A polícia pressionou-o a confessar um assassínio que nunca aconteceu
Fontana, Califórnia, (EUA) - Tom Perez ligou para a linha de não-emergência da polícia local para comunicar o desaparecimento do seu pai idoso. Trinta e seis horas depois, Perez estava internado num hospital psiquiátrico, tendo sido pressionado a confessar que tinha matado o pai e a tentar suicidar-se.
O pai estava vivo. E não tinha havido qualquer homicídio.
Ninguém disse nada a Perez. Em vez disso, a polícia continuou a investigá-lo, à procura de uma vítima que não existia.
Aconteceu há seis anos, em agosto de 2018. A sua cidade natal, Fontana, no estado da Califórnia (EUA), pagou 900 mil dólares (o equivalente a 810 mil euros ao câmbio atual) para resolver as queixas que ele apresentou contra a polícia, mas Perez diz que ninguém da cidade jamais pediu desculpa. Nem há qualquer indicação de que tenha havido uma investigação interna sobre o motivo pelo qual detetive após detetive, supervisor após supervisor, todos permitiram que o interrogatório de Perez continuasse durante horas e horas.
Desde então, muitos dos agentes da polícia envolvidos foram promovidos. E Perez sente que ainda não houve uma explicação para o facto de ter sido tratado tão mal.
A CNN tomou conhecimento desta história quando o acordo foi divulgado. Obtivemos alguns vídeos de interrogatórios e passámos semanas a investigar registos e entrevistas - muitos dos quais não foram tornados públicos devido a uma ordem de proteção - para tentar determinar o que levou ao que um especialista em segurança chama de “uma das coisas mais perturbadoras que já vi”.
Perez e a cidade de Fontana chegaram a um acordo na primavera deste ano, depois de ele ter intentado uma ação civil acusando a polícia de falsa prisão e de violações no processo devido, entre outros delitos. A cidade suburbana, situada a cerca de uma hora de carro a leste de Los Angeles, não admitiu qualquer irregularidade no acordo e “nega veementemente” a violação de quaisquer leis estaduais ou federais.
Tanto Tom Perez como o seu pai - que tem o mesmo nome e é apelidado de “Papa Tom” - deram entrevistas exclusivas à CNN. Os agentes da polícia que interrogaram o jovem durante 17 horas não responderam aos pedidos de comentário da CNN.
A polícia foi à casa dos Perez e logo começou a suspeitar
O pai e o filho Perez vivem juntos numa casa de três quartos, de cor creme e telhado de telha, num beco sem saída de casas construídas à volta de um campo de golfe. Em 2018, estavam a planear vender a propriedade e estavam a arrumar as suas coisas e a concluir alguns melhoramentos. Empreiteiro, o jovem Perez estava a fazer ele próprio a maior parte do trabalho.
Os dois homens tinham acabado por partilhar uma casa depois de Perez se ter separado da mulher e de o pai, também separado, ter descoberto que não se adaptava às regras de uma comunidade de idosos. Os dois conviviam, irritavam-se um com o outro, mas nunca por muito tempo. Ambos tinham licenças de mediação imobiliária, segundo relataram, embora vivessem vidas muito separadas, com os seus próprios interesses e amigos. Mas ambos adoravam a sua cadela - uma mistura fofa de Husky e Collie chamado Margo -, cozinhavam refeições especiais e partilhavam cuidados.
Para os Perez, o trauma ainda é tão cru que eles têm dificuldade em falar um com o outro sobre o que aconteceu. “Ainda não chegámos a esse ponto”, conta o jovem Perez.
A 7 de agosto, o pai, então com 71 anos, saiu de casa com Margo para verificar a caixa de correio no fim da rua, ou assim pensou o filho. Alguns minutos depois, a cadela regressou. O homem mais velho não.
Perez, então com 53 anos, disse não ter ficado muito preocupado porque o seu pai, ferozmente independente, conhecia muitas pessoas na zona, onde ambos viviam há anos, e fazia muitas vezes visitas sem dizer para onde ia. Mas quando ele ainda não tinha voltado para casa na tarde seguinte, Perez ligou para a linha de não-emergência da polícia para o caso de alguém ter visto o seu pai.
“Só quero saber se há um idoso a passear no bairro ou, talvez, ele tenha ficado desorientado... avisem-me, pode ser o meu pai. É só isso”, conta à CNN.
A funcionária do serviço comunitário que recebeu a chamada, Joanna Piña, disse que sentiu que algo estava errado.
“Ele não parecia muito preocupado com o desaparecimento do pai e não parava de divagar sobre vários assuntos que não tinham a ver com o relatório de pessoa desaparecida”, recordou ela quatro anos mais tarde, num depoimento jurídico prestado no âmbito do processo civil de Perez.
Tem a certeza de que não discutiu com o seu pai?” Agente da polícia Sheila Foley, quando estava em casa de Perez
Piña e a sua supervisora, a agente de polícia Sheila Foley, foram fazer o acompanhamento do caso a casa de Perez, onde ambas pareceram surpreendidas pelo estado da casa, de acordo com as imagens das câmaras do corpo (bodycams). Viram objectos empilhados e trabalhos de construção em curso.
“Você não o fez de uma forma que seria normal”, disse Foley a Perez quando este descreveu a retirada de um móvel de parede do quarto do idoso. Foley prosseguiu: “Tem a certeza de que não discutiu com o seu pai?” Nas imagens da câmara do corpo, Perez disse-lhes que estava cansado enquanto tropeçava em algumas palavras e tentava explicar porque continuava a trabalhar depois de o pai ter saído e porque é que os pertences do pai estavam num monte desarrumado.
As agentes pediram reforços: primeiro um sargento e depois detetives. Foram feitas mais perguntas e Perez concordou em ir à esquadra da polícia para tentar ajudar a descobrir onde poderia estar o pai.
Nesta fase, ninguém alega que a polícia tenha feito algo de errado. Um homem idoso estava desaparecido. O filho pedia ajuda, mas muitas vezes desviava-se para outras áreas, falando sobre o trabalho que estava a fazer em casa ou sobre a alimentação do cão. A polícia precisava de mais informações.
Foi o que aconteceu a seguir que se foi tornando cada vez mais perturbador.
Enquanto interrogava Pérez, a polícia pediu um mandado de busca
O detetive Robert Miller pediu a Pérez que acompanhasse os agentes até ao Departamento de Polícia de Fontana, um edifício de um só andar num campus municipal no centro da cidade, salpicado de palmeiras. Ali, ao início da noite, Perez entrou pela primeira vez na sala de interrogatório, aquilo a que agora chama “a pequena caixa de horrores deles”.
Perez recorda os primeiros 90 minutos de perguntas com Miller e outros agentes a serem educados e razoáveis, extraindo informações sobre onde o seu pai poderia ter ido. Ele disse que estava concentrado em dar ideias sobre onde o pai poderia estar - com o seu irmão, a sua filha ou um amigo.
Nessa mesma noite, os agentes estavam a obter um mandado de busca para a casa de Perez, os telemóveis dos homens e os seus veículos.
Quando já passavam 24 horas sobre o desaparecimento do pai de Perez, e um segundo interrogatório com Miller começou, o tom já tinha mudado.
Investigadores de locais de crime tiraram fotografias do que pensavam ser vestígios de sangue, e um cão farejador de cadáveres chamado Jet, trazido por um voluntário do xerife, alertou para o possível odor de restos humanos num quarto do andar de cima, segundo revelam os relatórios da polícia.
Miller interrogou Perez até às primeiras horas da manhã de 9 de agosto, tendo sido recolhida uma amostra de ADN do homem agora considerado suspeito às 4h41 da manhã. Miller escreveu num relatório da polícia que Perez tinha sido informado de que podia sair, e outros agentes disseram mais tarde que ele não estava preso.
Mas as muitas horas passadas na sala de interrogatório pintaram um quadro diferente.
CRONOLOGIA: PEREZ E A POLÍCIA
7 de agosto de 2018, 21h30: O pai vai dar um passeio
8 de agosto, 14h30: Tom Perez telefona para a polícia de Fontana
8 de agosto, à noite: Perez vai à esquadra da polícia e é interrogado 9 de agosto, manhã: Perez é conduzido por detectives em Fontana
9 de agosto, tarde: O interrogatório continua, com o amigo e a cadela de Perez a serem trazidos pelos detectives
9 de agosto, à noite: A irmã de Perez telefona à polícia para dizer que o pai está vivo e bem
9 de agosto, à noite: Perez é levado para uma unidade psiquiátrica para avaliação
13 de agosto, à tarde: Perez recebe alta do hospital e reúne-se com o pai
Quando os detectives David Janusz e Kyle Guthrie iniciaram os seus turnos a 9 de agosto, foi-lhes pedido que assumissem o interrogatório de Perez. Guthrie, num depoimento prestado em 2023 no âmbito do processo civil, descreveu uma reunião rápida com o seu tenente, que lhe disse “algo relacionado com o facto de acreditarem que Thomas - ou o Sr. Perez - tinha matado o pai e que tinham pedido a Janusz e a mim para o interrogarmos sobre a queixa”.
Havia “um sentimento” na polícia de que Perez tinha matado o pai, concordou Janusz num depoimento em outubro de 2022 para o mesmo processo civil.
Os dois detectives levaram Perez a um café e depois conduziram-no pela cidade durante horas. Foram a uma caixa de donativos onde tinham sido levadas algumas roupas do pai e a bairros sociais onde estavam a ser construídas novas casas, aparentemente à procura de locais onde um corpo pudesse ter sido abandonado. A certa altura, num campo de golfe, Perez perguntou se os corpos flutuavam, relatou Janusz no depoimento.
Os detectives também aproveitaram o tempo de condução para repreender Perez, sugerindo que ele tinha magoado o pai - talvez sob a influência de medicamentos que estava a tomar para doenças como a tensão arterial elevada, depressão, stress e asma, de acordo com uma análise das imagens da câmara do corpo feita pela juíza Dolly Gee, que foi designada para analisar o processo civil de Perez.
“Onde é que nos pode levar para nos mostrar onde está o papá...?” perguntou Guthrie a Perez. “O Thomas nunca poderia fazer algo assim... mas não é essa a questão. A medicação tomou conta de mim, e precisamos de encontrar o papá agora mesmo.”
Mais tarde, Perez pediu ajuda médica. “Mas... eu preciso, eu preciso de atenção.” Janusz respondeu: “Não, não precisa.”
Foi neste ponto que os detetives ultrapassaram claramente os limites, de acordo com Jeff Noble, um perito em procedimentos policiais que analisou o caso a pedido do advogado de Perez no âmbito da ação civil.
“Começa com um interrogatório de seis ou sete horas pelo detetive Miller, depois Janusz e Guthrie metem-no no carro e começam a conduzi-lo e a levá-lo a diferentes locais para que ele possa identificar onde está o corpo”, conta Noble à CNN. “Durante a viagem, eles sugerem coisas que ele pode ter feito ao pai. Dizem-lhe que o pai está morto. Dizem-lhe que sabem onde está o corpo do pai e, quando ele pede medicação ou para ir ao hospital, dizem-lhe que não, que lhe negam o acesso a essas coisas.”
O município rejeita essa alegação. “O Sr. Perez pediu e foi-lhe dada a medicação durante a sua detenção”, diz uma declaração à CNN.
Perez disse à CNN que pensava que os agentes o estavam a levar para a estação de comboios para verificar qualquer vídeo de vigilância que pudesse mostrar para onde o seu pai se tinha dirigido, mas depois mudaram de direção.
“Tudo o que fizeram foi pôr-me em campos de terra à procura de corpos... fizeram-me uma lavagem ao cérebro”, disse ele mais tarde na sala de interrogatório. “Onde está o pai, onde está o pai, onde está o pai?”
A polícia trouxe um amigo de Perez para ajudar a obter uma confissão
Os detectives levaram Perez de volta à esquadra da polícia de Fontana a meio do dia 9 de agosto e devolveram-no à sala de interrogatório. Perez disse à CNN que pediu um advogado ou para ir para casa e foram-lhe recusadas ambas as coisas, o que contrastava com as afirmações dos agentes de que ele não estava preso e podia ir embora.
Perez pediu para ver um amigo e parceiro de negócios, Carl Peraza. Mas antes de Peraza ser autorizado a entrar, os detectives recrutaram-no para o seu lado.
Os agentes indicaram que o que mais precisavam que eu fizesse era tentar obter uma localização exacta do local onde Tom não só enterrou o pai, mas também confessar que ele tinha assassinado o pai.” Carl Peraza, amigo de Tom Perez, durante um depoimento, descrevendo o que os detectives lhe pediram
“Os dois primeiros agentes, Janusz e o outro agente com a cabeça rapada (Guthrie), levaram-me novamente para o corredor e depois disseram-me que, uau, o Tom ia ser detido por homicídio”, disse Peraza num depoimento de fevereiro de 2023. “Depois entraram em pormenores sobre o facto de terem provas irrefutáveis, com sangue por todo o lado”.
Os detetives disseram-lhe que tinham um vídeo de Perez a deitar fora roupas com sangue. “Disseram que havia um local onde acreditavam que o corpo estava enterrado e que iam desenterrá-lo..."
“Os agentes indicaram que o que mais precisavam que eu fizesse era tentar obter a localização exacta do local onde Tom não só enterrou o pai, mas também confessar que tinha assassinado o pai.”
Peraza disse mais tarde que não entendia como era possível que o idoso Perez estivesse morto ou que seu filho pudesse tê-lo matado, mas tentou ajudar a polícia.
A CNN viu 8 horas e 30 minutos de vídeo que mostram o que aconteceu a seguir.
Peraza disse ao seu amigo que a polícia tinha provas contra ele. Perez sabia que a polícia tem o direito de mentir nos interrogatórios e disse-o, mas Peraza continuou.
“Há sangue por todo o lado, na garagem, na carrinha”, disse ele.
“Não consigo perceber isto. É isso que eu não entendo, Tom. Eles têm provas, têm... há a garagem, a carrinha... e o teu pai desaparecido. Quero dizer, Tom, será que isto pode ter acontecido?”
Quando os detectives voltaram à sala, Peraza disse que os ouviu dizer que Perez tinha matado o seu pai, mas nunca ouviu Perez concordar.
Depois de terem deixado Perez sozinho, Peraza disse aos agentes que tinha tentado ajudar, mas que continuava a não perceber como é que tinha havido um homicídio, mesmo que as provas estivessem lá. Nessa altura, ouviu um agente dizer que as provas eram “circunstanciais”.
“Isso foi outro choque para mim”, disse Peraza no seu depoimento. Passou de “esmagadora” para “circunstancial” e eu fiquei ainda mais confuso. Quis entrar e dizer ao Tom, depois de o ter levado a tentar confessar, que era circunstancial e não esmagador, como me tinham dito.”
Nesse dia, não lhe foi permitido voltar a falar com Perez.
A polícia pressionou Perez sobre o seu pai: “Tu mataste-o"
Janusz e Guthrie regressaram à sala de interrogatório no final da tarde de 9 de agosto, como se pode ver no vídeo analisado pela CNN.
Janusz disse que Perez poderia acabar por dever à cidade até um milhão de dólares em indemnizações por não ter ajudado a polícia a localizar o seu pai.
Guthrie disse: “Ele está desaparecido porque tu mataste-o.”
Depois trouxeram Margo, a cadela da família, e disseram-lhe que ela estava a sofrer por ter testemunhado o homicídio.
“Aconteceu mesmo. Aconteceu mesmo. Tu mataste-o e ele está morto”, disse Guthrie a Perez. "Sabes que o mataste... Não estás a ser honesto contigo próprio. Como é que te podes sentar aí, como é que te podes sentar aí e dizer que não sabes o que aconteceu, e a tua cadela está aí sentada a olhar para ti, sabendo que tu mataste o teu pai? Olha para a tua cadela. Ela sabe, porque estava a andar no meio de todo aquele sangue”.
Pediram repetidamente a Perez que imaginasse o que poderia ter acontecido. Se ele respondesse com uma sugestão, eles tomavam isso como um facto.
O Thomas disse que pegou numa tesoura, foi para o sofá e esfaqueou o pai.” Detetive David Janusz, no seu relatório
A certa altura, quando os detetives já tinham discutido se tinha havido uma luta com um pau e garrafas partidas, e se Perez tinha atropelado o pai com um camião, perguntaram se era plausível que o homem mais novo tivesse esfaqueado o mais velho.
“E a tesoura?” perguntou Janusz.
“É possível”, respondeu Perez. “Possível?” Janusz continuou. “É plausível”, admitiu Perez. “Esfaqueaste-o?” perguntou Guthrie. “Não me parece que o tenha feito”, disse Perez.
Nessa altura, já tinham passado cerca de 24 horas desde que Perez tinha ido com a polícia à esquadra e quase dois dias completos desde que tinha visto o pai pela última vez.
Os detectives analisaram mais cenários, mas Perez não fez nenhuma confissão clara.
No entanto, no relatório da sua investigação, datado de 31 de agosto de 2018, Janusz escreveu o seguinte:
“Thomas disse que pegou numa tesoura, foi até ao sofá e esfaqueou o pai. Disse que, se estava furioso, provavelmente esfaqueou-o muitas vezes. Thomas disse que depois de o pai ter sido esfaqueado, o pai subiu as escadas e foi à casa de banho. Thomas ouviu-o cair e foi até lá e viu o pai deitado no chão da casa de banho, sem acordar. Disse que lhe deu algumas bofetadas na cara, mas ele continuou a não acordar. A cadela de Thomas entrou na casa de banho e ele tentou tirar a cadela da casa de banho porque havia sangue por todo o lado. Depois de tirar a cadela, embrulhou o corpo do pai na cortina de duche verde e transportou-o pelas escadas até à garagem. Depois, colocou o corpo do pai na parte de trás da carrinha”.
Nada disto aconteceu.
Mas na sala de interrogatório, Perez estava exausto, confuso e a começar a acreditar que talvez tivesse acontecido. Desmoronou, chorando, tentando arrancar os cabelos e rasgando a camisa.
Os detectives, parecendo ter convencido Perez de que ele tinha matado o pai numa espécie de estado de fuga, sugeriram-lhe que pedisse desculpa ao pai. “Peço desculpa, pai”, disse ele. “Eu não fazia ideia. Eu amo-te.”
À irmã, ele disse: “Não queria levar o teu pai embora. Não faço ideia. Ainda não percebo”. Estas desculpas, juntamente com as respostas de Perez às hipóteses apresentadas pela polícia, tornaram-se naquilo a que a polícia chamou uma confissão.
Quando se ameaça alguém, dizendo-lhe que vai ter de pagar até um milhão de dólares de indemnização por não ter contado o que aconteceu, dizendo-lhe que vai ter de eutanasiar a cadela se não confessar - isso não é aproximar-se da linha, é ultrapassar a linha. Jeff Noble, especialista em procedimentos policiais
Perez vomitou num caixote do lixo. Os detectives continuaram a insistir em pormenores, mas Perez só conseguia dizer: “Não sei”. Quando foi deixado sozinho, disse que tentou suicidar-se com os atacadores dos sapatos.
O juiz Gee disse que as tácticas dos detetives “levaram indiscutivelmente à confusão e desorientação subjectiva de Perez, ao ponto de ele ter confessado falsamente ter matado o pai e ter tentado suicidar-se”.
Os detectives sugeriram que a adorada cadela da família seria submetida a eutanásia
Perez disse à CNN que viu partes do vídeo do interrogatório, mas não deseja reviver o que ele chama de crueldade dos agentes da polícia que viraram a sua vida de cabeça para baixo.
“Já não conseguia ver a cores”, disse ele sobre o início da noite de 9 de agosto, altura em que ficou mental e fisicamente destroçado. Tinham passado 28 horas desde que tinha chamado a polícia, quase dois dias desde que tinha visto o pai, e não tinha tomado os medicamentos nem dormido ou comido grande coisa. “Estava a ver toda a gente a preto e branco e depois senti uma dor física, como um choque elétrico, que me percorreu da cabeça aos pés”.
Perez disse que chegou uma altura em que ele acreditou que o pai estava morto, embora ainda não conseguisse imaginar que ele pudesse ter sido o responsável. Depois, os detectives voltaram a insistir, falando-lhe de um cão que testemunhara um homicídio e que ficara tão traumatizado que tivera de ser abatido, sugerindo que o mesmo poderia acontecer a Margo.
"“Ela está traumatizada, tem DPTS [Distúrbio de Stress Pós-Traumático]”, disse Guthrie.
Perez recordou: “Eu ainda estava a aguentar, a lidar com a perda, até que me disseram que também iam matar a minha cadela”.
Entre todas as outras transgressões, esta destaca-se para Noble, o veterano ex-agente da polícia e especialista em procedimentos.
“Quando se ultrapassa o limite e se pratica uma ação enganosa que leva uma pessoa inocente a confessar um crime que não cometeu, é aí que se ultrapassa o limite”, diz.
“E, certamente, quando se ameaça alguém, dizendo-lhe que terá de pagar até um milhão de dólares de indemnização por não ter contado o que aconteceu, dizendo-lhe que terá de fazer a eutanásia da cadela se não confessar - isso não é aproximar-se do limite, é ultrapassar o limite.”
Enquanto uma terceira equipa de detetives se deslocava para a sala de interrogatório, Margo, a cadela, foi levada para um abrigo num condado vizinho e entregue como vadia.
E pouco antes da meia-noite do dia 9 de agosto - cerca de 33 horas depois de ter telefonado à polícia a dizer que procurava o pai - Perez foi internado numa unidade psiquiátrica do hospital para ser avaliado, depois de ter dito aos agentes que se queria matar.
Pai encontrado, mas polícia não desiste do caso
Mas, por esta altura, pelo menos um dos detectives de Fontana sabia que o idoso Thomas Perez estava vivo e de boa saúde. A filha tinha falado com Miller no início da noite, enquanto o irmão ainda estava na sala de interrogatório, dizendo que o homem desaparecido estava no Aeroporto Internacional de Los Angeles à espera de um voo para a visitar em Oakland, na Califórnia.
Os agentes do aeroporto encontraram-no na porta de embarque e pediram-lhe que esperasse para falar com os agentes de Fontana. Detiveram-no e leram-lhe os seus direitos, apesar de ele não ser suspeito de qualquer crime.
Pegaram em mim, leram-me os meus direitos e eu pensei: “O que é que se passa?””, conta o velho Perez à CNN. “Puseram-me no carro, no banco de trás e começaram a explicar a situação... e eu continuava a não fazer ideia do que estavam a dizer.”
Ele tinha ido visitar o irmão e depois ficou com um amigo, contou. Não sabia nada sobre a sua busca até telefonar à filha. Ela tinha-lhe comprado um bilhete de avião para a visitar no norte da Califórnia, antes de a viagem ser interrompida pela chegada da polícia de Fontana.
O pai foi mesmo colocado na mesma sala de interrogatório que o filho traumatizado acabara de desocupar, disse ele à CNN, reconhecendo mais tarde um cobertor que viu no chão e que tinha sido usado pelo homem mais novo. Disse que lhe foram dadas poucas informações.
“Estavam na casa e estavam a examinar tudo porque acreditavam que tinha havido um homicídio”, disse ele sobre o que lhe foi dito. Perguntaram-lhe sobre a sua relação com Perez e se alguma vez ela tinha sido violenta, mas nunca lhe disseram que o filho tinha sido acusado de o matar - nem na esquadra da polícia nem quando o levaram para casa, quebrando a fita do local do crime para o deixar entrar em casa.
Entretanto, ninguém disse a Perez que o seu pai estava vivo. Em vez disso, ele estava na unidade psiquiátrica, pensando que o pai estava morto, talvez pelas suas próprias mãos, e que a sua cadela também estava a ser morta, também por sua causa.
Jerry Steering, o advogado de Perez que o ajudou a obter o acordo, falou dos detetives: “Não tiveram coragem de o olhar na cara. Não tiveram coragem de lhe dizer que o pai estava bem”.
O pai de Pérez foi vê-lo, mas não foi autorizado a entrar durante vários dias, disse o jovem.
“Deixaram-me naquela angústia mental e a sofrer continuamente e depois bloquearam o telefone para que eu não pudesse receber chamadas”, disse Perez. “Sofri assim durante três dias”.
Quando ele me viu, ficou a olhar para mim e disse: “Pai, és mesmo tu?” “Papa Tom” Perez, recordando o encontro com o filho quando este teve alta da unidade psiquiátrica
Só quando uma enfermeira ligou os dois ao telefone é que Perez disse que finalmente soube que o pai estava vivo.
“Ela passou-me o telefone e eu caí no chão a chorar”, disse Perez, com a voz embargada, ‘porque ele estava vivo e disse que tinha tentado telefonar, mas que as chamadas tinham sido rejeitadas’.
Uma semana depois de o pai ter saído para aquele passeio fatídico, os dois voltaram a encontrar-se quando Perez teve alta do hospital.
Quando ele me viu, ficou a olhar para mim e disse: “Pai, és mesmo tu?””, contou o Perez mais velho. “E eu disse: 'Sim, sou eu', e ele disse: 'Disseram-me que tinhas morrido'. E eu disse: 'Não, não, eu estou aqui'.
“E então ele caminhou lentamente até mim... e então abraçamo-nos, com lágrimas nos olhos.”
Depois de encontrarem um microchip sob a sua pele, o abrigo determinou que Margo não era um animal vadio e contactou os Perez para a irem buscar.
Os Perez dizem que ela chegou a casa com uma lesão e precisou de ser operada a um ligamento rasgado. Enquanto tentavam ajudá-la, a polícia continuava à procura de uma vítima.
Detetives continuavam a acreditar que havia uma vítima
Em vez de abandonarem o caso depois de o pai de Perez ter sido encontrado, a polícia de Fontana reforçou as suspeitas de que alguém tinha sido ferido ou morto na casa.
A polícia obteve autorização para colocar um localizador na carrinha de Perez. Numa declaração de causa provável para o pedido de mandado, Miller referiu-se ao sangue na casa e ao facto de um cão farejador de cadáveres ter alertado os agentes para algo.
“Eu e outros detectives envolvidos nesta investigação acreditamos que existe uma possível vítima que ainda não foi localizada”, escreveu Miller, o primeiro agente a interrogar Perez, a 15 de agosto.
“O nosso depoente, juntamente com outros detectives da FPD, acredita que ainda há uma vítima falecida pendente, possivelmente relacionada com um homicídio”, escreveu.
As fotografias da cena do crime mostram aparentes gotas de sangue seco que Perez atribuiu a acidentes anteriores. Mas num depoimento no seu processo civil em outubro de 2022, foi-lhe mostrado o que Shel Harrell, um advogado da cidade de Fontana, disse ser uma fotografia de uma porta da sua casa com o que parecia ser sangue.
Perez disse que parecia ser a sua porta, mas afirmou que não havia marcas vermelhas na porta quando os agentes da polícia apareceram.
Harrell perguntou se ele estava a dizer que os agentes de Fontana estavam a mentir quando disseram que a porta estava lá, ao que Perez respondeu: “Sim”.
Num documento judicial de apoio aos pedidos de indemnização de Perez, o perito da polícia Noble observou que a fotografia não foi mencionada em nenhum relatório policial nem foi utilizada para obter mandados de busca.
E, embora tenham sido recolhidas amostras de sangue suspeito do sofá onde Janusz escreveu que Perez tinha esfaqueado o pai e de outros locais da casa, não foi instaurado qualquer processo contra ele ou qualquer outra vítima encontrada. Noble escreveu que nunca foi feita uma identificação positiva do sangue. O velho Perez disse à CNN que as amostras tinham sido identificadas como provenientes de um homem, mas isso foi tudo.
A CNN perguntou a Harrell sobre a foto da suposta prova de sangue e outros assuntos. Harrell não respondeu às perguntas da CNN. Em vez disso, disse que os vídeos que a CNN viu estão sujeitos a uma ordem de proteção e não devem ser publicados.
Harrell, cujo gabinete é o advogado da cidade de Fontana, pediu à CNN que devolvesse todos os vídeos que tinha, não transmitidos.
Agentes envolvidos foram posteriormente promovidos
Para o juiz que permitiu que o processo de Perez prosseguisse, levando ao acordo, algumas das acções da polícia foram longe demais - mesmo que algumas suspeitas iniciais pudessem ser justificadas.
“O estado mental de Perez, entre outros factores, tornava-o um indivíduo vulnerável”, escreveu o juiz Gee. “Ele estava privado de sono, mentalmente doente e, de forma significativa, a sofrer sintomas de abstinência dos seus medicamentos psiquiátricos. Foi repreendido, desgastado e pressionado a fazer uma falsa confissão após 17 horas de interrogatório. (Os oficiais) fizeram isso com plena consciência do seu estado mental e físico comprometido e da necessidade de seus medicamentos".
Perez apresentou sua reclamação em agosto de 2019, um ano após os eventos, e fez um acordo com a cidade de Fontana por quase 900 mil dólares (o equivalente a 810 mil euros) na primavera de 2024, depois de algumas das suas reivindicações serem rejeitadas.
O acordo neste caso foi uma decisão comercial recomendada por um mediador do tribunal federal para poupar à cidade mais tempo, esforço e despesas.” Declaração da cidade de Fontana
A cidade de Fontana, no entanto, continua a negar que se tenham ultrapassado os limites no tratamento de Perez como suspeito.
Uma declaração à CNN do advogado da cidade, Ruben Duran, diz: “O acordo não incluiu especificamente qualquer conclusão de infração, nem qualquer violação da lei estatal ou federal”. Duran disse que a polícia “suspeitava razoavelmente da ocorrência de um ato violento” e que Perez não foi isolado e foi alimentado e medicado. Ele também disse que a investigação parou quando o pai de Perez foi encontrado vivo."
Uma declaração anterior publicada e posteriormente retirada do sítio Web da cidade dizia o seguinte “O acordo neste caso foi uma decisão comercial recomendada por um mediador do tribunal federal para poupar à cidade mais tempo, esforço e despesas.” E terminava: “Os responsáveis pela aplicação da lei da cidade desenvolveram muitas melhorias nos serviços para lidar com indivíduos com deficiências mentais.” Duran não respondeu a pedidos de mais pormenores sobre as melhorias.
Guthrie, que não foi citado como arguido, disse sobre Perez no seu depoimento: “Não creio que o que lhe dissemos lhe tenha causado sofrimento emocional, porque, como se pode ver nesta entrevista, ele nem sequer está perturbado. Nem sequer reagiu ao facto de termos presumido que o pai dele já não vivia”. Guthrie disse que não tinha visto o vídeo do interrogatório - onde é evidente o colapso emocional de Perez - antes de lhe serem mostrados excertos durante o depoimento.
Guthrie disse que usar “um ardil” durante o interrogatório era claramente aceitável. “Não creio que as técnicas que utilizámos com ele sejam a razão pela qual admitiu ter matado o pai.”
Meses após o interrogatório, Guthrie foi nomeado Funcionário do Ano de 2019 do Departamento de Polícia de Fontana.
Guthrie é agora um sargento. Janusz também.
E Michael Dorsey, o tenente que Guthrie diz ter dito a ele e a Janusz que os agentes acreditavam que Perez Jr. havia matado seu pai, foi promovido a capitão e agora é chefe de polícia de Fontana, supervisionando 188 policiais juramentados, de acordo com seu site.
Dorsey não foi citado como arguido no processo civil. A CNN pediu-lhe um comentário e não obteve resposta.
Noble, o perito da polícia que dirigiu investigações de assuntos internos, disse que as múltiplas falhas deveriam ter levado a uma revisão completa e a mais formação.
Noble disse que o vídeo do interrogatório, especialmente a sugestão de que a cadela de Perez poderia ter de ser eutanasiada, deveria ter sido um apelo à ação. “Não acredito que haja um chefe de polícia nos Estados Unidos que se sente e diga que isso é normal.”
O deputado disse que os agentes deviam ter-se afastado uns dos outros em vez de se juntarem e que era evidente que um interrogatório de 17 horas tinha ido longe demais.
“Isto não foi um erro ou um passo em falso”, disse. “Trata-se de uma série de desvios grosseiros em relação às normas geralmente aceites”.
Os detetives podem ter ficado sobrecarregados durante a investigação, pensou, ao ponto de acreditarem que tinha havido um homicídio. “Eles formaram essa convicção com base na parcialidade da sua investigação, sem rever todos os factos ou recuar e avaliar realmente o que tinham”, disse Noble, que diz ter sido testemunha especializada em questões legais criminais e civis envolvendo procedimentos policiais, má conduta e corrupção.
“Dito isto, ao mentirem repetidamente, ao negarem-lhe necessidades básicas, ao fazerem este interrogatório incrivelmente longo e prolongado, ultrapassaram os seus limites de uma forma que nenhum agente razoável deveria ter feito.”
Pai e filho ainda estão a lidar com as consequências da provação
Tom Perez, agora com 59 anos, disse à CNN que levou anos para começar a superar o trauma do que aconteceu.
“Cheguei a um ponto em que tinha medo até de ir buscar o correio”, disse o jovem, mostrando como tinha tido de confiar no pai. “Tinha medo de sair. Eu disse que não sabia quem poderia estar lá”.
Os dois homens falaram recentemente com a CNN na casa que ainda partilham. Perez disse que foi a primeira vez que falaram tanto sobre as experiências de cada um durante a provação.
O mais velho Perez disse que seu filho ficou tão traumatizado que durante alguma tempo não conseguia trabalhar ou sequer atender o telefone.
“Felizmente, o meu pai estava lá para garantir que todas as necessidades seriam atendidas”, disse Perez. “E então comecei a trabalhar para sair do buraco, sabendo que me cabe a mim sair - junto com alguma ajuda, é claro.”
A cadela, Margo, morreu em fevereiro de 2023, deixando um buraco na vida dos homens. Mas pai e filho ainda se têm um ao outro e estão gratos por isso.
“Eu ajudei-o ... naquela época, para superar isto”, disse o mais velho Perez, agora com 77 anos, sobre o trauma do seu filho após a sua interação com a polícia. “Ajudamo-nos um ao outro”.
Mas se há uma lição importante que Perez aprendeu, é uma lição negativa, diz ele.
"Não chamem a polícia".
Norma Galeana, Jeff Winter e Ali Zaslav, da CNN, contribuíram para esta história.