"É uma loucura, mas à parte disto somos completamente sãos". Neste santuário de pássaros, o céu é o limite para observadores de todo mundo

"É uma loucura, mas à parte disto somos completamente sãos". Neste santuário de pássaros, o céu é o limite para observadores de todo mundo

Jornalista
Sara de Melo Rocha

Repórter de imagem
Rui Pereira

Drone
Romeu Carvalho

Imagens de cortesia
Jens Søgaard Hansen, Vasco Valadares, Vincent Legrand

Edição de imagem
João Ferreira

Adaptação do vídeo para digital
Sofia Marvão

Grafismo
Victor Magano

No outono, a ilha do Corvo aumenta de população. Todos os alojamentos da mais pequena ilha dos Açores ficam esgotados com a chegada de dezenas de pessoas de todo o mundo para observar aves. A ilha é encarada por muitos como o melhor local da Europa para avistar pássaros raros americanos. Mas como é que a ilha de 430 habitantes lida com o aumento de quase 20% da população? E, afinal, que pássaros são estes que trazem dezenas pessoas de todo o mundo até um dos pontos mais ocidentais da Europa?

O voo entre o Faial e o Corvo é curto mas suficiente para perceber que os passageiros a bordo do pequeno Bombardier da SATA não são os habituais visitantes dos Açores. Os binóculos, as grandes objetivas e o estampado camuflado denunciam a presença de turistas invulgares. São observadores de aves e vão passar as próximas semanas na mais pequena ilha açoriana. Dizem que é o melhor sítio da Europa para ver pássaros americanos.

A aterragem é escarpada, tal como se espera na curta pista de 800 metros do aeródromo do Corvo. As portas ainda nem abriram e já há burburinho no avião. Os telemóveis começam a anunciar que acaba de ser avistada uma Fragata, ave que não era registada na ilha há quase 15 anos. Ainda nem levantaram as malas e já tentam avistar a ave pelas janelas da sala de desembarque. Os binóculos estão sempre ao peito. É a primeira regra de qualquer birder.

"Saí disparado do avião para ver se via alguma coisa. Não correu bem. Pode ser que apareça", afirma Nuno Gonçalves, 37 anos, natural da ilha do Pico. As aves podem aparecer a qualquer momento e é nesta probabilidade que os observadores se vão equilibrando. Mas, na maior parte das vezes, são precisas caminhadas íngremes entre as matas e ribeiras açorianas para encontrar as aves.

Observadores de pássaros de várias partes do mundo chegam à ilha do Corvo

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Ver o que nunca viram

Partem em grupo para o meio do mato. Avançam com cuidado e com a ajuda de um pequeno altifalante que emite sons de pássaros. "Isto é o pishing", explica o belga Vincent Legrand, 45 anos. O fotógrafo de vida selvagem conta que estes sons de pássaros em apuros ajudam a captar a atenção de aves escondidas nas árvores. "É como quando há uma briga na rua, toda a gente vem ver. Isto é exatamente o mesmo."

Podem passar horas e dias sem avistar aves relevantes. "É o que dá o valor de ver o pássaro. Temos de encontrá-los e vê-los", afirma o francês Fabien Ruysschaert, 44 anos.

Fabien confessa que é difícil explicar o encanto do birdwatching. Nem toda a gente entende. "É como alguém que coleciona objetos mas para nós são pássaros. Mas no fim de contas não temos nada para mostrar."

Nuno Gonçalves é guia de montanha no Pico e está habituado a passeios de natureza, mas, no início, não tinha grande interesse no birdwatching. "Sempre achei que as pessoas que vinham para aqui eram meio malucas e, de facto, são." Ganhou o gosto pela atividade e agora vem todos os anos ao Corvo em outubro, o mês com melhores probabilidades para se avistarem aves raras americanas.

Dezenas de curiosos juntam-se para descobrir diferentes espécies

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Aves perdidas

No outono estes passeriformes - pequenos pássaros, muitos do tamanho de um pardal - fazem migrações da América do Norte para a América do Sul onde invernam. As tempestades de outono desviam os pássaros da sua rota. Muitos acabam perdidos e são empurrados pelo Atlântico, encontrando abrigo e alimento nos Açores.

"Qualquer aficionado de aves na Europa sabe que o Corvo é onde aparecem mais passeriformes americanos e que no continente são altamente escassos", explica Pedro Nicolau, 28 anos.

O Corvo é considerado um santuário para ver estas aves raras porque tem pouca floresta e apenas 17,21 quilómetros quadrados. Com cerca de 70 birders é possível cobrir todo o território e ir comunicando através de walkie-talkies.

O biólogo já chegou a ser guia em alguma visitas de turismo ornitológico, mas hoje encara o birdwatching como um passatempo, tal como a maioria das pessoas que visita o Corvo em outubro.

Muitas aves acabam perdidas e encontram abrigo e alimento nos Açores

 

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Descobrir um santuário de pássaros, quase por acaso

Tudo começou em 2005, quando o inglês Peter Alfrey descobriu o potencial da ilha. Com o furacão Wilma, muitos pássaros acabaram perdidos no Corvo. Peter Alfrey conseguiu encontrar cerca de 50 espécies americanas na ilha e, desde então, centenas de observadores rumam quase em peregrinação até à mais pequena ilha dos Açores. 

"Quando o Peter publicou um artigo na revista 'Birding World' foi como libertar uma bomba enorme para quem segue a lista do Paleártico Ocidental", afirma Vincent Legrand.

A lista do Paleártico Ocidental é um ranking mundial que define quem são os observadores que mais aves viram nesta zona do mundo. Inclui a Europa, o Norte de África, grande parte do Médio Oriente e toda a zona da Ásia a norte dos Himalaias. O francês Pierre-André Crochet, presença assídua no Corvo, está na primeira posição a nível mundial.

 

Os observadores que mais aves viram no Paleártico Ocidental estão inseridos num ranking

 

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O melhor do mundo a ver aves

"Eu tenho a maior lista, o que não significa que seja o melhor. Significa apenas que viajei mais do que os outros", afirma Crochet. Até agora viu 910 pássaros num total de 1058 desta lista. O segundo classificado nem atingiu as 900 aves.

Pierre-André explica que a fórmula passa por ter um bom salário que lhe financie as viagens e um trabalho flexível. "Acontece com frequência eu estar a caminho do escritório e vejo que há um bom pássaro na Suécia, deixo tudo e apanho um avião e no mesmo dia estou na Suécia a ver um pássaro."

 

Crochet já viu 910 pássaros até ao momento

 

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O Corvo e os birders

Deixar tudo e ir atrás de um pássaro chama-se twitching. É a gíria usada entre observadores de aves que pode incluir apanhar um avião ou simplesmente correr para ver um pássaro – azáfama a que os corvinos já estão habituados. "Eles podem estar aqui a almoçar, recebem a mensagem de que foi visto um pássaro, largam tudo e correm", diz Fernando Câmara, 69 anos.  

José Silva, o presidente da Câmara da Vila do Corvo, conta que, em outubro, os observadores de aves são encarados como residentes. "Já fazem parte do Corvo, são pessoas que facilmente se enquadram, têm muito respeito pelo Corvo. A relação é extremamente fácil", detalha.

Para quem está envolvido no turismo como Fernando Câmara, a chegada de birders é uma boa notícia, sobretudo em época baixa. "Deixa muito dinheiro à terra, é do melhor que pode haver."

Em outubro passam pela ilha do Corvo cerca de 100 observadores de aves. Chegam a estar cerca de 70 em simultâneo. O grande desafio é o alojamento. A ilha tem apenas um hotel com 27 camas e algumas casas de hóspedes. Fazer uma reserva em outubro é praticamente impossível. Há quem reserve quartos a cinco ou dez anos, independentemente de saber se pode ou não viajar. "A agenda para o próximo ano já está praticamente cheia", afirma Renée Rita, proprietária do hotel Comodoro.

E não é só dormir. Também é preciso pensar na alimentação, uma vez que a ilha tem apenas um restaurante e um snack-bar. Com o abastecimento de produtos essenciais a chegar através de navio, Mauro Ferreira, gerente do restaurante Caldeirão, tem de preparar a estadia dos birders com antecedência. "Em março, de 15 em 15 dias, chegam a este restaurante 5 mil euros de compras. Em outubro têm de chegar claramente 15 mil".

Até o centro de saúde tem mais movimento. A observação de aves implica muitos quilómetros a pé, em terreno acidentado com registo de fraturas e outros problemas de saúde. Este ano um observador teve de ser retirado de helicóptero depois de partir a perna. "Em outubro nós somos médicos poliglotas. As nossas consultas têm de ser em francês, italiano, inglês ou macarronês", conta o médico Paulo Margato.

 

 

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Turismo de nicho em crescimento

Estes apaixonados pela observação de aves fazem parte de um nicho de turismo com grande potencial de crescimento e que contribui para contrariar a sazonalidade do setor turístico.

Estima-se que o mercado a nível global chegue aos 59 mil milhões de euros em 2022 e aos 96 mil milhões em 2032. Portugal ainda dá os primeiros passos, mas há três milhões de viagens anuais na Europa motivadas pelo turismo de birdwatching.

Domingos Leitão, diretor executivo da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), revela que há cada vez mais pessoas em Portugal interessadas na observação de aves. Em 1993, quando a SPEA foi criada, havia 200 sócios. Atualmente, são cinco mil.

Nada que se compare ao mercado britânico e norte-americano. Nos Estados Unidos, 20% da população faz birdwatching. No Reino Unido cerca de três milhões de pessoas dedicam-se à observação de aves todos os anos.

"E quando eles visitam, têm de se deslocar, têm de comer, têm de dormir, são pessoas com poder económico, com educação. Não vêm na época alta porque não gostam de multidões", conta.

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"Faz-nos sentir europeus"

O birdwatching traz também outras coisas que não se podem medir. "Eles dizem que é a primeira vez que veem aquela ave em território europeu e isso faz-nos sentir europeus. Tem um significado especial", explica o autarca do Corvo.

A ilha tem conseguido contornar as dificuldades para receber os birders mas é preciso não passar o limite. "Se em vez de 50, tivéssemos 100 pessoas ao mesmo tempo, obviamente interfere no dia a dia de 400 pessoas, estamos a falar de 25% da população", diz José Silva.  

Estes observadores tiveram a sorte de, logo no início, encontrar na ilha um cicerone à altura. Manuel Rita, antigo presidente da câmara da vila, ajudou a acalmar alguma estranheza dos corvinos, que nem sempre entenderam a razão de chegarem tantos homens com binóculos ao peito. Manuel Rita, que morreu em 2021, é apontado por todos como uma espécie de mecenas do birdwatching no corvo.

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"À escuta, diz"

A mensagem que todos esperavam chegou por walkie talkie. “Localizámos a Fragata, ela está à esquerda da lixeira, a voar para leste”.  

A ave que motivou todo um frenesim na chegada à ilha, voltou a aparecer e, desta vez, ninguém a perdeu de vista. É uma raridade e uma importante adição para quem segue a lista do Paleártico Ocidental.  “Ficaram todos loucos, é um nível de felicidade muito bom”, conta Vasco Valadares, 45 anos.

"Isto é uma loucura. À parte disto, somos completamente sãos", brinca Pierre-André Crochet.

Para muito destes observadores de aves, ver a Fragata já compensou a viagem ao Corvo. Pode ser a última nos próximos 20 anos nesta zona da Europa. São estas raridades que levam estes caçadores de tesouros a um sítio raro como o Corvo, para verem o que nunca viram.  

 

 

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