conjunto. Agora aqui, depois ali, é preciso apagar mais aquele cepo, é melhor pôr mais água que isto ainda não está bom. “Se estivéssemos à espera dos bombeiros estávamos bem governados. No Lavradio já se está a levantar o fogo outra vez. Aqui foi por pouco”, diz, esbaforido.
Foram três dias a arder. O fogo deflagrou pelas 12:06 de terça-feira, na freguesia da Caranguejeira, Leiria, e estendeu-se depois à freguesia da Boa Vista, obrigando ao corte da A1 entre Pombal e Leiria, e Fátima e Leiria. Pelas 15:00, também o IC2 foi cortado em ambos os sentidos. As autoridades aconselharam os moradores de Machados a abandonar as suas casas, por precaução. As populações em risco foram retiradas para locais seguros. As casas na Boa Vista ficaram sem abastecimento de água. A situação iria piorar ao longo da noite e prolongar-se durante todo o dia de quarta-feira. O incêndio só foi dado como extinto já na madrugada de quinta-feira, e mesmo assim, depois disso, houve reacendimentos. Continua em estado de “resolução” na manhã de sexta-feira, com 210 operacionais auxiliados por 74 viaturas.
05
“Uma pessoa trabalha para ter as coisas e vem o fogo e leva tudo”
Manuel Jesus Marques passou a manhã a pôr uma rede nova à volta do terreno, na Lagoa da Pedra, freguesia de Caranguejeira. Deste lado para cá é meu, do lado de lá já não é. Acabou o trabalho às 11:00 e, pouco depois do meio-dia, ardeu tudo. Agora até se ri a contar esta história mas, na altura, garante que não teve graça nenhuma.
O fogo parecia longe, no Leão, a uns quilómetros dali. Só que “em cinco ou dez minutos, o fogo que estava além chegou aqui perto.” A mulher, Odete, começou a gritar-lhe do terraço: “Sai daí que vem o fogo, sai daí.” Mal tiveram tempo para levar as ovelhas para o relvado perto da casa. Para Odete ir pedir ajuda aos bombeiros que estavam mais acima. Para Manuel abrir a mangueira e tentar atrasar as chamas. Não foi possível salvar os 12 frangos, as duas patas e as dez galinhas. Os animais morreram todos. Não foi possível salvar a lenha, tanta lenha que tanto trabalho deu a crescer e a cortar. Não foi possível salvar a erva das ovelhas, que agora vão ter que comer ração. Não foi possível salvar parte da horta, com as couves, as batatas, as alfaces e os tomates. Salvou-se a casa, a roupa estendida, as cadeiras onde costumam sentar-se à sombra nos fins de tarde mais frescos. “Podia ser pior.”
Ainda assim, Manuel e Odete estão tristes e zangados. “De que adianta andarmos a limpar os terrenos se depois os donos dos pinhais e dos eucaliptais não limpam a mata? Nem o Estado limpa os seus terrenos e depois quer multar-nos. Mas só multa os pequeninos, só nos multa a nós, que não somos ninguém. E agora vamos fazer o quê?”, pergunta Odete, desconsolada. “Uma pessoa trabalha para ter as coisas e vem o fogo e leva tudo.”
06
“É claro que tenho medo mas temos que aguentar”
“Venham daí que eu vou mostrar-vos até onde o fogo veio.” Lucinda tem 76 anos e sofre de artroses que a fazem coxear da perna esquerda, mas isso não a impede de pôr-se ao caminho. Ainda é preciso andar um bom bocado. Desta vez, o fogo não chegou perto da sua casa, como aconteceu há 17 anos. “Ah, esse é que foi o maior fogo. Foi um dia de muito calor.” Lucinda recorda a angústia de estar em casa com os netos, todos pequenos, só pensava em tirá-los dali e o fogo cada vez mais perto. “Nem me quero lembrar disso, foi um dia de aflição”, diz, enquanto caminha com Milu, a cadela, pelas ruas da Longra, freguesia da Caranguejeira, Leiria. Não se vê vivalma. Os mais novos hão-de estar a trabalhar, os mais velhos estão a fazer a sesta, há muitas casas desabitadas, outras pertencem a emigrantes.
Lucinda também esteve em França. Esteve fora dez anos até que o marido começou a ficar cego e decidiram voltar. “Ia lá ficar a fazer o quê?” A cegueira, fruto de um problema genético, trouxe-os de volta às origens. “É o nosso cantinho, é a nossa casa. É claro que tenho medo mas temos que aguentar. A gente não se vai livrar disto, com tanta malvadeza que há”, diz, atribuindo a culpa dos incêndios a criminosos, como quase toda a gente. Na verdade, “os incendiários são uma parte pequena” das causas dos incêndios, explicou o primeiro-ministro António Costa, no início da semana. Mas Lucinda não o ouviu.
Quem passa na rua da frente não imagina mas, na parte de trás das casas, os quintais e as hortas foram queimados pelo fogo. “Mais um pouco e tinha-se dado uma desgraça.” Lucinda caminha sobre as cinzas, leva-nos encosta abaixo, até aos cotos que ardem, o fumo a sair da terra ainda quente. Come uma tangerina roubada de uma árvore, atira as cascas para a terra. “Está mesmo a saber-me bem.” O sumo da tangerina a escorrer pelas mãos com que Lucinda aponta as terras, “estas aqui fui eu que limpei”, “ali andou o meu filho no trator a pôr terra para apagar o fogo”, “mais além, estão a ver, o fogo virou, por causa do vento, foi uma sorte. Se tivesse vindo para aqui…” Deixa a frase a meio para retomá-la uns metros mais à frente. “Foi uma sorte para nós, foi um azar para os outros. Se tivesse vindo para este lado, sabe-se lá o que seria de nós.”