
A herança que ninguém quer receber
ANA FILIPA, FIBROSE QUÍSTICA
A rapidez com que Ana Filipa fala esconde os muitos momentos em que o fôlego a fez abrandar, em que cada palavra era alimentada por uma garrafa de oxigénio. A sua pressa nas palavras mostra a forma como relativiza a doença que tem, que garante que não a define. Uma condição crónica, sem cura, mas que, ainda assim, é a sua “fiel companheira”. E não o esconde. “A fibrose quística é uma característica como ter o cabelo castanho, é uma coisa que não me vai deixar, é uma coisa que faz parte.”
Ana Filipa Ferreira foi diagnosticada aos cinco anos. Na altura, em plena década de 1990, a esperança média de vida de quem tinha esta doença era de sete anos. Restavam-lhe dois. Era uma sentença quase certa. Um murro no estômago para os pais. Mas Ana Filipa já celebrou 33 anos de vida, 16 dos quais duas vezes em cada ano. “Eu festejo a data do transplante [pulmonar] exatamente como um aniversário, só não há prendas”, ri-se. “As pessoas vão ao aniversário em setembro, mas eu faço uma festa de aniversário no dia 6 de abril para eles também, tanto que me casei nesse dia, dez anos depois do transplante”, conta, revelando que todos os médicos que até então a tinham acompanhado estiveram presentes, qual nova família que esta doença lhe deu.
O aumento da esperança média de vida dos pacientes com fibrose quística e a qualidade de vida que conseguem agora ter é espelho dos avanços terapêuticos que a ciência tem feito na compreensão desta patologia rara. Progressos que fazem com que a fibrose quística não seja mais somente uma doença de infância, é agora também uma doença de adultos - e por muito mau que isso possa soar, são boas notícias. “Quando comecei a trabalhar na fibrose quística, os meus pacientes eram miúdos muito, muito doentes, eram muito jovens e com doenças extraordinariamente muito graves. Enviei para transplante pulmonar um número muito significativo de pacientes, cerca de 20 doentes”, recorda Pilar Azevedo, médica pneumologista e coordenadora da Unidade de Fibrose Quística de Adultos do Hospital Santa Marta, um dos cinco que tem centros especializados para a doença no país - dois em Lisboa, dois no Porto e um em Coimbra.
A cura desta doença é ainda uma utopia, mas Pilar Azevedo prefere focar-se nos “avanços assombrosos” que a ciência tem proporcionado, que permitem que mantenha o acompanhamento aos mesmos pacientes ao longo dos anos, algo que era impensável há pouco mais de dez, vinte anos. “É bom poder agora olhar para os meus doentes que chegam cá, alguns já velhos, alguns já da minha idade, chegam cá com famílias constituídas, com filhos, com projetos de vida. É muito bonito vermos isso em Medicina, acreditar que a Medicina tem ainda uma resposta para dar nestas doenças muito sérias, muito graves”, diz a médica.

“Isto é uma coisa que não sai, por isso não vale a pena estar a revoltar-me, estou só a perder tempo de vida” - Ana Filipa Ferreira
A fibrose quística é uma doença genética e hereditária, “que é o que designamos por autossómica recessiva, ou seja, é necessário que os dois progenitores sejam pelo menos portadores da doença ou doentes, para que cada um deles ceda uma mutação à criança”, explica Pilar Azevedo. Os primeiros relatos desta doença remontam à década de 30 do século passado e, nessa altura, diz a médica, “não havia terapêuticas adequadas” e o desfecho era, quase sempre, fatal: “Os meninos morriam muito cedo, a esperança média de vida era de cerca de seis meses, era uma doença da infância.” Mas, desde então, há também “progressos” que permitem “fazer o diagnóstico muito precocemente”. E muito precocemente é nos primeiros dias de vida.
Em Portugal, a fibrose quística faz parte desde 2013 do rastreio neonatal, o chamado teste do pezinho. Segundo os mais recentes dados da Unidade de Rastreio Neonatal, Metabolismo e Genética do Departamento de Genética Humana do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), no ano passado foram diagnosticados seis bebés com fibrose quística em Portugal. Seis casos em 84.631 recém-nascidos rastreados no âmbito do Programa Nacional de Rastreio Neonatal (PNRN). Estima-se que esta doença afete 350 pessoas em Portugal.
Os pais de Ana Filipa souberam que a filha tinha fibrose quística sem que houvesse suspeitas da doença na família. Notaram que a filha tossia muito, constipava-se com facilidade e não conseguia ganhar peso, o que não tinha acontecido com o primeiro filho. Andaram “de médico em médico”, sempre à procura de respostas, até que encontraram uma médica de Viseu “que era bastante boa e conhecia a fibrose quística”. E foi uma surpresa conhecer o diagnóstico, que chegou com uma prova de suor, que ainda hoje continua a ser o meio de diagnóstico padrão para esta doença. Seguiram-se consultas no Porto, um transplante em Lisboa e mais consultas no Porto. Tudo pelo Serviço Nacional de Saúde, destaca Ana Filipa. “Sempre fui atendida no SNS. É onde estão os médicos especializados da Fibrose Quística. E a nossa medicação é praticamente toda suportada pelo SNS, de outra forma era impossível sobreviver.”
É certo que a fibrose quística que Ana Filipa tem terá sido herdada, mas foi a única a receber esta herança familiar. “Na família, que eu saiba, sou a primeira a ser diagnosticada. A minha família é enorme, o meu pai tem oito irmãos e a minha mãe também, de certeza que há mais portadores [alteração do gene CFTR], mas não portadores da doença”. Mas Ana, Filipa rejeita apontar o dedo, encontrar culpados. E não se sente zangada por ser a única a receber a herança que ninguém quer. “O que às vezes tenho é pena”, admite. “Durante a minha infância, o meu irmão, que não tem doença nenhuma, acabou por levar por tabela com menos atenção e menos espaço na família, porque no início era tudo para mim. Mas é o que é, ninguém tem culpa. Se os meus pais soubessem não teriam tido a filha, mas é o que é.”
A leveza com que Ana Filipa vive a doença - apesar de ter consciência de que precisa de ter mais “cuidados” do que outras pessoas - é o seu próprio escudo-protetor. “É essencial percebermos que ela vai estar ali sempre e, espero eu, por muitos anos, significa que cá estou, por isso, é aceitar, como se costuma dizer 'aceita que dói menos'”, diz.
Quando perguntamos sobre o que lhe ficou na memória da adolescência, a altura mais crítica da doença, Ana Filipa não consegue sequer guardar qualquer rancor aos momentos mais complexos, como aqueles em que precisava de uma garrafa de oxigénio “24 horas por dia” ou quando começou a perder os seus companheiros de batalha, um a um. “Comecei a ser internada e a ficar sozinha, comecei a ter mais essa noção de que isto nem sempre corre bem.” Mais uma vez, Ana Filipa fala com rapidez, uma rapidez de quem sabe que cada dia tem de ser aproveitado, sobretudo porque o amanhã não é certo - mas já não é tão incerto como outrora foi. E é nisso que se agarra todos os dias. E é essa resiliência que mostra ao mundo no seu blogue Transplante da Filipa, criado pelo irmão, quando recebeu dois pulmões novos e sentiu que renasceu. Lá, conta como é viver com a doença, celebra os seus dois aniversários, tira dúvidas, dá apoio a quem procura um ombro amigo para falar sobre os desafios da doença. “Acho que nunca vou terminar o blogue, são muitos anos, tenho ali muitas histórias, dá pena terminar. Se eu estou uma temporada sem escrever, recebo logo e-mails a perguntar se está tudo bem”, conta.
Ao longo da sua vida, Ana Filipa foi desafiando as estatísticas e acompanhando o aumento da esperança média de vida, que atualmente é de cerca de 40 anos para quem tem fibrose quística. Mas não pensa muito nisso dos números. E até brinca: “Digo 'está quase'”, a rir. “Eu e os meus amigos usamos muito o humor negro, o que acaba por acalmar um bocado as coisas, brincamos. A verdade é uma, não é por pensar mais nisso que o dia não vai chegar. O que penso sempre é: que cuidados é que eu posso ter? Quarenta e dois [anos] é uma média, possivelmente alguém não chegou aos 20 e alguém vai chegar aos 60.”
Para Ana Filipa, que tem uma loja de roupa na Trofa, espaço que abriu com o irmão há 14 anos, após o transplante de pulmão, “é impensável” as pessoas que a rodeiam “não saberem” que tem fibrose quística. Assim como é impensável não mostrar a sua realidade. “Para mim, colocar os medicamentos em cima da mesa é super normal. Agora tomo cerca de 40 comprimidos diários, mas quando era mais nova cheguei a tomar mais. Se calhar as miúdas levam na mala, por exemplo, um batom, eu levo uma caixinha com medicamentos. Para as miúdas o batom é essencial, mas para mim a medicação também é.”
Em Portugal há quatro medicamentos para a fibrose quística, um deles o Kaftrio, que protagonizou a luta de Constança Braddell, a jovem que lutou pela aprovação do fármaco. Mesmo não sendo elegível para este medicamento - que faz as vezes de um transplante -, Ana Filipa acredita que se encontrarão formas de prolongar com qualidade a vida dos pacientes com a sua doença e não tarda chegarão novos medicamentos até para quem já recebeu o transplante.
A médica Pilar Azevedo partilha dessa mesma expectativa: “O avanço do Kaftrio foi incrível”, diz a especialista nesta doença, adiantando que “há projetos de investigação interessantíssimos, há terapêuticas baseadas na tecnologia por mRNA, outras terapêuticas genéticas envolvendo o ADN, são terapêuticas altamente especializadas, mas que se avizinham no futuro e que poderão então beneficiar todos os doentes. E isso dá-nos uma grande alegria, o poder assistir ao facto de a fibrose quística ser uma doença absolutamente do passado e passar a ser uma doença que se possa manejar e que estes doentes possam ter uma vida igualzinha à de todas as outras pessoas.”
INÊS, DOENÇA DE HUNTINGTON
Filomena Pato já perdeu a conta aos quilómetros percorridos entre Lisboa e Coimbra nos últimos oito anos. Ainda faz um gesto com a cabeça como se estivesse a fazer contas, mas limita-se a dizer que foram muitos quilómetros, quilómetros esses que acabou por galgar por um mero, mas feliz, acaso.
A filha mais nova Inês tem doença de Huntington, uma doença rara, genética e autossómica dominante, o que significa que cada filho tem 50% de probabilidade de herdar o gene mutado e desenvolver a doença. Inês herdou, a irmã não. Mas foi a ida da irmã para Coimbra que permitiu a Inês saber que tinha a doença. Em conversa com os amigos médicos do marido sobre os tremores que tinha nas mãos, a irmã de Inês acabou por confidenciar que queria fazer o teste genético para a doença de Huntington e que tinha uma irmã que começava a apresentar alguns sintomas. Corria o ano 2017 e esta família tinha descoberto há pouco tempo que o pai era portador da doença.
Filomena já tinha pedido ao médico de família a prescrição para Inês fazer o teste genético para saber se a filha iria receber esta herança. Havia o histórico familiar e sintomas que começavam a ser visíveis. Mas foi um pedido em vão. Inês, de 35 anos, acabou por fazer o teste a 203 quilómetros de distância, em Coimbra, onde passou a ser seguida desde 2017, ano em que fez o teste genético que confirmou a herança mais temida.
“Aqui em Lisboa nunca consegui essa resposta, nada, nunca consegui. O hospital nunca nos chamou para ir fazer este teste, nada. Se não fosse a minha filha mais velha ter arranjado um marido que tem uma data de amigos médicos que trabalham em Coimbra, acho que ainda hoje, não sei, andava à procura [de respostas]”, desabafa Filomena.
A Inês já não anda sozinha, não come sozinha e pouco fala. Vontade não lhe falta, sobretudo quando vê caras novas, brinca a mãe, mas as palavras começam a ter dificuldade em sair e quando saem nem sempre são percetíveis. A progressão da doença da Inês tem sido mais rápida do que o desejado, assim como os encargos financeiros. Sentada no sofá, Filomena volta a fazer contas de cabeça, mas desta vez dá-nos um número: “À volta de quatro mil euros por mês, mais ou menos, às vezes mais.” É isto o que gasta com os tratamentos de Inês, que apesar de saber que não chegará a ver a cura, quer dar o máximo de qualidade de vida à filha.
Neste bolo milionário estão as deslocações a Coimbra, as idas a consultórios privados quando necessário, como para aplicar toxina botulínica na zona mandibular para Inês “não se babar tanto” ou na perna esquerda para aligeirar a rigidez, sessões de fisioterapia, sessões de terapia da fala e de psicomotricidade, consultas de psicologia, o pagamento aos serviços de ação social para que todos os dias vá uma pessoa dar banho a Inês - só aqui são “cerca de 130 euros mensais” - e o salário de Salomé Monteiro, que cuida da Inês todos os dias desde 2020, enquanto Filomena está a trabalhar. A isto, somam-se ainda outros encargos, como uma cadeira de rodas e uma cama articulada com barras laterais de uma ponta a outra, para que Inês não caia durante os episódios mais agressivos de espasmos. “Comprei ainda uma bacia para ela lavar a cabeça, tenho um chuveiro automático com um motorzinho. Tento fazer tudo para ajudar e tornar a vida da Salomé fácil, porque não é fácil”, conta a mãe da Inês.
Na prática, Filomena só não paga a tetrabenazina, medicamento para os espasmos receitado pela médica que acompanha Inês em Coimbra. De resto é tudo do seu bolso. “Eu tenho mais capacidade monetária porque, entretanto, o meu pai faleceu e tinha alguma coisita, alguns andares em arrendamento. Desses rendimentos, divido metade com a minha irmã e consigo tirar dois mil euros [por mês]. Há meses em que o meu vencimento mais isto não chega e tenho de ir tirar do dinheiro que tenho guardado. Eu tento não tocar no dinheiro que a Inês vai recebendo, porque se tiver uma emergência... Por exemplo, tive de comprar uma cama articulada com urgência”, diz Filomena.
Salomé acompanha de perto a luta de Inês e de Filomena. É quem está todos os dias lá em casa com Inês, cuidando da sua higiene, alimentação, fazendo-lhe companhia, assim como a gata Megui, sempre “muito atenta”. “Realmente não é fácil, é preciso ter muita paciência, compreendê-la”, desabafa Salomé, que passou a entrevista toda de mão dada com Inês, tal como Filomena, cada uma de um lado, a puxar a jovem para a conversa. “Às vezes zangamos-nos um bocadinho as duas. Ela é muito meiguinha, mas quer as coisas e quando diz é para [ser] logo. Mas ela depois pede desculpa. Depois damos um abracinho e fazemos as…”, diz Salomé, deixando a frase no ar. Mas Inês completa: “Pazes”.
Estima-se que Portugal tenha entre 4.200 a 7.000 pessoas com doença de Huntington diagnosticada, indica Cristina Sampaio, professora de Farmacologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e investigadora nesta patologia. A doença de Huntington tem origem num gene que codifica as instruções de fabrico da proteína huntingtina. É uma patologia neurodegenerativa, hereditária e afeta sobretudo o movimento. É diagnosticada através de um teste genético - que só pode ser feito a partir dos 18 anos -, pela avaliação do histórico familiar e pela observação de sintomas. Não faz parte do rastreio neonatal.
Ana Morgadinho, neurologista da Sociedade Portuguesa de Neurologia, explica que esta doença caracteriza-se por “três grandes grupos de sintomas”, mas nem todas as pessoas manifestam a doença da mesma forma, com o mesmo ritmo ou a mesma intensidade. Não há duas doenças de Huntington iguais.
Os sintomas motores tendem a ser os primeiros sinais da doença, “em que há movimentos involuntários, quase sempre movimentos coreicos”. Esta doença já chegou a ser denominada Coreia de Huntington, “coreia é por definição um movimento involuntário, é como se houvesse movimentos semelhantes a uma dança”. Esses movimentos, muitas vezes sob a forma de espasmos, “podem aparecer em qualquer zona do corpo, podem atingir as mãos, a face, os membros inferiores, o tronco”, continua a médica. O segundo grupo de sintomas está relacionado com o comportamento, sendo comum estes doentes serem “muito impulsivos na forma como reagem, respondem e decidem as coisas, mas, como em tudo, há doentes que ficam muito mais apáticos, a falar menos, com menos iniciativa”. Já o terceiro grupo de sintomas inclui “alterações cognitivas”, sendo que, explica a neurologista, “estes doentes vão acabar por desenvolver demência, inicialmente uma demência frontal, em que as queixas começam de forma ligeira”. Este tipo de demência, continua, “é diferente do Alzheimer, aqui não começa pela memória, são doentes que deixam de conseguir planear o dia a dia, coisas que sempre souberam fazer ficam desaprendidas, seja no trabalho, na programação da vida familiar ou social”.
Inês tem um pouco disto tudo, reconhece Filomena. “Ela também sempre foi muito impaciente, que é uma das manifestações da doença. Com ela é tudo para antes de ontem”, diz, em tom de brincadeira, olhando para a filha, que responde com um “sim”, a sorrir. “A Inês tinha uma particularidade: com 18, 19, 20 anos, era incapaz de dobrar uma camisola, que é uma coisa simples. Vamos desvalorizando esse tipo de coisas”, conta Filomena, reconhecendo que, olhando agora para trás, havia já vários sinais da doença, mesmo antes de o pai descobrir que a tinha (diagnóstico que chegou “por acaso” após um acidente, uma vez que os sintomas eram quase impercetíveis).
Um outro sinal que Filomena agora reconhece como indício da doença era a “inelegibilidade da letra” da Inês ao longo dos anos e a incapacidade de formular ideias por escrito. Inês fez uma licenciatura de Genética e um mestrado de Biologia Humano-Ambiental e antes disso ainda tinha feito dois anos completos, “sem faltar a nenhuma cadeira”, de Meteorologia, Geofísica e Oceanografia. Conseguiu ainda ir defender a tese “mas aí já se via que havia ali mais qualquer coisa”.
Inês acabou por nunca trabalhar, fez um breve trabalho “a recibos verdes” com alunos de um colégio, mas a doença galopou de tal maneira que foi perdendo capacidades mês após mês. Por nunca ter trabalhado, não pode aceder a qualquer tipo de incapacidade por reforma. Recebe mensalmente dois apoios, “no total, à volta de quinhentos e poucochitos euros, quinhentos e uma coisita”. Atualmente, Inês tem uma incapacidade de 93%, mesmo sendo 100% dependente de terceiros. “Ela não pode ficar sozinha, até com a saliva se engasga”, alerta a mãe, recordando com tristeza um episódio recente em que Inês foi a uma junta médica - “não fomos a fingir, fomos tal e qual” -, mas já com sintomas claramente visíveis e já sem conseguir alimentar-se ou fazer as suas necessidades sozinha, viu ser-lhe atribuída uma incapacidade de 64% só porque foi ainda pelo seu pé.
Inês estava consciente da sua situação quando fez o teste genético e soube o resultado. E nunca mostrou raiva. Nem Filomena. Tal como diz Ana Filipa, a quilómetros de distância, “é o que é”, diz. E tal como Ana Filipa, Filomena também tenta não pensar muito no futuro. “Não. Não vale a pena, se fizesse isso era melhor começar a tomar comprimidos para a depressão. [pausa] Só há duas coisas a fazer, segundo o meu ponto de vista, ou a gente entrega-se à coisa ou tem de lutar”, diz a oficial de justiça da categoria de escrivã de direito, convicta.
“Eu encaro isto como um tremor de terra, vamos tentar sair debaixo dos escombros, mas não vale a pena olhar para trás, o que se fez, o que não se fez, é tentar lutar e ir para a frente. Não vou ficar aqui parada a pensar sobre o assunto [a doença] porque não o vou resolver, não tenho a chave da cura, não tenho maneira de resolver, então é tentar o que está ao meu alcance e o que está ao meu alcance é o dia a dia, nunca penso no amanhã, no que vai acontecer. Mas também lhe digo uma coisa, também me adapto. Há coisas que eu dava mais importância e que agora não dou, posso dizer que é da idade, relativizarmos as coisas, mas conviver tão próximo com a doença ajuda a relativizar muito mais”, desabafa Filomena.
A neurologista Ana Morgadinho lamenta que os estudos epidemiológicos sobre a doença sejam “raros”, o que dificulta a sua compreensão, mas garante que os hospitais centrais em Portugal dedicam-se a esta doença, havendo equipas especializadas em Lisboa, Coimbra e no Porto. “É importante serem pessoas com experiência, o que também facilita em termos de acessibilidade a ensaios clínicos ou novas abordagens terapêuticas”, aponta a médica. E Inês já participou em dois desses ensaios clínicos, em Coimbra. Quanto a medicamentos, o que há serve apenas para atenuar sintomas, nada ainda capaz de travar a doença ou de a prevenir.
A Associação Portuguesa de Doentes de Huntington já conseguiu trazer a doença para o debate político com um projeto de resolução aprovado na Assembleia da República em 2018 que consagra o Dia Nacional da Doença de Huntington, dia 15 de Junho. No entanto, Helena Soares, presidente da direção, lamenta que “ainda não concretizaram” as promessas de “abertura de Unidades especializadas para pessoas afetadas por esta doença”.
LÍDIA, PARAMILOIDOSE (DOENÇA DOS PEZINHOS)
Receber o diagnóstico de uma doença rara e sem cura tem impacto. Por muito que a pessoa adote uma postura otimista e tente relativizar, aceitar o destino é uma herança com peso, sobretudo emocional e psicológico. Uma herança que, muitas vezes, acaba por moldar a personalidade de quem a recebe. E Lídia Silva não esconde isso: “A paramiloidose moldou a minha personalidade, às vezes tenho tendência para me classificar como uma pessoa mais fria, mais prática, porque não gosto de fazer planos a longo prazo, os meus planos são a curto prazo.”
Lídia Silva, diretora de Recursos Humanos numa empresa na Póvoa de Varzim, recebeu o diagnóstico com 21 anos. Foi fazer o teste com a irmã. Ambas testaram positivo para esta doença multissistémica, degenerativa, que resulta de uma mutação no gene da transtirretina (TTR). Esta é também uma doença autossómica dominante, o que significa que 50% dos filhos de um doente poderão vir a herdar o gene responsável pela doença. Apesar de ter convivido de perto com a doença, Lídia ainda acreditou que poderia escapar. “Houve tristeza, temos sempre a esperança que o teste venha negativo, a gente chora, eu chorei. Pensei, ‘pronto, olha, vamos lá lidar com isto’”. E assim tem sido e já passaram 16 anos. “Sou sincera, nunca esperei que aos 47 anos ainda cá estivesse”, desabafa, entre risos.
A esperança de vida dos pacientes com paramiloidose familiar “é um bocadinho variável”, começa por explicar o geneticista João Silva, do Centro de Genética Preditiva e Preventiva do Instituto de Biologia Molecular e Celular. Antes de haver a primeira solução para a doença, “que foi o transplante hepático”, a esperança média de vida do doente portador “era 10-15 anos, não mais do que isso”, recorda o médico. “Com o transplante, isso mudou substancialmente, atualmente já existem transplantados com 30 anos de vida pós transplante”, vinca.
Ao contrário do pai, que “adoeceu jovem”, Lídia começou a ter sintomas mais notórios apenas há quatro anos. “Só iniciei um tratamento aos 40 anos, o tafamidis, porque fiz uma biopsia ao lábio e já tinha depósito de amilóide, então, a médica achou que deveria iniciar um tratamento”. Já a sua irmã tem apresentado uma evolução diferente da doença e foi transplantada há 16 anos.
Lídia também não vive revoltada com a herança que recebeu. Foca-se no dia a dia. “Não vou olhar para o passado e o amanhã logo se vê como é que se resolve. Não sou de ficar a lamber as feridas”, diz, séria. “O meu objetivo é ter a minha qualidade de vida, estar cá e lutar por ela. E tentar estar o máximo de tempo possível para ver o meu filho, vê-lo crescer e ser um humano bom.”
Embora viva refém da imprevisibilidade da doença, Lídia sempre fez por tomar as rédeas da sua vida, ou, pelo menos, do que consegue controlar. “Quando comecei a namorar com o meu marido, ao fim de pouco tempo, disse logo que poderia ter uma doença e disse-lhe quais eram os meus planos de futuro se continuássemos juntos, já estava a impor as regras, feita mandona”, conta a rir. Lídia cresceu com a sombra da paramiloidose familiar, conhecida como doença dos pezinhos, da qual o seu pai era portador. “A minha mãe teve de deixar de trabalhar para cuidar do meu pai, desde sempre tivemos conhecimento da doença, sabemos o que irá acontecer.”

A paramiloidose familiar é uma doença “silenciosa”, alguns órgãos vão “produzindo a substância amilóide que vai sendo depositada nos tecidos”, podendo também acumular-se no cérebro, como descobriu um estudo português em 2022, mas as consequências demoram tempo a aparecer, “porque só ao fim de alguns anos é que há a deterioração dos tecidos” à boleia do depósito da substância amilóide, explica o geneticista João Silva, também tesoureiro da Direção Nacional da Associação Portuguesa de Paramiloidose. Na maioria dos casos, esta é uma doença de progressão rápida. Os primeiros sintomas, pelo menos os visíveis, incluem “dificuldade em andar, mas há um outro conjunto de complicações, algumas deles menos visíveis, como distúrbios a nível intestinal, impotência sexual, emagrecimento”, continua o médico, que diz que a sintomatologia tende a aparecer entre os 20 e os 30 anos.
Lídia lembra o estigma que sentiu pela possibilidade de vir a ter a doença. “Eu cresci numa aldeia”, recorda, justificando alguns dos comportamentos à data, como haver famílias a “dizer que não deves namorar com aquela rapariga porque há possibilidade de…”. “Acabei por encontrar a pessoa certa, que estava à minha espera”, revelando que o seu marido esteve do seu lado desde o primeiro momento, mesmo quando decidiu ditar as regras da relação: “Ou optamos por não ter filhos ou temos filhos sem a doença”, lembra sobre o ‘ultimato’ que lhe fez. “Estávamos alinhados, temos um filho que não tem a doença, fizemos o teste genético pré-implantacional para doenças monogénicas.” Este teste também é possível no caso de pacientes da doença de Huntington.
É também no Serviço Nacional de Saúde que Lídia tem sido acompanhada. As viagens são pequenas, pouco mais de 30 quilómetros. “Tenho um bom acompanhamento no SNS em tudo o que é relacionado com o centro de estudos da doença. O meu hospital de referência é onde está o centro de estudos, que é o Santo António”, diz, explicando que é lá que é seguida em oftalmologia e cardiologia. Mas é rápida a dizer que “fora disso, tudo o resto é uma lástima”, sobretudo nos cuidados de saúde primários.
“A nossa doença engana, temos um bom aspeto exterior, mas lá dentro está tudo escangalhado, há as diarreias que não controlamos, há os vómitos, mas acham que só quem anda de cadeira de rodas ou andarilho é doente de paramiloidose” - Lídia Silva
Apesar de ser uma doença rara, com uma estimativa de 1.865 pacientes em Portugal, é na zona da Póvoa de Varzim e Vila do Conde que estão grande parte dos casos portugueses. “Os médicos de família percebem menos do que eu, mas também falta a vontade de querer conhecer. Estão numa zona onde há muitos casos”, atira. Salvo as consultas de especialidade que tem no Hospital de Santo António, Lídia recorre ao setor privado para fazer um acompanhamento mais amiúde da doença. “Tenho a sorte de ter um seguro de saúde. Pago do meu bolso, é a minha saúde que está em causa.”
Mais uma vez, Lisboa, Coimbra e Porto são os centros de referência para esta patologia. No caso do Hospital de Santo António, foram celebrados protocolos com o Hospital de Braga e com o Hospital Santa Maria Maior, em Barcelos, para que os utentes destas áreas de residência possam fazer o tratamento nos hospitais mais próximos de casa, deixando de ter de ir ao Porto. Atualmente, 15 utentes encontram-se a realizar tratamento na Unidade Local de Saúde Barcelos-Esposende. No Hospital de Braga foram acompanhados 19 pacientes em 2024, também referenciados pelo Hospital de Santo António.
Apesar desta “descentralização” da administração dos medicamentos, o médico João Silva reconhece que “o SNS não está completamente apto” para lidar com esta doença. “Se estivesse não teríamos tido tanta dificuldade em que os doentes que estão a fazer um medicamento que requer disponibilidade de hospital de dia tivessem de estar em lista de espera”, exemplifica. “Estes protocolos [entre hospitais] surgiram da incapacidade dos hospitais de dia. Mesmo com essa administração descentralizada do medicamento, enfrentamos alguma incapacidade, ainda existe lista de espera.”
A terapêutica para a paramiloidose foi reforçada em outubro com um novo medicamento, Amvuttra (vutrisiran), mas mais de três meses depois ainda não chegou a todos os pacientes, como noticiou o jornal Público. João Silva, da Associação Portuguesa de Paramiloidose, critica os atrasos, mas não consegue disfarçar o entusiasmo que este novo fármaco traz. “É um medicamento que nos traz bastante esperança, os ensaios mostram eficácia de 85% no tratamento da doença, mas há outros projetos em curso para o surgimento de novos medicamentos”, adianta o médico. No entanto, alerta que os fármacos atualmente no mercado não eliminam a doença, “tratam e evitam que a substância se deposite nos tecidos ou que a substância seja produzida em alguns órgãos, mas não há nada que elimine a doença”.
TAMARA HUSSONG MILAGRE, CANCRO HEREDITÁRIO
Estar no sítio certo, à hora certa e na companhia certa. Se assim não tivesse sido, possivelmente Tamara Hussong Milagre ainda hoje não sabia que poderia vir a ter cancro. Ou já estaria a lutar contra a doença. É desta forma pragmática que a antiga enfermeira vê a importância de conhecer a sua herança genética. “É uma dádiva saber.”
Tamara, alemã que se apaixonou por Lisboa há mais de duas décadas, ouviu falar pela primeira vez em cancro hereditário em 2006, quando acompanhou uma grávida de 27 anos com diagnóstico de “cancro da mama triplo negativo já muito avançado”. O assunto inquietou-a de tal forma que acabou por ter longas conversas com esta paciente, tornando-se amigas. “Ela também me contou que tinha duas tias paternas falecidas de cancro da mama com 40 anos. E aí a médica dela levantou a suspeita de que poderia eventualmente ter uma mutação no gene BRCA, na altura o único conhecido relacionado ao cancro da mama hereditário.” E foi aqui que caiu a ficha a Tamara, agora com 56 anos: “Eu tinha três tias com cancro da mama e ovário, como também uma tia-avó com cancro, tudo de lado paterno. Adicionalmente, tinha a minha mãe, que tinha tido cancro da mama aos 44 anos.”
Ainda antes de fazer o teste genético, Tamara sentiu o peso da herança: “A minha história familiar reflete todos os cenários possíveis do cancro hereditário, com a história familiar evidente. Temos aqui todos os possíveis cenários.” O resultado voltou positivo para o BRCA 1, três meses mais tarde.
A agora presidente da EVITA - associação sem fins lucrativos que criou para dar apoio a pacientes com cancro hereditário - avançou, “em primeiro lugar, com a mastectomia bilateral profilática” e, depois, com um “histerectomia total por causa da substituição hormonal, porque a substituição hormonal é um fator tão negligenciado como importante para a qualidade de vida da mulher”. “Esta foi a minha decisão informada”, destaca, lamentando o facto de muitas mulheres não serem ainda capazes de tomar uma “decisão informada” por aquilo que diz que é falta de conhecimento genético e da doença de muitos médicos. “Esta decisão só foi difícil para mim no sentido de perceber que uma menopausa não é brincadeira, é uma temática muito, muito mal conversada”, adianta a antiga enfermeira, profissão que deixou de exercer em 2014.
Tamara Milagre defende que “a carga socioeconómica do cancro hereditário precoce, no auge da produtividade, da fertilidade, é múltiplas vezes superior” a uma aposta na prevenção. “Este é o ponto em que temos dificuldade em convencer os decisores. Em 2024 continuamos a enterrar mãezinhas de meninos pequeninos, porque acham que isto é uma coisa muito rara, mas isso é errado, temos de mudar a narrativa, o cancro hereditário mata, ainda hoje, sem necessidade. A isto chamo negligência por parte do sistema”, atira a alemã, dizendo ainda que “a dificuldade para fazer o teste genético é assustadora, há várias barreiras, a primeira é a falta de literacia genética nos profissionais de saúde”.
O próprio despacho que aprova a “Estratégia Nacional da Luta Contra o Cancro, Horizonte 2030” reconhece que as pessoas com cancro hereditário “têm um risco de cancro superior ao risco médio da população portuguesa, contudo estão excluídas dos programas de rastreio de base populacional”. Estima-se que o cancro hereditário representa cerca de 5% dos casos de cancro em Portugal. Falamos de mais de três mil casos de cancro familiar por ano, num universo de 60.717 diagnósticos de cancro feitos em Portugal em 2021, segundo os últimos dados do Registo Oncológico Nacional.
“É uma boa notícia saber desta herança, diz porque é que toda a gente na minha família morreu com cancro. Com esta informação, eu tive o poder de informar os meus irmãos. Agora já ninguém vai morrer com isto” - Tamara Hussong Milagre
Tamara nunca foi diagnosticada com cancro. “Eu tive a sorte e felicidade de obter um conhecimento que me empoderou de agir e prevenir a doença e é essa a nossa grande aposta na EVITA, estamos a apostar fortemente na prevenção do cancro”, diz. E por ter agido assim que soube que era portadora da variante genética, assegura que “agora é bastante improvável ter cancro”. “Eu não posso prevenir todos os cancros, mesmo nas mamas ficam umas células da glândula mamária para a axila, não dá para tirar tudo, mas diminui drasticamente o risco. Menos terreno vulnerável, menos probabilidade”, destaca.
Mas a luta de Tamara foi uma luta também familiar. Além de ser mãe de duas meninas - a mais velha já submetida ao teste genético, que deu negativo, a mais nova ainda não tem idade para fazer o exame -, é tia de outras quatro raparigas. E sentiu que tinha a missão de alertar o resto da família para a possibilidade desta herança ser mais comum do que o desejado. “Liguei para a Alemanha e disse aos meus irmãos que eles tinham de tirar a limpo se havia alteração genética por causa das minhas quatro sobrinhas. Os médicos concordaram comigo e fizeram o teste. E confirmou-se que ambos os meus pais eram portadores de variantes no gene BRCA-1 e das minhas quatro sobrinhas só uma é portadora.”
Para Tamara Hussong Milagre, não há sombra de dúvida que “é uma boa notícia” saber da existência de um gene que deixa as pessoas mais suscetíveis a ter cancro.
E Tamara volta a falar da dádiva que é saber a herança que se tem inscrita no ADN quando em cima da mesa está a palavra cancro, prevenível, tratável. “Esta é a grande diferença entre outras doenças hereditárias, que têm um final infeliz, em que não há tratamento ou cura”, diz. “Falamos da doença de Huntington, é uma devastadora certeza quando temos um resultado positivo, quando falamos que não há cura, quando falamos no cancro hereditário, falamos de uma informação super valiosa que nos empodera de agir proativamente, avançar com cirurgias preventivas, pelo menos com vigilância precoce personalidade, não tem qualquer comparação possível.”
Apesar de o cancro familiar ser raro, é já sabido que “alguns tipos de cancro ocorrem mais frequentemente em algumas famílias do que no resto da população”, como destaca a Liga Portuguesa Contra o Cancro, que dá o exemplo do melanoma e do cancros da mama, ovário, próstata e cólon. Mas há também o cancro do estômago, cuja agregação familiar pode ajudar a justificar porque é que a grande maioria dos casos portugueses estão na zona norte do país.
Tamara assumiu a missão de fazer do cancro hereditário um tema de interesse médico e político ao criar a EVITA, onde “qualquer pessoa que procure um conselho não sai dali sem estar encaminhado para o sítio certo”. A esta associação chegam pessoas já diagnosticadas, pessoas que suspeitam que podem ser portadoras de variantes genéticas, familiares, curiosos. “São informadas, temos muitas conversas por Zoom com a pessoa afetada, o parceiro, os pais, os primos”, relata. Na EVITA Plataform disponibiliza um questionário sobre o risco genético, cujo resultado é depois avaliado por um médico geneticista, para que haja a devida referenciação clínica. Há ainda acompanhamento psicológico, diz, reconhecendo que, mesmo empoderando as pessoas com informação, a confirmação de um teste genético tem sempre um peso emocional grande.
Tamara revela que só na EVITA Plataform já foram feitos 2.700 registos. “Desses, 83% têm um resultado de alto risco depois de preencherem o questionário, isso identifica uma necessidade real na nossa sociedade”, adianta, revelando que está já em conversações com o INFARMED e com o Ministério da Saúde para que esta ferramenta seja usada de forma mais ampla, como uma espécie de rastreio oncológico.