
Morreram com Saddam Hussein, mas ressuscitaram após a queda do ditador iraquiano. Agora, os Pântanos da Mesopotâmia - que vários suspeitam ser a inspiração do Jardim do Éden descrito na Bíblia - sufocam por causa das alterações climáticas e de novas barragens na Turquia e no Irão.
Defender o ambiente não costuma ser uma tarefa fácil, mas a dificuldade é ainda maior num país, como o Iraque, com muito lixo nas ruas e onde grande parte da água é consumida em pequenos copos de plástico selados que nunca se sabe onde vão acabar.
Muntathar Abd Ali é uma espécie rara: perante o olhar de estranheza e por vezes reprovação dos amigos, aos 14 anos decidiu ser ambientalista e defender os Pântanos da Mesopotâmia, o primeiro parque natural do Iraque.
Para quem sabe pouco do tema, a palavra “pântano” parece remeter para algo feio, mas Muntathar explica que nada podia estar mais longe da verdade.
Filho de uma família do povo conhecido como “árabes dos pântanos” que há décadas teve fugir para as cidades, um dia, aos 12 anos - sem saber nadar -, entrou sozinho numa canoa e atravessou o largo rio Eufrates na pequena cidade onde vive, Al-Chibayish, para conhecer os pântanos de que os pais tanto falavam. Foi amor à primeira vista.
Munthathar é há quatro anos voluntário na Nature Iraq, uma das poucas organizações não governamentais de defesa do ambiente num país que passou décadas em guerra, com outras prioridades.
O seu melhor amigo, refere orgulhoso, é Jassim Al-Asadi, de 67 anos, um veterano defensor dos Pântanos da Mesopotâmia, preso e torturado em 1978 pelo regime do ditador Saddam Hussein e que em 2023 foi raptado por uma milícia armada nunca identificada pela polícia.
O ambientalista, diretor-geral da Nature Iraq, nascido dentro de uma canoa nos Pântanos da Mesopotâmia e formado em engenharia hidráulica, foi torturado com paus e choques elétricos. O seu rapto levou o primeiro-ministro iraquiano a apelar à sua libertação, que aconteceu ao fim de 15 dias.
Depois do rapto, as Nações Unidas ofereceram-lhe um visto humanitário para sair do país, mas Jassim recusou: “Tenho um trabalho para acabar nos pântanos”, justifica-se.
Em vez de sair do Iraque, pediu vistos humanitários para dois filhos que, entretanto, foram para a Europa - precisava de ter a cabeça limpa das ameaças que os raptores fizeram contra a sua família.
Jassim Al-Asadi divide agora os dias entre a Babilónia, mais a Norte, e Al-Chibayish, no centro dos Pântanos da Mesopotâmia. Trabalho não lhe falta.
Um pântano é, por definição, uma zona húmida que passa muito tempo inundada com uma baixa altura de água. Porém, aqui, no Sul do Iraque, a natureza tem sido contrariada pelos homens.
Recuando na história, num dos maiores ecocídios de que há registo, os Pântanos da Mesopotâmia tinham sido propositadamente secos e destruídos, na década de 1990, por Saddam Hussein para eliminar a oposição que enfrentava dos árabes dos pântanos.
Um gigantesco dique travou o fluxo da água e secou a maior zona húmida do Médio Oriente, numa barreira física que só acabou após a invasão norte-americana do Iraque em 2003.
Jassim Al-Asadi e outros árabes dos pântanos estiveram na linha da frente a destruir a obra de engenharia do antigo ditador.
Os pântanos nunca mais ficaram como antes de Saddam Hussein, mas ressuscitaram. Escondidas no solo, as sementes resistiram ao calor tórrido de uma região desértica.
Os juncos e papiros cresceram e atingiram o seu ponto mais alto no final da última década, há quatro ou cinco anos. As aves e os peixes também regressaram.
Os Pântanos da Mesopotâmia ficaram em parte de novo cheios de vegetação para felicidade dos árabes dos pântanos que antes de Saddam Hussein, durante cinco mil anos, viveram na região onde se cruzam os rios Eufrates e Tigre.
Uma cultura milenar que depende do peixe e da criação de búfalos de água, bem como da apanha dos juncos e dos papiros, plantas de zonas húmidas e aquáticas.
Entretanto, em 2016, os Pântanos da Mesopotâmia foram classificados como património mundial pela UNESCO, mas agora enfrentam um desafio ainda mais complexo com sucessivas secas.
O rio Eufrates, o rio Tigre e os canais próximos têm água, mas não chega para cobrir os milhares de quilómetros quadrados dos pântanos vizinhos.
Grande parte das zonas antes húmidas estão secas desde uma seca cujos efeitos se sentem desde 2021.
Jassim Al-Asadi diz que é todo um ecossistema e uma cultura - dos árabes dos pântanos - que está de novo em risco e encontra três causas: as alterações climáticas (menos chuva e mais calor); o desinteresse do Governo iraquiano numa boa gestão da água nos campos agrícolas a montante; e as barragens construídas nas últimas décadas na Turquia e no Irão.
O velho ambientalista alerta para estes problemas há anos, sobretudo desde a seca de 2021.
“É a primeira vez que a seca se arrasta durante três ou quatro anos. A água nos pântanos nunca mais recuperou totalmente e não chega para o crescimento da vegetação, nem para os pássaros, os peixes ou os búfalos”, explica Jassim Al-Asadi que está convencido que foram as críticas ao Irão que justificaram o seu rapto em 2023.
“Os meus raptores perguntaram-me sobre o que me levava a falar dos pântanos e da água que vem do Irão. Diziam que era um espião de Israel e dos Estados Unidos da América…”, recorda, ainda algo estupefacto.
No Iraque a proteção do ambiente joga-se num tabuleiro complicado de geopolítica.
Num país onde as milícias xiitas, fortemente armadas, ligadas ao Irão, são visíveis em inúmeros locais, falar mal do país vizinho pode ser um risco.
Nas estradas do Iraque uma das fotografias mais presentes é a de um general iraniano, Qasem Soleimani, morto em 2020 num ataque dos EUA, que tal como a União Europeia o considerava um terrorista.
Qasem Soleimani é hoje um mártir-herói para o Irão e para os grupos armados de muçulmanos xiitas do Iraque. Sem grandes explicações, a sua cara foi, entretanto, colocada em destaque num monumento construído, originalmente, para recordar os milhares de árabes dos pântanos mortos ou deslocados à força, na década de 1990, por Saddam Hussein.
Para quem chega pela primeira vez à região e não tem ideia do que eram até há poucos anos, os Pântanos da Mesopotâmia mantêm-se apelativos.
As aves continuam a parecer muitas e o verde e castanho dos papiros e dos juncos ainda se vê em certos locais.
Sentado num mercado de peixe ao ar livre (sem ninguém a vender peixe), o pescador Mahdi Awad Ziara explica que atualmente só vivem mesmo dos turistas que aparecem ao fim-de-semana.
“Nos outros dias não fazemos nada. Falta água. Os pântanos acabaram. Não vale a pena pescar”, detalha o homem de 70 anos.
Adnan Abu Haider, de 53 anos, ainda se atreve a lançar as redes ao rio Eufrates, mas 24 horas depois encontra apenas peixe miúdo que nem dá para vender.
“Sem água não há juncos e sem juncos as aves e os peixes não têm onde se esconder”, diz o pescador que, por ser fim-de-semana, a seguir vai tentar ‘pescar’ algum turista.
Os criadores de búfalos fazem um diagnóstico semelhante. Falah, que vive com os animais e com a família numa ilha no centro dos pântanos, conta que tudo mudou para pior nos últimos quatro anos.
Rashid Noah, outro criador de búfalos com mais de 50 anos, confirma as dificuldades, mas não pretende desistir: “Nasci e cresci aqui. Não quero mudar de vida”.
Para quem visita hoje os Pântanos da Mesopotâmia e os acha bonitos, o veterano ambientalista que lá nasceu, Jassim Al-Asadi, garante que estamos a ver “a sua face negra”.
Minutos depois de ter tentado convencer dois jovens a parar de despejar entulho e lixo para os pântanos, Muntathar Abd Ali, o ambientalista de 19 anos, recorda: “Há quatro anos, o local onde estamos parecia o céu. Não é por acaso que muitos consideraram, ao longo dos séculos, que seria aqui o Jardim do Éden” descrito na Bíblia.