Cazuza é da Portela de Carnaxide, é boxeur e treina os putos do bairro. "O que é que falta? Amor, temos de amar os outros mais do que a nós"
REPORTAGEM || O bairro de Oeiras tornou-se, mesmo que só por algumas horas, num lugar de violência e desordem, entre viaturas (incluindo um autocarro) queimadas, cercos de estrada e tiros. Mas um bairro não se pode contar por algumas horas. Conta-se, isso sim, pela voz, e talento, e trabalho, e mudança de quem é de lá. Esta é a voz e a história de Kevin, “Cazuza” nos ringues, nado em Cabo Verde, criado na Portela, um educador de, mais do que lutadores, cidadãos que lutem por direitos — sempre, sempre sem violência
A Portela é colada à Outurela. Estamos na Outurela. Da Portela falaremos adiante.
No pavilhão desportivo do bairro, entrados sem porteiro, descidas umas escadas espirais, percorremos um longuíssimo e estreito corredor onde já se escuta ao fundo um sino que toca a cada três minutos. Denuncia, o sino e o som de pancadas secas em sacos, que ali se joga boxe. Àquela hora, já hora de almoço, apenas dois alunos se treinam com António, ou “mestre Ramalho”, fundador da Boxing Spirit, uma escola que treina boxeurs, muito jovens e menos jovens, quase todos oriundos daqueles dois bairros que rimam, Outurela e Portela, bairros pobres, de crianças que sejam talvez mais atrevidas, mas não insolentes, mais desavindas, não violentas.
O trabalho é, além de desportivo, além de socialmente responsável — há refeições, salas de estudo, artes plásticas também —, esse, precisamente esse: educar. Educa hoje quem já foi o educado. Kevin Sanches, o “Cazuza”, alcunha do bairro da Portela que subiu ao ringue.
Kevin nasceu em Cabo Verde, a mãe veio à sua frente, Kevin mais tarde, aos sete anos. Não conheceu outra casa, outro bairro que não o da Portela. Terminado o treino, que termina já sem boxe, em séries de abdominais e suor a escorrer do rosto e a encharcar as roupas, Kevin conta-nos o que é viver lá, na Portela que foi notícia na última noite pelos piores motivos, pelos desacatos, destruição, jovens revoltados que pilharam, incendiaram, dispararam até, cortaram estradas e deixaram sobressaltados moradores.
“Violência? Não faz sentido. O que aconteceu [morte de Odair Moniz, na segunda-feira], aconteceu, é muito triste, a polícia não o deveria ter matado, prejudicou uma família, mas não podemos prejudicar o nosso próprio bairro só para dizer que estamos infelizes”, lamenta “Cazuza”, apelando ao diálogo ao invés do crime: "Se estamos infelizes, falamos. É a falar. Com calma. Não pode ser assim. Se incendeias carros, autocarros, se há pedradas, tiros, prejudicas pessoas, não faz sentido. É perda de tempo”. Do tanto tempo que lá tem de morador, garante que a Portela é “tranquila” e “pacífica”, “há bastante convivência” e, ao contrário de terça para quarta-feira, uma madrugada a ferro e fogo, “ninguém prejudica ninguém”.
“Não estava à espera que uma morte num outro bairro se estendesse aqui e a vários sítios. Nomeadamente aqui. Eu percebo que os dois bairros [Zambujal e Portela] são próximos, o senhor [Odair] até pode ter amigos noutros bairros, conhecem-se, talvez a indignação resulte de se pensar que é racismo [a morte às mãos da PSP], de isto ser injusto, de quererem condenar o polícia [que disparou], mas isto já parece aquelas situações da América, sabes?, onde um polícia matou um preto, nada acontece [na justiça] e a população revolta-se. Mas isto não é justiça”, lamenta “Cazuza”.
Conversamos num recanto do ringue. Entre cordas, o esguio atleta é confiante, fora parece nervoso, mas sorri, sorri sempre, estala os dedos entre as respostas, abrevia respostas, repensa-as e alonga-se. Acontece quando falamos de racismo. Se muita da revolta nos últimos acontecimentos, na Portela e em diversos bairros, se deveu ao racismo, já terá Kevin sentido o mesmo? Racismo e revolta? Começa por dizer que talvez não. “Não pode ser isso que te vai desencaminhar. Se tu queres andar perdido, tu andas perdido. Eu, felizmente, encontrei o boxe e trouxe-me disciplina mental. Não treinar como treino deixar-me-ia perdido. Talvez em más companhias. Às vezes precisamos de estar sozinhos, ou com Deus”, responde, de rosário no peito, e reforça: “Não é a mandar os problemas todos para fora, a causar ainda mais problemas. Trabalhar o físico, trabalhar a mente, ler, ler mais, isso ajuda-nos”.
Em seguida, revolve na memória e diz que sim, que sentiu, e sim, que há racismo.
— Mas respondendo-te: sim, claro que senti racismo.
Hoje não liga. “Não. Palavras são palavras. Mas quando na escola me batiam, e o professor não fazia nada, deixava acontecer, como se fosse culpa minha, aí sentia-me muito injustiçado. Eu devia ter uns oito anos. Era criancinha. A sociedade marginaliza quem cresce num bairro pobre. Logo à partida, marginaliza. Somos julgados. Por isso e por sermos pretos. O que é que faço? Não posso fazer nada. Aceito. Só aceito. Deixo a Deus o trabalho de julgá-los”, confessa.
Muitas das crianças que ensina, que educa, recolhe-as logo na Portela. Nem precisa de procurar; procuram-no. “Eu ando no bairro e cumprimento-os a todos. Sabem que faço boxe, trouxe muitos para aqui treinarem. Às vezes até me pedem para lhes ensinar algumas coisas.” Se na Portela é cordial, no ginásio é rígido. Tem um código de ética e nunca por nunca abdica dele. “Hoje, como professor, no caso de boxe, ensino as crianças a não se perderem, a não sentirem o que senti [injustiçado pela discriminação], a não tratar mal, não ofender. E se o fizerem, sou rígido. Rígido mas calmo, converso, digo o que é errado, o que é certo. O que lhes tento é dar disciplina. Há um ‘código’: se empurram, se batem, se prender, flexões! Flexões”, assegura “Cazuza”, acabado de as fazer.
Decidimos sair do ginásio da Boxing Spirit — e é tempo de rumar à Portela. O percurso é brevíssimo, 10 minutos (uma descida, duas subidas) a pé. Adiante, numa descida, o rasto, negro, do autocarro que ali ardeu. “Eu quando vi o autocarro a arder nas notícias, e depois da janela, pensei ‘o que é que se está aqui a passar?!’ Nem queria bem acreditar. ‘Mentira! Pegaram fogo ao autocarro?!’ Ainda pensei ir lá, mas ouvi tiros e fiquei no meu canto”, recorda. Kevin sempre foi muito do seu canto, “nunca fui de rua”. “Gostava de ficar em casa, sozinho. Mas a convivência [na Portela] é boa. E não há perigo, é tranquilo, mesmo sair à noite. E mesmo a relação com a polícia é boa, passam, observam, seguem. É o que eu acho. Agora não, claro, porque têm de intervir, porque havia fogo por todo o lado. Vêm pela nossa segurança”, assegura.
Nem sempre uma relação polícia-morador é de pacifismo e cordialidade. Kevin sabe-o bem. “Ainda assim, [as crianças] devem respeitar os polícias. Não é ter medo da polícia! Não podem ser revoltados. Mas isso vem também da educação em casa. A criança não pode ser perdida, andar perdida. Se crescer na rua, cresce revoltada.”
O lugar das mães, mães africanas, matriarcas, é primordial e respeitado num bairro social. Mas nem sempre podem estar presentes. “Eu cresci algum tempo longe da minha mãe, ela veio para cá, eu fiquei em Cabo Verde, depois quando vim ela acordava cedo para trabalhar — ela tinha dois trabalhos —, às quatro da manhã, voltava de noite, às oito, nove horas, era difícil. Mas eu não me revoltei, quis recompensar tudo, o esforço. Agora é a minha vez de me esforçar. Eu tive uma guerreira. Guerreiras criam filhos responsáveis. Nunca saí do rumo”, garante, grato.
Falámos do que é bom, do que é menos, importa perguntar o que é que falta. “Amor, amor próprio. Bastante mesmo. Quando tu tens falta de amor próprio, quando não estás bem contigo, descarregas a tua raiva nos outros. Às vezes as pessoas julgam que porque sou lutador, quero logo bater. Mas não, nunca lutei na rua. Tento falar. E tentar manter a calma. E é isso que faço enquanto treinador, sobretudo com crianças do bairro, falo-lhes das minhas experiências, das más, ensino a ficar mais calmo, porque violência vira mais violência.” Kevin Sanches, o “Cazuza”, não quer ser um exemplo, o que quer é “ensinar boxe”. E humildemente nos diz: “Não tenho de provar nada. O que quero é dar o melhor de mim. Não sou melhor que ninguém, ninguém é melhor que ninguém. Toda a gente é igual. Tens é pessoas que se amam mais a si do que aos outros e temos de amar os outros mais do que a nós.” E insiste no que a todos falta: "Falta amor”.
Chegámos à Portela. Ainda há vestígios de incêndios. Um carro queimado ainda na rotunda. O bairro aparenta serenidade — circulam mais veículos que gente até —, uma normalidade mal dormida, mas há nos olhares, em esplanadas, do observar às janelas, um rumor de que ainda não terminou. Talvez tenha terminado a violência. Talvez tenha acalmado a revolta. Ainda não terminou a inquietação. É palpável. Despedimo-nos de “Cazuza”. Prefere não nos guiar pelo bairro. Não hoje. E desculpa-se, inquieto. É palpável.