
Naquela manhã de terça feira, dia 17, eu já só esperava por um “podes ir”.
A urgência de informar, ser olhos e voz dos outros, está-me no sangue. Quando o meu telefone tocou e era o Flávio a perguntar “Então, miúda, a que horas saímos?", soube que estava nas mãos certas.
O Flávio é repórter de imagem. O Flávio é uma espécie de lufada de ar fresco. Consegue ser vida e leveza no meio do caos. Tem sempre um sorriso e uma piada pronta. Eu precisava do Flávio. Não sabia ainda, mas precisava muito de ter o Flávio ao meu lado nestes dias. A ele juntou-se o Filipe. Um amigo que a profissão me deu. É fotógrafo. Chamo-lhe binómio. Está comigo em quase todas as frentes. Temos o mesmo sentimento de missão e a “loucura” de ir sem pensar duas vezes. Conhecemo-nos a acompanhar as claques de futebol e agora não há desordem pública, catástrofe ou crime que nos separe. Tem o meu olhar.
Há muito que lhe tinha prometido que um dia viria comigo nas minhas muitas aventuras.
Liguei-lhe: “Filipe: faz as malas, vamos embora.”
A resposta dele, que é de resto a frase que o move: miúda, eu “só vou”.
E assim foi. Só fomos. Os três. Sem destino definido. A meio do caminho logo se veria onde seríamos mais precisos.
Chegámos a Águeda horas depois. Seguimos a maior coluna de fogo que vimos, estava a rondar Santa Rita, em Valongo do Vouga. Já lá tinha andado o fogo de madrugada. Ali ninguém dormiu. O cansaço, o desespero no rosto de quem vê as chamas a aproximar-se das quatro paredes que levaram uma vida a construir. Sempre junto ao dono estava o Porto. Um cão rafeiro. Pequenino. Rodas baixas. De língua de fora e exausto. Dei-lhe água. Pediu-me festas. Lambeu-me. O dono disse que foi ele quem deu pelo fogo mais próximo. Já em tempos fora ele quem ajudara a dona, idosa, quando ela caiu no chão. Dá sempre o alerta. O Porto queria muito carinho e atenção mas cada passo que o dono dava, ele seguia. O fogo chegou perto do muro. Esteve lá no alto a devorar as árvores e a ameaçar entrar terreno dentro.
Foi a população que o olhou, olhos nos olhos, e o enfrentou. Contou depois com as mãos e a trabalho de uma corporação de bombeiros que apareceu como por milagre. Tinha ainda muito por onde arder, mas o fogo foi travado a tempo.
Seguimos depois para outra localidade. Estradas cortadas. Militares a impedirem a passagem. Até mesmo dos jornalistas. Faziam o trabalho deles. Nós o nosso. Respeitámos. Não queríamos ser mais um fardo.
Entre atalhos e localidades com nomes que não lembra a ninguém encontramos um ponto alto onde vimos um mar vermelho a matar a floresta. Era como vê-la a gritar por ajuda sem que nada pudéssemos fazer. Àquela hora já não podíamos fazer mesmo nada. Mas se todos tivéssemos feito alguma coisa antes, ela não estaria ali a arder. Achamos sempre que a solução é afogar o fogo. Devemos, sim, matá-lo à fome. Tirar-lhe o combustível. Não permitir que a floresta cresça como quer.
02
O Nuno, o bebé Fernando e o gato-cão Lulu
A caminho de Oliveira de Azeméis, mais uma estrada cortada. Voltamos para trás e ficamos em Silva Escura, Sever do Vouga. É lá que conhecemos o Nuno. Mete conversa connosco quando nos vê a olhar para a serra a ser devorada pelas chamas.
“Andei toda a noite a apagá-lo ontem. Esteve ali a rondar-me a casa que é feita sobretudo de madeira. Ainda não dormi, mas olhe que isto só pode ser fogo posto. De noite vimos duas carrinhas a andar por ali e pouco depois o fogo pegou por tudo o que é lado. É uma tristeza.”
Estávamos a poucos minutos do nosso direto para o Jornal Nacional. Pedi-lhe que esperasse ali comigo para me contar a história dele para a televisão. Aceitou.
Enquanto esperávamos contou-me que tinha sido pai precisamente no dia em que o fogo lhe bateu à porta.
“Fui ver o menino (Fernando) e a minha mulher ao hospital a correr mas só depois de apagar o fogo. Não queria que ficássemos sem casa para receber o meu bebé. É o primeiro. Saí do hospital e voltei para aqui. Ele (o fogo) vai lá ao longe mas se o vento muda chega aqui rápido.”
Quando dei por mim ouvi um miar. A noite já estava cerrada. Era o fogo que iluminava os céus. E a lua vermelha como que a sangrar.
Apontámos uma luz para o chão e lá estava ele, o Lulu. Um gato-cão. E chamo-lhe assim porque onde quer que o dono fosse, ele ia. Ao som de uma ordem, obedecia. Pediu-me mimo. Ficava também ele, quase como se fosse um retrato pronto a ser tirado, a olhar para as chamas. Aninhou-se nos meus pés. Esfregou-se no microfone. Pediu carinho. Dei-lhe colo.
O que sentimos nestes lugares não se explica. Dei por mim ali, assim, com um gato-cão no colo, a ver o meu país a morrer mais um bocadinho. Fizemos o nosso direto. Pelo meio ainda brinquei com o Nuno. Disse-lhe que ia voltar para conhecer o seu pequenino. Gostava de cumprir essa promessa.
Desejámos uma vida cheia de felicidade ao Nuno, ao bebé Fernando, que um dia ouvirá falar do fogo que quase lhe roubou a casa, e ao Lulu, o gato que ficou eternizado na fotografia que o Filipe me tirou.
Seguimos caminho, cansados. Eu, o Flávio e o Filipe. Exaustos, diria. Seguimos rumo a Mangualde. O dia já tinha sido longo. Saímos cedo de Lisboa e o que a noite nos prometia nem nós sonhávamos.
Foi numa pequena aldeia cujo nome me esqueci, é um defeito meu não conseguir decorar nomes. Nem de locais, nem de pessoas. Quando o Flávio e o Filipe lerem este texto vão-se rir. Sabem bem do que falo.
Quando lá chegamos, um militar da GNR já com os seus 50 anos mandou-nos parar o carro. Foi o mais simpático de todos. “Eu entendo tanto o vosso trabalho, mas o vosso carro ali só vai atrapalhar. Percebam que a prioridade são estas pessoas. Eu deixo-vos ir mas sem a viatura”. E assim foi. Estacionamos. Agradecemos o sorriso. O presidente da junta vê-nos. Oferece-nos boleia. Damos por nós em cima uns dos outros, apertados nas traseiras de uma carrinha fechada no meio de águas, ferramentas e fruta rumo à aldeia em chamas.
Quando lá chegamos, vemos o inferno. O fogo já consumia as árvores e ameaçava várias quintas e animais. O desespero de quem ao telefone ligava aos proprietários. Aquela localidade tem poucas famílias que lá vivam de forma permanente. Mas ainda as há. Ao fundo da rua, um clarão enorme vermelho, laranja e amarelo quase que chamava por nós. Era ele. O inimigo impiedoso a vangloriar-se por já ter galgado os muros e estar na aldeia.
Ao longe ouvimos ums gritos. Uma mulher pede ajuda à guarda: “Senhor guarda, por favor, há pessoas nas casas. A minha amiga atendeu-me o telefone finalmente e disse-me que está em casa com os meninos e o marido. Uma criança de nove anos e um bebé de um ano. Por favor, salve-os. Por favor lhe peço. Tem de os tirar dali. Vão morrer ali. Estão cercados”.
A aflição foi geral. Já é grande quando são adultos. Mas um bebé? Uma criança? Uma família inteira?Tínhamos todos de fazer alguma coisa. Tínhamos todos de impedir. Os bombeiros avançaram. A mulher e os filhos foram colocados no centro da aldeia em segurança. O marido não quis. Disse que não saía de casa. E não saiu. Disse que não ia perder a casa que tanto lhe custara erguer. E não perdeu. Durante toda a noite o fogo comeu a encosta.
Eram quase 7h da manhã quando chegámos ao hotel. Estávamos famintos. Exaustos. Desolados. Fomos todos tomar banho e sentámo-nos na mesa do pequeno-almoço a pensar no que aquele dia ainda nos ia reservar. Fomos dormir. Pouco. Horas depois já andávamos novamente por terras e terrinhas. Os telefones tocam. São as famílias. As nossas. Querem sempre saber como estamos. Se estamos bem. Se o que vimos e vivemos nos mantém vivos. Sobrevivemos.
Seguiram-se dias assim. O fogo ameaçava de um lado. Prometia descer por outro. Esperamos por ele no Caramulo. Enquanto lá estivemos só víamos fumo. As chamas ainda estavam longe. Deu para ficarmos os 3 a pensar no que já tínhamos feito e ainda íamos fazer. Deu para contemplar a serra. As ovelhas. Até o velhote que durante uma hora ficou numa cadeira no cima da sua varanda a olhar para nós. Talvez meio adormecido, com o sol que lhe batia na face. Talvez a vigiar por onde andava o fogo. Lanchámos ali. Tínhamos passado num supermercado no primeiro dia e enchido o carro com comida e águas. Nunca sabemos quando voltamos a parar e se conseguimos comida pelo caminho. Eu e o Filipe informamos no grupo do Whatsapp os amigos em comum. Queriam sempre saber de nós. Enviámos fotos e vídeos como que na brincadeira. Só os queríamos tranquilizar. Queríamos que não sentissem o que já tínhamos sentido. Olhávamos um para o outro sem dizer nada mas a sentir aquele carinho e preocupação que nos têm. Tentamos ao máximo quase que desvalorizar (meninos, não leiam agora isto ou ainda vão gozar comigo mais tarde, mas as vossas palavras foram abraços. Eu e o Filipe sentimo-nos abraçados)
O Flávio ligou para casa. Queria saber da sua Carminho. A menina dos olhos dele. Loira. Bonita. Com saudades do pai. Só sabe que está a trabalhar. Não sabe onde nem a fazer o quê. Nem imagina o que o pai viu.
O vento “de Espanha” (como alguém o apelidou) não trouxe o fogo até nós.
Seguimos rumo a outro lugar. Foi em Matados que ficamos quase toda a noite. Assim que chegamos, David, um amigo de escola do Filipe, reconheceu-o.
- Filetes? És tu? Aqui? Foi preciso esta tragédia para nós voltarmos a ver? Dá cá um abraço.
"Filetes". Era assim que o Filipe era carinhosamente apelidado pelos colegas de turma, por ser magrinho.
Quem diria. Tantos anos depois, reencontram-se. O Filipe a registar o fogo. O David com a casa na linha frente. Era a segunda na lista das chamas. Juntou-se um pequeno grupo à nossa volta, ofereceram-nos água,casa de banho, comida e conversa boa. Sobre a vida. O medo. Sobre tudo.
O fogo dançou por entre a colina. Veio, foi, desapareceu e regressou com mais força mas morreu algures durante a madrugada, combatido pelas corporações do Algarve. Que a tantos quilómetros de distância de casa foram quem salvou Mangualde. Estávamos também preocupados com o Tiago. É nosso colega da TVI. Mas é antes disso bombeiro e muito antes disso pessoa. Foi chamado, para estar ali na linha da frente. Foi incansável. Ele e os colegas que se emocionaram quando (também eu emocionada mas a conseguir disfarçar) lhes agradeci em direto pela entrega e bravura. Bastou um “obrigada” para se sentirem reconfortados. Foi uma noite longa. Dura. Regressámos ao carro. Estava muito frio. As temperaturas desceram drasticamente. Eu tinha fome, sono, frio e frustração.
A meio do trajeto olhei para o banco de trás. O Filipe já tinha os olhos fechados. Foi quando o Flávio me disse: "Há muito que já o perdemos, miúda, descansa agora também tu".
Assim foi. Embrulhada numa manta no banco, ao lado do Flávio, encostei a cabeça ao vidro e adormeci. Tinha dormido apenas duas hora na noite anterior. Sabia que qualquer minuto era uma oportunidade incrível de recuperar forças.
Mas o Flávio manteve-se ali. Acordado. Com fome. Cansado. A conduzir. Levou-nos ao hotel.
Descansámos por fim.
Seguiu-se a história do Luís Paulo.
03
A aldeia de Soutelo, que agora tem comandante
“Carol, queres ir contar a história de um jovem que sozinho salvou uma aldeia? Fica ali para os lados de Castro Daire, em Soutelo.” A voz ao telefone era da Raquel Matos Cruz. É uma das nossas diretoras. Tem uma voz doce. Conhece bem o terreno. Sabe sempre ligar na hora certa e dizer a palavra certa. Meiga. Com uma calma que lhe é característica. Parece que a estou a ver de telefone na mão a semicerrar os olhos azul-mar, como que a querer muito que eu entenda cada palavra que me diz. Continuou: “Foi o Tiago Palma que o descobriu, o nosso colega do online. Um miúdo novo que tem feito um trabalho inacreditável. Sabes quem é, não sabes?”
Não sei. Ou melhor, não sabia. Vivo a mil nesta profissão e o pouco tempo que estou na redação é feito a correr. Há sempre colegas novos. Outros que vão embora sem que lhes saibamos mais o rumo. Mas o Tiago não vou esquecer. Segundos depois recebi o artigo que tinha escrito para o online. E lá fomos nós até Soutelo. Li o texto do Tiago. Fiquei ali parada a pensar: amo televisão. Amo contar histórias. Mas UAU! O poder das palavras é incrível. Em televisão a nossa arma são as imagens. No online é o texto que vos faz sentir o que vivemos. Como este que vos escrevo. Mas o que o Tiago escreveu era um filme sentido em cada linha. Como é que um miúdo novo que eu nem sei quem é, nem nunca vi, escreveu “A” história de Soutelo que ficará para sempre marcada na aldeia. Terá ele noção que daqui a muito anos o Luís Paulo vai ser o comandante de Soutelo e que foi ele quem o deu a conhecer ao país? Por onde terá ele andado e o que terá vivido sozinho para chegar ao jovem herói?
04
A chegada a Soutelo, o António, o emigrante e a avó Adelina
Por entre curvas e contra curvas lá chegamos a Soutelo. O GPS indicou-nos o centro da aldeia. O GPS do carro, porque rede no telemóvel já não tínhamos há muito.
Dei de caras com o António. Roupa suja da limpeza das últimas horas. É que o fogo esteve mesmo ali. Foi o sino que lhes contou. O sino que tocou quando as chamas já vinham lá no alto. “Os jovens começaram todos a correr. O Luís Paulo juntou-se com uns quantos amigos. Eu estava com uma roupa bonita de festa mas fui mesmo assim. Não sabíamos se o fogo nos ia matar, se nos matava as famílias ou toda a aldeia”
Foi sentado nas escadas do coreto que nos contou o que os olhos viram e a memória não consegue apagar. Terminamos.
Ofereceu-nos bebidas. Andei mais uns metros. Uma senhora incrivelmente bonita, com a face cheia de rugas, olhava para mim com um olhar meigo. Gabava-lhe a beleza mas também a forma como aos 91 anos estava ali sentada por cima das bilhas do gás como se não tivesse uma única dor ou desconforto da já longa vida. Apoiada por uma canadiana disse-me: “Eu ouço mal.”
- mas é muito bonita! Como é que se chama?
Riu-se.
- Adelina.
É o nome de uma das minhas melhores amigas. Até no nome senti conforto.
- Vieram por causa do fogo?
- Viemos por causa do Luís Paulo, o herói aqui de Soutelo, não me diga que é a avó dele?
E era. Os olhos até brilharam. “Sou mesmo. (Que coincidência incrível) O meu Luís Paulo. Anda para o fogo. Deve estar muito cansado. Não dorme há dias. Ele é assim, joga-se. Não tem medo. Joga-se.”
A verdade é que nunca vi uma aldeia tão movimentada. Tratores a subir e descer as ruas. Motoretas. Velhotes à janela. Havia festa na aldeia no dia fogo. Estaria portanto muita gente por lá. Uns que moram perto, outros que estão lá fora a ganhar a vida mas escolhem esta altura do ano para vir à casa que será sempre casa. E há muitos que por lá ficaram nestes dias. Este fim de semana em que vos escrevo estas palavras havia casório. Festa rija. Vai a aldeia quase toda. Quase que não acontecia se o fogo não fosse travado por Luís Paulo naquela noite. Mas não é justo falar só dele. A Andreia acompanhava-o. E tantos outros jovens. Ele foi só o “comandante”. No trator do avô que só pega de empurrão levou água à floresta onde todos, ou quase todos, se juntaram para impedir a fúria das chamas.
Foi então que depois de 1h na aldeia perguntei em voz alta: “Mas afinal onde anda o Luís Paulo? É mais difícil de o encontrar que ao Presidente da República”. Um emigrante na Suíça mas orgulhoso de Soutelo resolveu logo. Ligou para o pai do jovem herói e pouco depois lá estávamos nos numa outra aldeia a pouco mais de um quilómetro na entrada para uma zona de vegetação.
Quando lá chegámos fui recebida por dois cães. Talvez a maioria das pessoas não entenda mas os cães são a minha maior paixão. Tenho muitas. Mas a tranquilidade e paz que me transmitem é tudo o que preciso. Quero sempre tocar-lhes. Mimá-los. Sem que saibam, foram o ar limpo que precisava de respirar naquele já longo dia. Voltamos a entrar no carro e subir um pouco mais, afinal o Luís Paulo estava mesmo na floresta. Saí do carro com o Filipe. O Flávio foi estacioná-lo onde não estorvasse. Subi a rua e ei-lo. Alto, jovem, com um ar cansado. Assim que me viu, perguntou: “És mais alta que eu?” Quebrou todo e qualquer gelo que pudesse existir na primeira abordagem. Ri-me.
- se calhar sou.
Remata: "Tenho 1,90 m".
O Filipe estava ali ao lado. Tirou-nos uma foto juntos para que não houvesse dúvidas que o maior era ele. Em tudo. A forma heróica como agiu ficará na história de Soutelo. O Flávio vinha agora carregado a subir a rua. Ele e a sua outra menina: a câmara com mais de 12kg que carrega sempre ao ombro e não larga nem por nada.
- Parabéns, puto! Grande trabalho!
Cumprimentou Luís Paulo.
O Filipe deu-lhe um abraço também. Já parecia que nos conhecíamos há muito tempo. Foi imediata a nossa conexão com o “comandante”.
Fomos conhecer o trator. Fizemos a entrevista. Enquanto isso, o trabalho estava a ser enviado em tempo real para Lisboa. A minha colega Margarida Neves de Sousa recebia-o. Ligara-nos momentos depois a rir e a confidenciar o quanto se tinha divertido a ver a forma como trabalhamos e brincamos com todos. É esta leveza que o Flávio me traz. Punha todos a rir. Mesmo quando a vontade era de chorar. Tirámos fotos com o Luís Paulo. Até lhe dissemos que era tempo de abrir uma página de fãs nas redes sociais porque ia ser um sucesso no Politécnico onde estuda, junto das “miúdas”.
Alto, espadaúdo e herói. Já nada lhe falta. Foi a forma que encontrámos para o deixar à-vontade. Estava nervoso com a câmara. Mas pouco depois já dizia que não tinha custado nada falar connosco. Soltou-se. Riu-se. Acho que em muitas horas de sofrimento aquele foi o único momento em que deixou de pensar no fogo. Despedimo-nos dele. Sabemos que não o vamos esquecer. Qualquer dia casa. Só gostávamos de saber se vai ser com alguma fã que agora a fama lhe vai trazer. Mas do alto da sua humildade só dizia: “Não queria nada dar esta entrevista sem os meus amigos. Eu sem eles não tinha feito nada, não sou nenhum herói.” Mas é. Ele é todos os que ali andaram. Não lhe conhecemos os rostos nem os nomes. Mas são heróis. Sem farda.
Podia continuar este texto, que já vai longo, mas ficaria aqui o resto desta minha folga a escrever-vos sobre cada uma das pessoas que se cruzou connosco. Da senhora que nos levou um saquinho com um bolinho de ananás devidamente cortado em fatias para cada um de nós. Aos bombeiros e pessoas que nos ofereciam água quando eles sim mereciam cada gesto bonito pelo tanto que fizeram.
Regressámos a casa. Esperámos uma hora no hotel para que nos dessem o ok: “Estão desmobilizados, regressem a casa, vão descansar e obrigada”.
Quase 300 km depois chegámos a Lisboa. Não posso esquecer o abraço que demos os três no parque de estacionamento da TVI. Eu e o Flávio abafámos o Filipe no meio de nós e gritámos: “Bora equipaa!”. Despedimo-nos. Cada um regressou ao colo de quem mais ama. Missão cumprida.
Sobrevivemos. E quando digo sobrevivemos digo que regressámos com a dor do que vimos. Já vimos pior. Não sabemos o que ainda voltaremos a ver. Tudo isto deixa marca. Colocámos as emoções naquele lado do coração que não queremos esquecer mas também não queremos lembrar.
Durante estes quatro dias não nos sai da cabeça as vidas perdidas. As vidas marcadas. Sobrevivemos quase todos. Menos a Sónia, a Susana, o Paulo e o João. Os bombeiros que perderam a vida no fogo para nos salvar a todos. Sobrevivemos quase todos menos o Carlos e dois idosos cujo fogo matou.
Sobrevivemos quase todos menos os animais acorrentados. A suinicultura que não viu uma alma ser perdoada. O aviário que virou cinzas.
Sobrevivemos quase todos menos aqueles que perderam as quatro paredes que levaram uma vida a construir. A culpa deve ser apurada. Não deve morrer solteira.
Sobrevivemos quase todos e não podemos ser hipócritas. Cada um de nós tem um papel. Se os terrenos estivessem todos limpos, como era suposto, a história que vos contaria aqui seria outra. Provavelmente nem existiria. O controlo deve ser maior. A punição também. É que em pelo menos sete famílias há um lugar à mesa que fica vazio. Falta o abraço. Falta também o agradecimento pelo tanto que foram e serão na memória de cada um a quem marcaram a vida.
Sobrevivemos quase todos. Menos aqueles, que ainda vivos, morreram por dentro.