"A gente estava a ver que a casa ia mesmo": em Sever do Vouga todos pegam em baldes e mangueiras para ajudar a apagar o fogo
A placa diz “Viela do Sossego” mas, esta terça-feira, não há sossego possível nesta estrada de Vale da Anta, Carvalhal, a pouca distância de Sever do Vouga. Manuel trouxe o trator com um tanque de água, estende a mangueira e aponta-a às chamas, o cunhado pega em ramos e os dois atiram-se ao fogo, mesmo ali junto à estrada, ainda está rasteiro, não há tempo a perder, é apagá-lo antes que suba pelos eucaliptos. Os vizinhos observam as movimentações. “É sempre a mesma história. Os bombeiros deixam isto mal apagado, foram-se embora mas o vento trouxe-o aqui para baixo”, sentencia um. “O problema é se pega aqui nestes pinheiros, com a resina, lambe a casa ao senhor”, lança outro. Os dois homens não ouvem, não falam com ninguém, não param de trabalhar e o fogo parece ceder. “Já está quase.”
“O seu pinhal ardeu?”
“Não sei, ainda lá não fui. O seu ardeu?”
“Ardeu todo.”
“Então se o seu ardeu, o meu também ardeu.”
“Aquele ali ardeu seis mil metros. O fogo tinha uma altura!”
Passa pouco do meio-dia. Durante a noite, o fogo lavrou a encosta e aproximou-se das casas. Ninguém dormiu. “Desde ontem de manhã só me deitei no sofá um bocadinho às 11:00. Como vê, foi mesmo só um bocadinho”, diz um. “Nós aqui foi toda a noite a apagar as fragolas. Eu ainda dormi, a minha mulher é que não, quando caía uma fragola ia logo apanhá-la”, responde o outro, de nome Firmino, apontando para a sua casa do outro lado da estrada. Têm a pele e as roupas esborratadas do negro das cinzas, o olhar cansado.
Firmino tem 80 anos e passou-os todos nesta freguesia. “Eles passam e nem se dá por eles”, comenta. Uma região tão bonita, com tanto verde, rios, cascatas, turismos rurais. Firmino olha em volta, vê as árvores queimadas na outra encosta, o céu escurecido pelo fumo, e abana a cabeça. “Já viu isto?” Foi construtor civil e, agora, reformado, entretém-se a “restaurar umas casitas”. Ao longo da sua vida viu muitos fogos mas não se lembra de outro assim, tão próximo. ”Nós aqui sofremos sempre um bocadinho. De vez em quando há incêndios, mas já para aí há uns nove ou dez anos que não havia. E nunca tinha vindo aqui para baixo”, garante. A seu lado, o vizinho, que prefere não ser identificado, concorda. “Moro aqui há 33 anos e todos os incêndios somados não davam este.”
“E lá por trás também andou?” “Andou, andou. Foi até ao meu muro.” Mostra, no telemóvel, as imagens das chamas naquele mesmo lugar durante a noite, para comprovar que está a dizer a verdade. Labaredas vermelhas, altas, encorpadas. Dá medo só de ver no ecrã minúsculo´. “Isto começou na Ermida, para aí às três da tarde de domingo. Foi andando, andando. O fogo veio de cima, eles pararam-no. Depois o vento virou e levou-o pelo outro lado. Contornou a minha casa toda, até à vedação. Tivemos sorte.” E teve receio? “De dia não é assustador, mas à noite é. À noite é uma miséria. Acontece tudo em segundos.”
05
"Ele não se apaga sozinho"
Albergaria-a-Velha, Oliveira de Azeméis, Vale de Cambra, Sever do Vouga, Águeda. Quantos incêndios lavram nestes concelhos? Por onde quer que se vá somos envoltos por fumo, mal se vê o céu, as estradas estão cortadas. A GNR não nos deixa passar. “Por aí não pode ser.” Por ali não nos atrevemos. Damos a volta. Olhamos os montes ao longe e contamos: uma, duas, três espirais de fumo, outra mais adiante, outra lá atrás. Já arderam 20 mil hectares só no distrito de Aveiro. “Ele não se apaga sozinho. Se ninguém o parar, ele vai continuar por aí até não haver mais nada para arder”, diz, desolado, Manuel Santos, parado numa curva, com o olhar fixo nas chamas que se espalham pelo vale devorando a floresta. Não é o único. As pessoas da região percorrem as estradas à procura do melhor sítio para observar a tragédia. Juntam-se grupos, trocam-se experiências, “a tua casa safou-se?”, declaram-se soluções. Os treinadores de bancada dos fogos sabem sempre de quem é a culpa - dos incendiários que começaram o fogo, do Estado que não cuida, dos proprietários que não limpam, dos bombeiros que não apagam. “Era só ir por ali e apagar daquele lado”, opina Manuel. Se fosse tudo assim tão simples.
Passam carros de bombeiros, as sirenes anunciando a pressa que têm de chegar ao fogo. Vêm de Mora, Esmoriz, Murtosa, Vidigueira, Anadia, Moura, cada camião tem o nome de uma terra, Alcochete, Montijo, Fajões, Aguda, vieram de todo o país e mesmo assim nunca são suficientes, admite José Pinheiro, presidente da câmara de Vale de Cambra: “Estamos a fazer tudo o que está ao nosso alcance sabendo que o país está numa situação dramática. Há incêndios por todo o lado, os meios não se multiplicam”.
A manhã mal tinha começado e José Pinheiro já estava no terreno. “Deitei-me tarde, levantei-me cedo, dormi um bocadinho. Como se costuma dizer: dormi depressa.” Mas não se queixa. Ainda não é tempo para queixas, é tempo para combate. “Durante a noite tivemos uma aldeia mais abaixo, Felgueira, cercada pelo fogo. Ontem tinha sido feito um excelente trabalho de contenção e de proteção da aldeia, mas durante a noite com o vento as coisas descontrolam-se, o fogo chegou à aldeia, tivemos uma casa que ardeu, outra casa com alguns danos. E aquilo que nós perspetivávamos que fosse uma noite mais tranquila acabou por ser exatamente o contrário. Entretanto o incêndio subiu a encosta, está a aproximar-se e agora é impedir que a aldeia de Janardo seja também afetada.”
O telefone toca. Há mais um foco de incêndio no concelho, agora em Arões. O autarca entra no jipe. Tem de ir. “Temos as equipas no terreno, temos pontos de água disponíveis espalhados pelo concelho. Agora é esperar que as próximas horas nos possam dar alguma tranquilidade, o que não deverá acontecer, se olharmos para o vento que está. Muito vento, muito fumo, muita ansiedade para as pessoas, toda a gente sofre, mas o que importa é garantir que não haja vítimas e que não se percam casas.”
06
"Aqui já estamos mais descansados, mas além…"
Talhadas também não dormiu. “Talhadas Capital do Pedreiro”, anunciam as letras garrafais instaladas na rotunda à entrada da povoação, onde agora estão estacionados vários camiões de bombeiros. Durante toda a noite o fogo andou pela zona industrial, queimou fábricas e armazéns, aproximou-se das habitações. Ainda agora, é hora do almoço e ninguém pensa em comer, continuam todos em alerta. “Está a aproximar-se, já chamaram os bombeiros?” Com a água da rede cortada, a população recorreu às piscinas, pequenos lagos azuis no meio dos quintais, de onde tiram baldes de água para molhar os muros e a vegetação em volta.
Antónia não vai à cama desde 2:00, quando foi alertada por uma vizinha de que as chamas que lavravam em Vilarinho chegariam rapidamente àquela aldeia – e assim foi. “Quando dei por ela já estava ao pé das nossas casas”, relata. Os bombeiros levaram várias horas a chegar, pelo que os moradores foram forçados a arregaçar as mangas: “Foi muito assustador, estávamos sozinhos, eramos só nós a tentar ajudar-nos uns aos outros”.
A máscara no rosto de Cristina não lhe esconde as lágrimas. “É uma vergonha estar tudo por limpar. Só quando vêem uma tragédia destas e chega às casas é que se preocupam”. Enquanto desabafa, observa um enorme terreno coberto por uma nuvem de fumo diante de si. É privado, mas “o proprietário não diz nada, não aparece sequer”. “Pouco se importa, não é a casa dele que está perto das chamas”.
“E os bombeiros onde estão?”, grita alguém na rua da Agota, transversal da rua da Senhora da Graça. Lá vai mais uma mangueirada, até que finalmente chega um camião com o tanque cheio e os moradores respiram de alívio. Filipe e a filha, Diana, apressam-se a recebê-lo, juntamente com outros residentes. Foram surpreendidos por um telefonema durante a noite e saíram porta fora, para ajudar, a apenas 200 metros daquele local. A partir dali tentaram salvar o que podiam, mas o campo de futebol da localidade “ficou devastado”. “Não dava para fazer nada, não havia bombeiros. Já foi muito bom ter conseguido salvar as bombas de gasolina, mas a zona industrial foi praticamente toda afetada."
E agora? “Agora é uma incerteza. O fogo movimentou-se até Talhadas em cinco, 10 minutos, foi tão rápido e fora de normal. De certeza que vai ser perigoso, porque aqui a vegetação é muito densa e o vento não está a ajudar”. Filipe afirma, convicto, de que “há mão criminosa” e “muito negócio”. “Se não fosse negócio não havia tanto interesse em fazer isto. É vergonhoso”. Perde-se em pensamentos, até ser interrompido: “Chegaram os bombeiros!”. E Filipe desaparece em segundos, com Diana ao seu lado.
“Aqui já estamos mais descansados, mas além…”. Elsa saiu da sua casa e atravessou a rua para se sentar no largo com o neto de cinco anos. “Ele hoje não teve escola, fica aqui com a avó.” Para o pequeno é divertido ver os carros dos bombeiros e imitar as sirenes, mas para Elsa, de 52 anos, nada disto é uma brincadeira. “Desde sexta-feira que isto tem sido muito complicado, o meu genro é bombeiro e têm sido noites perdidas, para ele e para nós.”
“Hoje tive medo”, confessa. O fogo quase chegou à casa e de manhã Elsa assustou-se. “Já tivemos outros incêndios aqui mas nunca tinha visto o fogo chegar tão perto das casas. Por onde ele passa, leva tudo.” Sem água e sem eletricidade, valeram-lhes os geradores e os furos, deles e dos vizinhos, são todos amigos e nestes momentos a entreajuda é grande. “Foi o que nos salvou. A gente estava a ver que a casa ia mesmo. A casa está bem mas temos uma quinta ali em baixo e ardeu tudo.” Ardeu a pilha de lenha que tinham comprado para o inverno. Arderam as hortaliças, o feijão-verde, a batata doce e os outros legumes que estavam prontos a colher. Arderam, muito provavelmente, as galinhas e os coelhos. “Ainda não tive coragem de lá ir ver, o meu marido e a minha filha é que estão para lá.” Apesar de tudo, Elsa não desanima. “Isso é o menos, logo que não se perca nenhuma vida nem nenhuma casa já é bom.” E depois de um momento de silêncio: “É a vida. Neste mundo não vale de nada a ganância. Num instante fica-se sem nada. O fogo tanto queima o dos ricos como o dos pobres.”