"No som ou no silêncio". Este é o primeiro de quatro capítulos de uma grande reportagem sobre a comunidade surda em Portugal.
Quando o médico lhe propôs fazer um teste para garantir que o filho não nasceria surdo, como ela e a companheira, Joana Cottim ficou em choque. A comunidade surda teme que a ciência esteja a tentar eliminar a sua identidade cultural e linguística
Joana Cottim sempre sonhou ser mãe. Nunca se preocupou que os filhos pudessem nascer surdos, como ela, os pais e o irmão. Nos últimos anos, muita coisa mudou para que a comunidade surda se sinta mais integrada. “No tempo dos meus pais, as pessoas surdas escondiam-se. Os gestos eram feitos às escondidas. Mas, no nosso tempo, já não é assim. Já utilizamos a língua gestual sem qualquer problema."
Foi na comunidade surda que Joana conheceu a companheira. Inês teve o primeiro filho, através de fertilização artificial. Ela também quis sentir a experiência de ter um bebé a crescer dentro de si e seguiu o mesmo caminho. Depois de fazer análises, percebeu que a transmissão da surdez ao embrião era uma possibilidade.
Foi então que uma pergunta do médico a surpreendeu. Teve até de pedir-lhe para repetir. "Ele estava a dizer que havia a possibilidade de, em termos genéticos, ser retirado o gene da surdez. E eu perguntei logo: «E se houvesse uma lei que possibilitasse retirar os olhos azuis, escolhia também?»". O médico ficou sem resposta. Só semanas depois compreendeu a posição de Joana Cottim.
Esta professora de Língua Gestual Portuguesa (LGP) e a mulher preferiram que a gravidez prosseguisse da forma mais natural possível. O importante era que a criança viesse com saúde. Surda ou não, isso não importava. “Preferimos que fosse natural, que a natureza seguisse o seu caminho.”
“Se a pessoa é ouvinte ou surda, qual é a diferença? Há só a questão da comunicação. Apenas isso. Em tudo o resto somos iguais. Só pensávamos nisto: se nascer ouvinte será bilingue e terá educação bilingue [com LGP e língua portuguesa escrita e oral]. Se nascer surda, será o mesmo. Não havia problema. Havia respostas [sociais e de educação] para os meus filhos.”
Joana acabaria por ter gémeos. Nenhum deles nasceu surdo. O filho mais velho, gerado por Inês, também ouve. No caso de Inês, a questão genética nem se colocava porque ela ficou surda na sequência de uma doença em criança.
“O médico ficou sem saber o que dizer, porque a maioria quer retirar o gene da surdez. Acho que ele até ficou um bocado chocado com a resposta. Mas depois percebeu que eu sou igual a outra pessoa. Só a comunicação é que é diferente”.
Eliminar doenças graves e incapacitantes
A técnica proposta pelo médico a Joana Cottim, para reduzir as probabilidades de ela ter um filho surdo, chama-se teste ou diagnóstico genético pré-implantação – e está disponível em Portugal há mais de 25 anos. Consiste na análise dos embriões antes de eles serem colocados no útero da mulher, garantindo assim que são implantados apenas embriões ditos saudáveis.
Tudo é feito em laboratório. Depois de fecundado o óvulo, o embrião desenvolve-se. Entre o quinto e o sétimo dia, é feito este teste. “Faz-se uma biopsia do embrião. Imaginem: é como se tivéssemos um cacho de uvas, como quem retira meia dúzia de uvas ao cacho para ver como é que ele está”, simplifica Alberto Barros, médico especialista em Genética Médica e membro do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA).
“Dessa parte da futura placenta é de onde extraímos algumas células para fazer a biopsia”, completa Samuel Ribeiro, médico especialista em Medicina Reprodutiva e coordenador científico do centro IVI Lisboa. A análise genética pode demorar, depois, duas a três semanas. Cada teste está, geralmente, direcionado para a identificação de uma doença ou característica específica. Mas a ciência permite despistar várias situações de uma vez.
O processo pode custar entre oito e 20 mil euros e é procurado sobretudo por famílias que, conhecendo os riscos do seu historial de saúde, receiam transmitir uma doença considerada grave ou incapacitante à geração seguinte. Em Portugal, no Serviço Nacional de Saúde, apenas o Centro Hospitalar Universitário de São João realiza este procedimento - e a lista de espera é longa.
O teste permite identificar alterações cromossómicas (como a trissomia 21), doenças incapacitantes – como a doença de Huntington, a chamada doença do pezinho ou a fibrose quística – ou a propensão do indivíduo para o desenvolvimento de cancro. Só é permitido selecionar o género do embrião se existir o risco de transmissão de uma condição associada a esse género, como por exemplo a Síndrome do X Frágil, que afeta os homens.
A surdez, que pode ser causada por diferentes genes, também faz parte da lista de doenças que podem ser despistadas com o diagnóstico genético pré-implantação, para evitar a implantação de embriões com essa característica, mesmo que a comunidade surda não a encare como doença ou deficiência.
“O objetivo é evitar que o diagnóstico seja feito em plena gravidez, com uma possível consequência, que é a interrupção médica da gravidez, com todo o trauma físico e emocional da mulher e do casal”, explica Alberto Barros. Quando é identificado este problema, o embrião não é transferido. É eliminado.
Sofrimento ou morte prematura: os critérios para o acesso
Só recorre ao diagnóstico genético pré-implantação quem o quer fazer, sabendo de antemão o seu historial clínico e genético. “Tem de assumir sempre um carácter voluntário. A técnica existe mas as pessoas não são obrigadas a utilizá-la. Por mais grave que seja a patologia, por maior que seja o risco”, adverte Alberto Barros. Ou seja, o casal pode sempre decidir tentar a gravidez de uma forma natural.
No caso de Joana Cottim, em que o médico sugeriu essa possibilidade, este especialista é categórico: “o médico cumpriu a sua função, que é a do esclarecimento. O médico não deve dar conselhos, mas esclarecer, de forma neutra, sobre as possibilidades que existem”.
Mas, mesmo que quisessem, nem todos os casais podem aceder a esta técnica: para além do custo, há também o crivo administrativo. É necessária a autorização do CNPMA, que tem uma lista que elenca as características que podem passar por uma seleção genética. Entre julho de 2017 e outubro de 2022, segundo a contagem da TVI/CNN Portugal, foram feitos 189 pedidos para a realização do teste. A maior parte dos pedidos estão relacionados com a deteção de doenças graves ou incapacitantes e quase todos foram aprovados: 85% ou 162 pedidos. O acesso é facilitado para mulheres acima dos 40 anos com historial de malformações e interrupções de gravidezes anteriores, como por exemplo, por trissomia 21.
“Não surpreende que na maioria dos casos o pedido seja aprovado porque juntamente com o pedido tem de existir um relatório do geneticista, que tem noção daquilo que é ou não é grave”, explica Alberto Barros. É considerada uma doença genética grave aquela que “causa sofrimento significativo e/ou morte prematura”.
No caso da surdez, a técnica é procurada por futuros pais que são surdos, ou têm algum historial de surdez na família, e querem garantir que a nova geração não terá essa característica.
A lei, criada em 2016, é clara: o teste ou diagnóstico genético pré-implantação só pode servir para identificar doenças ou características que a comunidade médica considera como negativas, graves ou incapacitantes – e para evitar a implantação de embriões com essas características. E, embora o procedimento o permita, o diagnóstico não poderá servir para assegurar que é transmitida uma característica escolhida pelos pais, como a cor dos olhos ou do cabelo. Nem para transmitir deliberadamente aquilo que se considera uma doença, deficiência ou defeito, como é o caso da surdez.
E se o objetivo for assegurar que a criança nasça surda?
“Prefiro que seja algo natural. Não sou a favor nem contra. O que é importante é que a natureza dê a resposta. E que a criança nasça e cresça de uma forma natural. Eu não estou aqui para eliminar nada. E agradeço que também não eliminem.” Joana Cottim recusou o teste genético pré-implantação para eliminar a surdez. Mas há surdos que querem mesmo ter um filho que não ouve, alegando que isso favorece a integração no seio familiar e a continuidade da própria cultura surda.
E, para garantirem que o filho nasce surdo, recorrem à mesma técnica que permite eliminar a surdez: o teste genético pré-implantação. Em Portugal, a lei não o permite. Mas há quem procure estas soluções fora do país, onde há vazios legais.
Em 2002, por exemplo, um casal lésbico, nos Estados Unidos da América, chocou o mundo ao admitir que procurava um dador de esperma surdo para garantir que o bebé que nasceria do processo de fertilização seria surdo.
Existem, pelo menos, três caminhos para uma família surda aumentar as probabilidades de ter um filho igualmente surdo. A primeira é o acasalamento dentro da própria comunidade. A segunda é a doação de esperma de um homem surdo. A última, e mais complexa, passa pela escolha de embriões, com recurso ao teste genético.
“Em 2004, 2005, já havia esse debate: se as pessoas ouvintes têm direito a ter uma inseminação em que escolhem que o seu filho seja ouvinte, então porque não pode um casal de surdos procurar o contrário? A polémica mantém-se. Existem pessoas que, no estrangeiro, conseguem fazer esses procedimentos para garantirem que têm um filho surdo”, confirma Cristina Gil, investigadora na área da Cultura Surda.
E justifica: “é natural que uma pessoa surda pense em ter um filho à sua semelhança. Há pessoas que gostavam mesmo de ter um filho surdo. E também há pessoas surdas que dizem, «desde que venha saudável, não há problema». Mas note-se que esta definição de saudável não inclui a surdez como patologia”.
A informação sobre que países ou profissionais permitem essa transmissão deliberada da surdez é passada informalmente, dentro da própria comunidade. Enquanto trabalhava na Bélgica, o médico Samuel Ribeiro foi abordado nesse sentido. “Aconteceu-me, uma vez, um casal que, não sendo possível no seu país, tentou ver se seria possível noutra localização. Também não era.”
“Em Portugal, não vejo esse tema a ser discutido. Mas já li e vi artigos sobre o tema. E percebo a perspetiva de uma família que é surda e que quer ter um filho surdo. Mas isso será natural ou não? A mesma questão coloca-se para a eliminação da surdez”, argumenta Mariana Couto Bártolo, que é médica e também surda.
Deficiência ou identidade?
E se a lei em Portugal permitisse a transmissão deliberada da surdez a um filho? Ao Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida não chegou, segundo Alberto Barros, nenhum pedido nesse sentido. Mas, no cenário atual, a resposta está dada. “Se o objetivo do teste genético pré-implantação é evitar a transmissão de doenças, de patologia genética grave, isto não pode ser adulterado. Não se pode contrariar a lei da República Portuguesa nem a base fundamental dos princípios da ação médica”, sublinha.
Para a generalidade da comunidade médica, a surdez é vista como uma deficiência. Mesmo que compreendam e respeitem a visão da comunidade surda, assente numa identidade cultural que se desenvolve a partir da Língua Gestual Portuguesa. Uma língua que, alegam, a distingue das demais comunidades.
“Se duas pessoas surdas querem ter um filho surdo é para comunicar com ele na mesma língua. É uma questão linguística. Porque eles sabem, pela experiência que tiveram com pais ouvintes, que não há tanta ligação sem a Língua Gestual Portuguesa. A comunidade surda acaba por transformar-se na família. Durante muitos anos foi assim”, justifica Paulo Vaz de Carvalho, historiador e investigador na área da Língua Gestual Portuguesa.
Pedro Mourão, presidente da Associação Portuguesa de Surdos, admite que será complicado inverter o atual estado das coisas, já que a surdez é encarada pela maioria como doença e não como uma identidade cultural e linguística. Sem outra alternativa, a via natural, diz, acabará por ser a preferência da maior parte dos surdos. "Se houvesse essa opção, conheço muitos casais surdos que de certeza gostariam de ter um filho surdo.”