Crónica || Aquilo que não vos contei (os dias de um repórter no fogo)
Incêndio Águeda (CAPA)

Crónica || Aquilo que não vos contei (os dias de um repórter no fogo)

Sábado, dia 21 || Lisboa

Texto
Tiago Palma

Uma semana, de Coimbra a Águeda, de Castro Daire a São Pedro do Sul, permitiu contar (e respeitar) muitas histórias — histórias de viagens, de perda, de heroísmo e de combate —, mas todas as histórias têm um lado b

Disse-me a Ana, “pede para ir”. Ouvia-se que o fogo tinha chegado nestes idos de setembro que já não deviam ser de fogo. A Ana é repórter, esteve na guerra, viu lugares onde falhámos, de desumanização, escreveu um livro sobre o que no mundo é vil — e faz uma lasanha de vegetais que é por camadas e demora horas a fazer; ela lá sabe.

A João e a Marvão arrancaram primeiro, senti uma inveja boa. Não me levem a mal: os cenários de reportagem, onde há fatalismo e ansiedade e crueldade e prejuízo, entusiasmam-me como jornalista, é onde o sou mais, não para ver por ver fatalismo e ansiedade e crueldade e prejuízo — e explorá-los, desrespeitá-los, me servir como que num festim de sensacionalismo e imoralidade, não ser digno  —, mas para vos contar, serem os meus olhos os vossos, para que nos doa, para que não nos esqueçamos. Volto à minha inveja boa. 

Eu trabalho na CNN há tão pouco tempo, a maioria da redação acena-me sem me saber ainda o nome, como poderia eu ir. Atirei o barro à parede, como graça para não ser mal interpretado: “Quem é que eu tenho de matar?” O Pedro riu-se e não respondeu nada em concreto. Abomino o nacional-lambe-cuzismo, embora lhe reconheça os méritos, e não vou insistir com ele. Passados minutos pede-me que faça uma pequena mala com roupa e que parta. Era final da tarde de segunda-feira, o trânsito estava bloqueado, “merda!”, desceu em mim o Travis Bickle na pressa de querer chegar, e cheguei. Não tenho uma esposa que me faça a mala — pun intended —, acho que ainda sei dobrar duas t-shirts, e segui até Torres de Mondego. 

O fogo ardia por Coimbra, numa pequena aldeia que só se avistava de baixo, Carvalhosas. Não queria só ficar cá por baixo, arranhar a superfície da história e ir para casa no fim do turno, queria subir, escavá-la — à história. É preciso ser-se persuasivo e paciente para rompermos uma barreira policial, um corte de estrada. Ao primeiro, é a boa-vontade do agente ou guarda. À segunda é “o posto” que rola os dados e, com um pouco de sorte, lá se avança, e ouve-se a frase: “Está por sua conta, se vir que não dá, volte para trás”. À terceira não passamos, se está mesmo em cima, o fogo, não passamos, “porque só vai lá atrapalhar os bombeiros”. 

(Mãe, não leias esta parte: eu quero passar. Não arriscar por arriscar, mas estar onde está gente. Quando todos saírem, também eu sairei.)

Frustrado por não subir para Carvalhosas, encontrei (a sorte dá muito trabalho, mas aqui foi mesmo sorte) a Zulmira, o Celso e a Ana, frustrados igualmente, queriam só chegar até à sua aldeia e proteger a sua casa se preciso. A reportagem conta quase tudo de como atalhámos pela serra dentro, procurando entrar nas Carvalhosas por trás — que é Palheiros. Não conta que terá sido por alguns, poucos, minutos que numa estrada sem volta, estreita, breu, não ficámos cercados pelo fogo que galgava veloz ao sopro do vento. Não conta que um jipe da GNR me desviou de forma pouco meiga, que exasperei aquele guarda por insistir num “então, mas se não é por ali, é por onde?” Não tinha de ser. E contei a história da família, porque, afinal de contas, “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. 

Queria escrever sobre quem perde tudo, roubados pelo fogo. Já havia feito em Pedrógão, é talvez o género de reportagem mais filigranica, porque se é certo que te querem falar — e quase te aguardam à porta, aguardam que alguém, proteção civil, municípios, chegue e nunca chega —, a fragilidade é evidente e importa ao repórter peneirar o que é de interesse contar (porque contando, alguém virá) e o que é da intimidade. Nem todos os sofrimentos são intimidade. Mas quando são, procuro não escrever. Ouço, porque aquilo não é só uma entrevista; é ouvir, ouvir sempre mais do que só procurar o soundbite para as pageviews e para o search engine optimization e… esgotaram-se-me os anglicismos. O Leonard Cohen escreveu de chofre: “Se quiseres impressionar-me ao falares de amor mete a mão no bolso ou por baixo do vestido e toca-te”. É isto, é. Ouvir, ouvir sempre. E amparar quem quer — e só quem quer —, porque “cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. 

Não escrevi que vi o António com os seus animais no colo, para enterrá-los, e que me pareciam adormecidos. Não escrevi que o António só chorou porque chorei — e que me senti mal ao tirá-lo já de um estado absorto, porque o tempo dele não devia ser o meu. E outras coisas não escrevi da Fernanda, e do Alain, e da “vizinha”, porque não quero e não vou. Volto ao senhor Cohen: “Não estamos interessados na agonia dos teus órgãos remexidos. Não há nada que possas estampar no teu rosto que se equipare ao horror desta época. Nem sequer tentes.”

A liberdade do jornalista importa, mais ainda num tempo de redações esvaziadas — esvaziadas não; esventradas! —, mal pagas quando pagas, onde vai e vem (e aqui vou citar o Fernando Alves) “gente que não é fiável e que trata deste assunto sagrado como miúdos que desmancham um brinquedo”. Na CNN fui por estes dias livre, procurei as histórias com tempo, ou “sem”, talvez seja agora neste tempo privilégio, é certamente, mas o jornalismo demorado traz as melhores histórias, saibamos nós honrá-las. Eu tentei. “Andei lá perto, estive mesmo quase” — lembrei-me do verso do Vasco Graça Moura. 

Livre, em Viseu encontrei o padre Pedro. Quando me chegou, em São Martinho das Moitas, o primeiro que lhe disse foi que “o julgava mais entradote”. Conversámos por horas e por horas e, além da história, aprendi que nas aldeias ali das beiras se reconhecem as pessoas pelo rolar dos pneus. O senhor Alfredo, herói octogenário de Covas do Rio, ofecereu-me hidromel, ainda eu não tinha almoçado, a Rosa ofereceu-me sopinha, e ficava já almoçado, e no fim os dois trouxeram-me castanhas. Apanharam-nas pouco antes do castanheiro arder. Recusei. “Ai leva, leva!” Como em casa, de pequeno, nunca pude dizer não a uma mulher de Castro Daire, nem arrisquei. 

Na volta da reportagem com Pedro, o padre, encontrei um piquete de telecomunicações. Um rapaz ainda novo, sozinho. A estrada por onde se descia estava muito maltratada, árvores derrubadas pelo incêndio, postes caídos também pelo fogo — muitos, mesmo muitos. O jovem rapaz aparentava estar atarantado. Guardei a resposta dele quando faço conversa de circunstância, do que fazia ali: “Pois, é que me disseram que havia por aqui pequenas falhas nas comunicações”. Não são pequenas, demorarão semanas para reparar e vários piquetes como aquele. 

Se esta história do ingénuo piquete é divertida, a de que me orgulho mais é a de Luís Paulo e da Massey Ferguson que ele comandou — leu aqui primeiro, não se engane com réplicas originais. Escrevi-a de impulso, num café em Castro Daire. Uma jornalista de uma televisão que não esta de onde vos escrevo — não direi que é em Laveiras, mas é em Laveiras —, encontrou-me por lá, cumprimentou-me efusivamente, “bem, há tanto tempo!” É que nunca a vi. Mas fiz por cumprir o que diz o regulamento em situações como esta, “pois é, aqui estamos”. Ela foi, eu continuei até de noite.

A história que vou escrever a seguir pensei bastante se escreveria ou terminaria aqui. Ao sair de onde estava, de volta ao hotel, em Viseu, vi-me encurralado por chamas na estrada. De ambos os lados, fagulhas a baterem-me nos vidros como gravilha, um fumo tão negro que não se via um metro de estrada à frente. Tive medo. Mantive-me na estrada, inverter os sentido não me era possível, mantive-me moderado e constante na velocidade, quatro piscas ligados, as luzes de nevoeiro ligadas, e esperei, esperei, esperei, por 10 minutos não me cruzaria quase nenhum carro. Vou usar de uma frase-feita, que se lixe: sim, pareceu uma eternidade.

Liguei ao Miguel. Não sei, conscientemente, porquê. Não tive medo de morrer. Mas não queria morrer sozinho. Não ali. O Miguel levou-me à escola no primeiro dia. Ensinou-me o grunge, Morphine, Sérgio Godinho e o Miles Davis. Ensinou-me a andar à porrada — até que um dia me pontapeou nos dentes e a mãe se chateou com ele. Ensinou-me a lavar bem os dentes. O Miguel disse-me que ia correr bem. Como no primeiro dia na escola. E voltou a estar certo. Quando chego ao hotel, ligo a alguém que me faz falta, que não tem estado — e, ainda assim, lá está todos os dias, em todas as coisas e lugares e horas. Contei-lhe. Não me recordo do que falámos. Haveremos de nos ver de novo. 

Não sou cronista. Esta crónica é agora, terminada, mais de jornalismo do que de incêndios. Percebo um pouco mais de jornalismo do que de incêndios. Certamente gosto bem mais de jornalistas do que de incêndios — não gosto de incêndios. Gosto do Fernando Assis Pacheco, jornalista. E destes versos do “Poeta no Supermercado”: 

Cheio de luz — como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio de mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.

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