Fernanda, António, a vizinha e Alain: as histórias de quatro pessoas (de quatro aldeias) a quem o fogo roubou a casa
A terra ainda continua a fumegar. Poucas árvores haverá por arder. Muitas queimaram rente às habitações. Cruzam os céus os Canadair. Os bombeiros já concluíram o rescaldo e abandonam. A normalidade regressará.
Não para já. Jafafe é só uma entre quatro aldeias de Águeda que sofreram entre segunda e terça-feira com um incêndio de grande fulgor, acentuado esse fulgor pelo vento forte, não tanto pelo calor — já que ao romper da manhã, quando chegou o incêndio às povoações, as temperaturas não eram tão elevadas quanto foram mais tarde.
Em Jafafe só se fala do fogo. Santiago e Cristina, casados, estão à porta de casa, garantem que foram dias “infernais” mas, ainda assim, “milagrosos”. “Milagroso porque só ardeu uma casa. Porquê? Porque a população esteve à altura, combateu um fogo sozinha. Sozinha”, garante Santiago. Cristina conclui: “Não havia um único bombeiro. Nada. Nada, nada. Passavam, a população quase se metia à frente do camião, de joelhos, e simplesmente não paravam. Não ajudavam”.
Como eles, muitos tentaram salvar as casas à força de braços e baldes. “Água não havia. Não tinha força. Nós temos poço, há vizinhos com piscina, e regávamos tudo, persianas, árvores, tudo.” Em 57 anos de vida e de Jafafe. Santiago diz nunca ter vivido algo semelhante. “Eram umas sete menos vinte quando eu me levantei para ir fazer o tratamento, porque eu faço diálise. Estava tudo limpinho, limpinho. Eu demoro 20, 30 minutos no tratamento. Quando voltei já isto ardia tudo! Parecia um inferno!”
Um vizinho mais novo irrompe na conversa. É Carlos. “É que isto é negócio, o fogo é negócio. Como pode ele começar em tantos sítios ao mesmo tempo? Impossível”, acusaria, enigmático. Cristina desanuvia e regressa às horas de combate “Olhe: fez-se noite de dia. As galinhas até recolheram, porque lá achavam que era mesmo de noite”. Riem-se. Santiago e Cristina entram para casa. Carlos pergunta se queremos ir ver a casa queimada. De habitação? Ou devoluta? “Da Fernanda”, responde.
Fernanda está a metros da casa, mas não entra. O exterior ardeu totalmente. Persianas já não há. Há estilhaços de vidros. A cozinha desapareceu, o telhado desabou. Resistiu uma pequena sala e dois ainda mais exíguos quartos. “Não consigo entrar, falta-me coragem, espreitei de fora, vi que do que sobrou, ardeu roupa, os móveis estão totalmente descolados. A cozinha é sucata. Su-ca-ta. Não aproveito nada”, lamenta. Entrará quando cair em si. “Eu sinto-me drogada, parece que tomei medicação. A minha cabeça ainda não entrou bem no que me aconteceu.”
O que lhe acontece foi sobretudo veloz. “Eu trabalho numa fábrica em Águeda. Peguei às seis da manhã. Àquela hora não havia fogo. Nada de nada. Às oito liga-me uma irmã, ‘Ó Nanda, tu vem para cá, que anda o fogo na tua casa!’ Não queria acreditar, mas vim. Quando cheguei, eram umas oito, já não se podia fazer nada, estava mesmo em cima de nós”, lembra, consternada.
Perdera-se a casa - na imagem de capa deste artigo -, e ainda mais lhe custou “porque tenho uma boca de incêndio ao lado e não funciona”, mas nem por isso se deixou abater. Não logo. “O que é que eu fiz? Fui proteger as casas dos meus vizinhos. Para não arder mais nenhuma.” Abateu depois: “Toda a gente me ofereceu dormida, mas eu não durmo. Só penso na minha casinha — eu tenho 57 anos, vivo aqui sozinha há 30. Na motorizada, tantas vezes ma quiseram comprar e nunca a vendi, porque era para as minhas netinhas. Nunca vi um fogo destes. Até remoinhos ele fazia!, era o demónio que ali estava.”
05
O fogo levou tudo a António: casa, animais, vontade. E não foi a primeira vez
É de manhã em Cavada Nova, pequena aldeia de Águeda, de duas ruas só, colada à Estrada Nacional. Na segunda-feira, logo cedo, pelas seis horas da manhã, um grande incêndio varreu a povoação, queimou árvores, caminhos, um carro que estava parado na berma, mas só uma casa ficou totalmente destruída, uma pequena moradia logo no começo da rua, a poucos metros do que foi a Linha do Vouga.
António parece esperar, prostrado. Está na rua, à porta, sozinho, a porta deixa-a entreaberta, lá dentro só negrume e já nada do que foi uma casa. Acena. Haverá logo de recordar, acelerado — talvez a espera fosse de contar — mas sem lágrimas, sem expressão, como se relatasse distante, a manhã de horror que viveu um dia antes. "O fogo vinha da parte de Jafafe. Apercebi-me de uma grande chama, uma chama enorme. Só que o vento era de tal maneira forte, e as labaredas tão altas, que a chama quando caía ao chão incendiava tudo, a chama corria pela terra fora. Isto foi tudo tão rápido. Isto em 20 minutos ardeu. Ardeu tudo. As chamas envolveram a casa. Parecia um inferno.”
Não conseguiu reagir, travar a velocidade do incêndio. Desde logo, faltou água. “Na água não havia pressão. E quando os tubos derreteram, acabou. E a boca de incêndio, que instalaram há um ano, não funciona — nem os bombeiros conseguiram tirar. Não havia água”, lamenta.
Em aflição, confuso — “só ouvia gritos, gritos, as botijas de gás explodiam” —, fugiu como outros para a Estrada Nacional. “Mas percebi que a minha mulher não estava. E voltei. Ela tinha ficado presa na casa, porque foi tentar libertar os animais. Felizmente sobreviveu, cobriu-se de lençóis e escondeu-se debaixo da mesa. Os animais morreram, perdi seis gatos, um cão, uma cabra de estimação e um viveiro de pássaros. Quando entrei nem era bom de ver. Nem era bom.” É a primeira vez que se emociona. Diz que acabara de enterrar os animais, levando-os, à vez, sem vida, ao colo.
Repete que perdeu tudo. “Tudo, tudo, tudo. Tenho uns calções, uma camisa. Esta roupa que trago é do meu filho.” Por agora, vive em casa do filho, que fica logo em frente. Agradece e lamenta. “Eu tenho 67 anos… [pausa] É a segunda vez que um incêndio me leva tudo.” O primeiro incêndio foi em 1982, naquela mesma aldeia, mas noutra rua. “Mas aí era novo, tinha 22 anos. E agora? Tenho 67. Vivi em África, fui expulso em 1976. Aí também perdi tudo. Fui emigrante, sofri muito para ter este pouco que tenho. E agora?” Diz não ter vontade para recomeçar. “É desolador. Ainda não dormi. Não comi. Não tenho forças. Parece que ainda não sinto. Não tenho vontade de nada. Acho que nem dou conta de que isto me aconteceu, parece que não foi comigo. Quando hoje enterrei os meus animaizinhos, eu só queria ter uma escada para o céu.” O discurso é alterado subitamente. “Mas não posso… Não posso não querer fazer nada! E a quem Deus promete nunca falta. Agarro-me à fé. Vou conseguir ir para a frente. Nunca baixei os braços”, garante.
Convida a que entremos na casa. “Quando entrei, o que é que senti? Veja você, vejo com os seus olhos. Veja…” No interior, paredes rachadas, tectos caídos e sob ameaça de ruir, estilhaços de vidro no chão, um vento que varre e levanta poeiras, e levanta também um cheiro fétido — “eu ainda não enterrei a cabrinha, vou enterrar agora” —, nada se distingue. Somente o frigorifico, agora sem porta, tem cor, e nenhum alimento se queimou. “A casa está segurada, mas não vai dar para nada.” Voltamos ao exterior.
António diz que, eclodido àquela hora da manhã, “o fogo só pode ter sido crime”. Mas não culpa só os incendiários. “Eu não compreendo a existência de leis que obrigam à limpeza dos pinhais, em que quem não limpasse era multado, e ninguém limpa os pinhais, as estradas também não são limpas. Se não querem limpar [proprietários], a câmara que assuma, que fique com os terrenos, e que limpe ela. Mas, sabe, ninguém quer fazer esse trabalho, os municípios pagam mal e ninguém faz. Não podem pagar uma côdea. E, assim, o fogo acaba por fazer o trabalho dos homens. Não acha? Eu acho. Infelizmente.”
10
Em Macinhata os rapazes salvaram a vizinha que nenhum sabia que tinha
A menos de um palmo das casas, tudo ardeu. Chegado à fachada, o fogo pára.
No café da aldeia, e a aldeia chama-se Macinhata do Vouga, a mesma coisa: arde mato, arderam árvores, mais eucaliptos que castanheiros ou pinheiros ou qualquer outra espécie, escureceu a paisagem, de um esverdeado-acinzentado, e nada tocou às paredes. Não houve uma intervenção superior, divina ou de aviação, quase não houve bombeiros no solo, mas os rapazes da aldeia travaram o incêndio.
Agora, em rescaldo, bebem cerveja, recordam horas que foram de comunidade.
Rui é dos rapazes o mais novo. Tem 28 anos. Diz que foram dois dias “horríveis”. E repete: “Horríveis, horríveis, horríveis”. “Isto começou logo de manhã. Logo de manhã já estava aqui, em Macinhata. Eram umas 10. E combatemos o incêndio até ser dia. Ainda não dormi, encostei-me um bocado, mas dormir não. Os da Proteção Civil, à tarde, mandaram-me descansar, porque à noite ia agravar-se, ia levantar-se o vento, mas não fui descansar. Fiquei à espera do fogo”, recorda.
A quem está fora, emigrado, Rui prometera olhar pelas casas. E olhou. Como prometa olhar pelas casas dos que ali na aldeia são mais velhos. E olhou. Por quase todos. “Uma certa hora, disseram-nos que uma vizinha, já de idade, supostamente acamada, sozinha, tinha a casa a arder. Vivia lá para baixo, isolada, no meio do mato. Eu sou da Macinhata e não sabia que vivia lá alguém. Ligaram para a GNR, a GNR não respondeu. Fomos, éramos quatro, quatro rapazes, gritámos e a senhora respondeu. A casa já tinha ardido toda. Toda menos uma divisão, pequena, onde realmente estava acamada. Ela avisou que havia botijas na cozinha, entrámos a medo e retirámos, em braços, a senhora. Tinha inalado muito fumo e acabou por ir ser internada no hospital. A casa é que ficou mesmo destruída.” A Câmara Municipal de Águeda confirma a habitação destruída.
Pergunto o nome da vizinha que Rui e os rapazes salvaram. “Não sei. Acredita que não sei? Não sei…”
Recorda-se, isso sim, de que nunca viu na aldeia fogo como este. “Já apanhei alguns sustos, mas assim não. Isto é fogo posto — e o vento faz o resto. Sopra para um lado, sopra para outro.” Da comunidade, elogia tão grande “mobilização”. Mas não só. “Houve medo, sim. Também aflição, sim. Houve quem estorvasse mais do que ajudasse”, graceja. E volta à merecida cerveja.
12
Alain lutou até não poder, mas perdeu a sua casa em "Bassin d’Arcachon"
Chamam-lhe só “o senhor francês”. Não é um emigrante regressado de França; é francês-francês. Que só fala francês, mas que se entende há sete anos com os de Sernada, aldeia de Águeda, com acenos de cabeça, alguma mímica e frases curtas. A tragédia abateu-se sobre o senhor francês, contam-nos, à laia de preocupação mas não maldizendo, no café da estação. “A mulher ‘tá doente, coitada, e agora a casa. [A casa?] Ardeu toda…”
A casa é junto do café. Pouco sobrara do incêndio que veio na manhã anterior. Sem telhado ou portadas, janelas ou paredes. Ruiu quase tudo. Uma imagem de santa continua pendurada.
O senhor francês é Alain. A mulher é Danielle. Alain aproxima-se logo com olhos marejados, a mulher acena distante, sorri breve, espreitando da ombreira da porta, e volta para dentro. A casa é de vizinhos, “que saíram para ficarmos à-vontade”, explica o homem. E explica aquela manhã fatídica: “Não estava por casa quando o fogo começou, a minha mulher, a Danielle, é doente oncológica e estávamos em tratamento. Quando chegámos, a casa já tinha pegado fogo. Só tive uns segundos para recolher coisas, sobretudo papéis. Tentei regar a casa de cinco em cinco minutos, mas os canos derreteram, fiquei sem água e o fogo já estava mesmo atrás da casa, o telhado já ardia. Resolvi virar costas e fugir. Era impossível continuar a lutar.”
Como aconteceu noutras histórias, Alain não voltou à casa que o fogo levou. Não por bloqueio emocional, antes por dever. “Depois, não pensei no fogo; pensei que não tinha recolhido os medicamentos da Danielle — e andei à procura deles em toda a parte, encontrei em Valongo. Valongo! Não voltei à nossa casa, portanto. Ainda não pude. Acho que não terá sobrado nada, não pode ter sobrado nada. Acabou”, já antecipa. Não sabe o que fazer, o autarca de Águeda já terá falado consigo, mas para já espera. De Sernada não pretende sair. A sair, quem sabe saia para a capital de distrito, Aveiro. “Quando me reformei, eu e a Danielle escolhemos Portugal, a reforma não é enorme, mas o custo de vida português é suportável e gostámos muito de Aveiro — faz-nos lembrar o Bassin d’Arcachon, em França. Tínhamos o suficiente para a casa, uma casa que é pequena, e comprámos. A irmã da Danielle também vive cá, vive no Cartaxo. Temos sobrinhos também. Gostamos muito de Portugal, receberam-nos tão bem.”
Não o fogo. “Em França nunca vivi um incêndio. Tempestades sim, árvores a caírem por todos os lados, mas fogo não. Cá, em Portugal, em sete anos já é a segunda vez. Da primeira o quintal ficou todo queimado. E desta vez foi a nossa casa.”