Eu sou russo, combato pela Ucrânia e hei de vingar Serhiy Vereta
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Eu sou russo, combato pela Ucrânia e hei de vingar Serhiy Vereta

DIÁRIOS DA GUERRA DEZEMBRO 2022

DEPOIMENTO
Tai
(a partir de uma entrevista de Germano Oliveira e Teresa Abecasis, em Bucha)

Sim, eu sou russo, e sim, claro que podem filmar a minha cara, qual é o mal?, os dois jornalistas portugueses estão muito intrigados com isto, um russo que combate pela Ucrânia, devem achar que sou um segredo que deve permanecer no anonimato, eles perguntaram-me se podem filmar, se é permitido fazê-lo, claro que é, filmem-me, fotografem-me, a mim e aos meus camaradas atrás de mim, só não podem usar o meu nome nem o deles, entre nós é assim, entre nós soldados somos uma alcunha em vez de um nome e de um apelido, por isso sou simplesmente o Tai, é assim que eles me chamam e é Tai que sou enquanto esta guerra durar, tenho 30 anos, nasci na Rússia e combato pela Ucrânia, hoje é 29 de dezembro e estou em Bucha porque foi em Bucha que me tornei ucraniano quando cheguei aqui há dez anos, é a Bucha que pertenço, a Bucha que libertámos dos invasores, o Serhiy também era daqui e ele é o único nome que vos vou dar que não é uma alcunha, Serhiy Vereta, são um nome próprio e um apelido de verdade, quero lembrá-lo como ele era antes da guerra mas celebrá-lo pelo que ele foi durante ela, um herói, o Serhiy morreu na véspera do Natal católico, 24 de dezembro de 2022, foi há cinco dias, sargento Serhiy Vereta, 45 anos, morto em combate numa batalha em Avdiivka, região de Donetsk, morreu por nós, literalmente por nós, deu a vida por quatro camaradas, tapou com o corpo dele quatro soldados nossos, vejam lá, viva o Serhiy, viva!, custa-me tanto falar disto, eu e ele éramos muito próximos, os jornalistas percebem o meu incómodo, dou respostas muito curtas a cada pergunta que me fazem, estes jornalistas têm um russo diante deles que luta pela Ucrânia e que está no funeral de um soldado de Bucha e por isso entendem que eu sou uma história que eles não esperavam ter, querem contá-la, querem saber tudo sobre mim, onde nasci, onde vivi antes de vir para aqui, porque vim e porque fiquei, porque luto contra os invasores tendo nascido na terra deles, mas eu não tenho vontade de contar quem eu sou, neste instante sou apenas o amigo do Serhiy, sargento Serhiy Vereta, em março ele ajudou a libertar Bucha dos russos que combatem pela Rússia, eu não sou russo como esses russos que cometeram aqui crimes de guerra, russos que hei de expulsar mas russos que mataram o Serhiy, sargento Serhiy Vereta, 45 anos, morto em combate enquanto protegeu com o próprio corpo quatro camaradas, que interessa de onde eu sou quando um homem morreu desta maneira, lá dentro na Igreja está a passar aquela canção que dá nos funerais dos soldados, "Пливе кача по Тисині" ("Duckling floats on Tisyna"):

Гей, погину я в чужім краю9 (Oh, I'll die on foreign lands)
Погину я в чужім краю, (I will die on foreign lands,)
Хто ж ми буде брати яму? (Who will prepare a grave for me?)
Хто ж ми буде брати яму? (Who will prepare a grave for me?)

Гей, виберут ми чужі люди, (Oh, another people will prepare)
Виберут ми чужі люди. (Strangers will prepare)
Ци не жаль ти, мамко, буде? (Won't you regret, mother?)
Ци не жаль ти, мамко, буде? (Won't you regret, mother?)

"I will die on foreign lands", só será foreign land se eu morrer fora da Ucrânia, agora sou daqui, a minha família também - vieram comigo, ficaram comigo, estão comigo e estão bem, estão seguros, estão ucranianos, por isso esta farda que visto, eu, Tai nascido na Rússia, esta farda ucraniana que visto é a farda da minha nação, vim há dez anos porque não queria estar sob Putin e dez anos depois de eu ter vindo já não podia tornar a fugir, nem queria, era o momento de resistir, é o momento de resistir, vai continuar a ser o momento de resistir, resistir em nome da Ucrânia e da Europa e das nossas crianças, foi o que fiz, resistir, e é o que faço, resisto desde aquele 24 de fevereiro em que eles nos invadiram, fui ferido logo no dia a seguir, nada de relevante, foi só superficial, eu e o Serhiy voluntariámo-nos para as defesas territoriais, primeiro ficámos em Bucha, depois seguimos para Irpin e a seguir para Kyiv, entretanto passámos a integrar uma unidade dos serviços de informação do exército, os jornalistas perguntam-me se eu já perdi muitos amigos nesta guerra, respondo-lhe só com uma palavra, "demasiados", eles fazem mais perguntas e eu respondo em monossílabos, só quero saber do Serhiy, o Serhiy morreu há cinco dias naquela batalha em Avdiivka, lutámos uma semana contra os russos, foi brutal, não quero falar muito mais sobre estas coisas nem sobre coisas nenhumas porque é o funeral dele e a seguir é preciso voltar à guerra, quando a vencermos hei de regressar ao meu trabalho num armazém de tintas e a seguir vou de férias à Rússia para ver como ficou o Kremlin depois de sido destruído pela Ucrânia.

Tai saiu da Rússia há uma década e luta agora pelos ucranianos e pelos valores europeus contra o país em que nasceu. Foto: Teresa Abecasis/CNN

 

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