É ético querer uma criança surda? Os pais podem ser levados à justiça pelo próprio filho

É ético querer uma criança surda? Os pais podem ser levados à justiça pelo próprio filho

Reportagem
Wilson Ledo

Imagem
José Chorão, Nuno Gomes Lopes, Ricardo Ferreira, Nuno Quá, Nuno Lourenço Bayer, Tiago Donato, Pedro Batista, Herberto Gomes

Drone
Fábio Mestre

Intérprete de LGP
Sofia Figueiredo

Edição de Imagem
João Ferreira

Grafismo
Sérgio Trindade

Coordenação
Raquel Matos Cruz

"No som ou no silêncio". Este é o terceiro de quatro capítulos de uma grande reportagem sobre a comunidade surda em Portugal.

A ciência médica e a comunidade surda têm divisões difíceis de ultrapassar. Algumas parecem mesmo insanáveis. Por muito que reconheçam a riqueza da cultura surda, há princípios orientadores que os primeiros sentem que não podem ser violados. Optar, com a ajuda dos avanços na genética, por ter um filho surdo é "condenar" alguém a uma condição sem o seu consentimento? A lei entende que sim. Fala-se de (bio)ética.

À hora de saída, com a chegada dos pais, havia um cão que ladrava junto do infantário. Com o som do animal, todas as crianças viravam a cabeça. Havia apenas uma exceção: Mariana Couto Bártolo. Ela continuava a brincar, como se nada se tivesse passado ao seu redor. Foi assim que surgiram as primeiras suspeitas, confirmadas aos 21 meses de idade: Mariana era surda. A primeira da família, após uma gravidez “delicada”. 

Mas isso nunca impediu que ela honrasse as duas tradições familiares: a medicina e a música. A mãe é cantora lírica. Mariana nunca lhe ouviu a voz, mas não guarda tristezas por isso. Imaginou-a de outras formas. “O primeiro som que gostaria de ouvir seria a voz dela. Sentia a música de outra forma. Visualmente, através das expressões faciais. Nos concertos, gostava de ver a expressividade dela. Há outras formas de ouvir música”. 

Em casa, não faltam as fotografias que o comprovam. Mariana ao piano, Mariana à bateria, Mariana a saltar para cima das colunas e a dançar. Contudo, é outra paixão que acaba por transformar a vida dela: a leitura. A começar pelo livro “O Grito da Gaivota”, da atriz francesa Emmanuelle Laborit, quando os pais “perceberam que a língua gestual era o caminho certo”. E, com ele, cultivaram uma educação bilingue, com Língua Gestual Portuguesa (LGP) e o conhecimento do português escrito, que depois permite vocalizar palavras e a leitura de lábios – mesmo que a oralidade nunca tenha sido uma prioridade.

“O meu pai trabalhava ao computador, ia ter com ele com curiosidade. Sentava-me ao colo. E ensinava-me palavras simples, como cão, mão, pão, que tinham alguma similaridade. No dia seguinte repetíamos e aprendíamos novas. Quando fui para a escola, já sabia mais de 500 palavras de português”. 

Mariana Couto Bártolo passou por várias escolas até atingir o sonho de ser médica. É a primeira surda a tornar-se médica em Portugal. A tecnologia ajudou no processo, fazendo a transcrição das aulas. Em casa, continua a estudar desta forma. E, no hospital, sente que ser surda não lhe coloca entraves para tratar um doente. “Há barreiras, é natural. Mas sinto que nunca houve nada de grave”. Ser-se surdo até pode trazer vantagens: por exemplo, no estar-se mais habituado a ler as expressões faciais e a analisar a dor. 

A LGP serve-lhe para tudo. Até mesmo para alimentar Putchi. A cadela sabe que, com determinado gesto da mão, é hora de comer. Mas há também sinais para os truques que deixam todos derretidos.

Um cisma insanável?

Mariana sente-se num limbo. Entre a ciência e a comunidade surda. Por saber que o cisma entre as duas realidades é antigo e difícil de ultrapassar. “A questão é aquilo a que se chama ciência. Porque também existe muito trabalho académico que aponta para outra direção. Existem áreas como estudos surdos, como estudos culturais, que convidam cientistas e juristas a entenderem as coisas de outra forma”, atesta a investigadora Cristina Gil. 

Também Mariana concorda que “o modelo médico centra-se no ser humano perfeito”. “E é isso que tentamos fazer: resolver problemas. Mas há outras coisas que precisam de ser perspetivadas, como o modelo social. Não podemos perspetivar apenas a comunidade surda como algo que está avariado”. Como explicou o segundo capítulo desta reportagem, os surdos não se veem como pessoas com deficiência. Pelo contrário, consideram ter uma identidade, cultura e língua próprias. 

Por isso, Mariana é sempre ponderada em cada resposta que dá. Sobre algumas, ficou a refletir durante dias. Mas de uma coisa tem a certeza: “Enquanto médica, não vejo as pessoas surdas como tendo uma doença grave. Há várias evidências que o demonstram. Conseguem facilmente evoluir na vida. As pessoas não têm problema nenhum em termos de saúde mental ou física. São pessoas felizes. Onde está a doença grave?”. É uma reação ao facto de a surdez figurar na lista de doenças que podem ser eliminadas através do teste ou diagnóstico genético pré-implantação, com o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida a definir “doença grave” como aquela que causa “sofrimento significativo e/ou morte prematura”. 

Para Mariana, é a natureza que deve decidir se uma criança nasce ou não surda. “Para mim, a cor do cabelo, a cor dos olhos, o ser-se surdo é igual. Estão no mesmo nível. A questão de colocar ou retirar a surdez não é seguir as regras da natureza. Eu percebo as duas partes, as que querem ter crianças ouvintes e as que querem ter um filho surdo. Para que seja mais fácil essa interação na família, para que a vida seja mais fácil, para que se salve o legado da comunidade surda. É discutível se está certo ou não. Para mim, de uma forma ou de outra, não é ético”. 

Mariana usa gestos para comunicar com a cadela Putchi

Da eugenia à disgenia

A ciência, através do teste ou diagnóstico genético pré-implantação, permite selecionar embriões, garantindo que eles não transportam os genes responsáveis pela surdez. Mas também permite o extremo oposto, abrindo a porta a muitas questões. É ético ter-se um filho sabendo que ele transporta uma limitação aos olhos da sociedade? Mas, e se essa característica não é vista pela comunidade que a tem como um defeito? Onde começa e acaba a doença? Existiriam limitações se a sociedade se tivesse adaptado à diferença?  

Quando se fala de genética e seleção de embriões, recuperam-se receios antigos. Em especial, o da eugenia, da tentativa de melhorar a espécie. O nazismo e a sua procura pela “raça perfeita” continuam a alimentar muitos dos receios, adaptados aos novos tempos. 

“Em situações como estas, ainda que a técnica permitisse escolher um bebé louro e de olhos azuis, a lei não o permite. A lei não permite estratégias que tenham em vista promover a criação de um bebé com algo que se considere que lhe vai dar uma vantagem evolutiva”, explica Samuel Ribeiro, médico especialista em Medicina Reprodutiva e coordenador científico do IVI Lisboa. 

Mas há um conceito para descrever precisamente o oposto: o de transmitir deliberadamente uma característica que a sociedade, na sua maioria, encara como uma doença. Chama-se disgenia. O que é melhorar? O que é piorar? Não há respostas fechadas. 

A consciência do médico

Se a lei fosse outra em Portugal, poderia um médico levar a cabo uma prática disgénica? Poderia um médico aceder ao desejo de uma família surda de ter um filho igualmente surdo? 

“Os médicos têm princípios éticos muito sólidos. Um deles é não prejudicar os interessados. Consideraria não ético que se recorresse à tecnologia genética para, por exemplo, introduzir no embrião o gene da surdez. No fundo, íamos condenar aquele embrião a ter uma condição – podemos depois dizer se é uma doença ou deficiência – que vai limitar o seu desenvolvimento futuro”, reage Rui Nunes, médico e presidente da Associação Portuguesa de Bioética. 

Neste campo de estudos, a bioética, há um direito que é invocado neste tipo de situações. Chama-se “direito a um futuro aberto”. Prevê a liberdade para que, quem nasça, tenha uma vida com autonomia e possibilidade de desenvolver os seus talentos e capacidades totais. Os médicos só devem atuar neste sentido, presumindo “o melhor interesse” de quem irá nascer. “As crianças não são propriedade dos pais. São seres com identidade própria, que amanhã vão ter autonomia pessoal. E que têm direitos”, insiste Rui Nunes. 

Também Alberto Barros, médico especialista em genética médica e membro do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, alinha nesta posição. Para ele, passar deliberadamente uma característica dita negativa à geração seguinte iria “subverter a essência” do teste genético pré-implantação, porque o grande objetivo da classe médica é “evitar que os problemas surjam”. 

Mesmo que, para um surdo, essa surdez não seja vista como uma deficiência ou limitação? “A comunidade surda insiste que é uma característica e não uma patologia. Não vou comentar. Sou médico. Respeito. E declaro claramente que, se alguém viesse ter comigo para me pedir, mesmo que a República Portuguesa não tivesse lei, explicaria com todo o respeito que não aceitaria, porque iria contrariar aqueles princípios que penso que são básicos no ato médico”, garante Alberto Barros.

Mas num cenário hipotético, em que a lei nacional autorizaria o procedimento de selecionar embriões com uma doença conhecida, a consciência do médico seria o último garante. “A pergunta é: se a lei o permitisse e a deontologia médica o permitisse, quem sou eu, que sou um simples cidadão e um simples médico, que nem pertence à comunidade, para não o fazer? Mas, antes disso, tem que existir esta discussão pública sobre o que isto levanta”, completa Samuel Ribeiro.

Em 2007, um parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre o teste genético pré-implantação era categórico sobre o tema e dava, precisamente, o exemplo da surdez: “Em registo contrário ao da seleção de embriões para prevenir o desenvolvimento de doença grave, têm surgido pedidos de casais afetados por doenças de natureza genética que desejam selecionar os embriões de modo a terem filhos igualmente afetados (v.g., nanismo por acondroplasia, surdez congénita), com o argumento de que estes seriam mais facilmente integrados na família. No entanto, tendo presentes as múltiplas e irreversíveis desvantagens que afetarão a vida da pessoa gerada, este procedimento não é considerado ético”.

“Ação dolosa”. Como uma escolha poderia levar os pais à justiça
E se uma criança nascesse mesmo surda por vontade dos pais? E se ela descobrisse que não ouve por escolha de outros? E se ela se revoltasse com essa escolha? Em última instância, poderia, ao chegar à idade adulta, exigir que os pais fossem responsabilizados perante a lei.

“Há uma ação que temos de concluir que é uma ação dolosa. Nesses casos, poder-se-ia suscitar, se isso na prática fosse feito, a responsabilidade civil por criação de um dano, que é a criação da vida de uma pessoa com uma deficiência. A pessoa visada é o principal beneficiário da procriação medicamente assistida, não são apenas os pais”, simplifica Rita Roque de Pinho, advogada especialista em Direito da Saúde.

Mas, para que essa ação tenha sucesso, e os pais acabem julgados, há que provar o nexo causal – e é isto que pode ser mais complicado perante a lei. “Porque a não prática desse ato, que gerou o defeito, levaria ao não nascimento da criança. Mas, se fosse outro embrião, não seria a mesma criança, seria outra”, explica a advogada. Ainda assim, há uma doutrina que encontra uma solução para este dilema: “Não se pode comparar este dano com o direito à não vida, mas sim com o direito à vida saudável”.

Em causa está o sofrimento que pode ser causado à criança por ser surda (ou outra característica passível de seleção genética), uma vez que esta se trata de uma característica “irreversível e que marca diretamente esta pessoa ao longo da vida”, com impacto no desenvolvimento da sua personalidade. “A comunidade não se esgota ao pai, à mãe e à família nuclear. Uma pessoa realiza-se nas suas atividades, na sua profissão, nas artes, nas atividades sociais que desenvolve. Essa opção dos pais limita e condiciona as suas oportunidades”, insiste Rita Roque de Pinho.

E atesta: “É eticamente reprovável uma solução desse tipo, que implicaria provocar deliberadamente uma doença a um ser humano. Doença essa que pode ser uma doença grave”. A lei portuguesa está alinhada com a bioética, seguindo o “princípio de beneficência”. A procriação medicamente assistida tem de ser feita tendo em conta o benefício dos pais e da própria criança que irá nascer. Mas, como essa criança não tem poder para dizer o que quer, os médicos partem de outro princípio: iria a criança consentir ser surda? Na dúvida, alinham-se com a visão predominante na sociedade. Pressupõem que não.

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