
O arcebispo Jorge Mario Bergoglio vivia num apartamento em Buenos Aires, andava de transportes públicos e conversava com as pessoas na rua. Eram conhecidas as visitas às villas miseria, a vocação pastoral para a libertação dos oprimidos, o combate à pobreza.
Eleito Papa, prescindiu dos aposentos no palácio apostólico para viver na casa de Santa Marta, uma espécie de pensão dentro do Vaticano. Explicaria, na resposta a uma criança que o interpelou numa audiência, que não conseguia viver sozinho no palácio apostólico, “por razões psiquiátricas”, admitindo ter "um problema de personalidade” e, por isso, precisar de “viver rodeado de gente”. Durante a ditadura militar argentina (1976-1983), enquanto superior local dos jesuítas, teve consultas regulares de psiquiatria. “Seus conselhos [da psiquiatra] sempre foram muito úteis para mim, mantive-os na mente até hoje”, escreveu na autobiografia (Papa Francisco, Esperança, 2025, Ed. Nascente).
Nos primeiros dias do pontificado, a comunicação social esforçou-se por interpretar a escolha dos aposentos, a cor dos sapatos e da cruz peitoral, em prata e não em ouro. A prata é o metal precioso da tradição argentina e os sapatos tinham de ser os ortopédicos, do costume. Com humor, disse na autobiografia que não se sentia confortável para vestir calças brancas porque não queria ser confundido com um vendedor de gelados.
A simplicidade do Papa argentino preencheu as expectativas iniciais. “É a sociedade fora da Igreja que olha para este Papa com mais entusiasmo, vendo nele um ator de uma transformação absolutamente necessária”, entende o sociólogo José Manuel Pureza, membro de um grupo de trabalho internacional para estudar a relação entre o marxismo e o cristianismo.
Em junho de 2013, Francisco foi a Lampedusa, ilha italiana no Mediterrâneo, mar de refugiados e náufragos. A primeira viagem foi mais do que uma escolha. O caminho desenhava-se nas periferias.
Na leitura do frade franciscano capuchinho Fernando Ventura, Lampedusa abriu definitivamente o caminho ao pontificado, “é o lugar de chegada de tantos atravessadores do Mediterrâneo, atravessadores da esperança e hoje é o mundo inteiro que está a ser chamado a atravessar a esperança”.
A exacerbada cultura do bem-estar torna-nos “insensíveis aos gritos dos outros”, disse o Papa diante de 10 mil pessoas, faz-nos viver “em bolhas de sabão”, insensíveis ao “choro” dos que sofrem. Foram palavras duras, a trazer o drama dos refugiados para a primeira linha da atualidade. A indiferença é um “espinho no coração” e o Papa foi a Lampedusa para “agitar as consciências”.
Para Pureza, esta é “talvez a imagem mais impressionante” do Papa, com uma “palavra magoada, a expressão do amor denso por aquelas pessoas concretas que experimentam a condição de serem rejeitadas, como Maria e José foram rejeitados quando chegaram a Belém para que Jesus pudesse nascer”.
O padre jesuíta Miguel Almeida também viu o momento como sendo “fortíssimo, não só pela imagem, em si, mas pela própria decisão de fazer a primeira viagem ao Mediterrâneo, para rezar pelos refugiados que morrem no Mediterrâneo”.
Filho de emigrantes italianos na Argentina, ouviu do avô as histórias da grande guerra e dos naufrágios no Atlântico. Francisco assumiria o drama dos refugiados, as migrações, como prioridade pastoral e política. Acolheu refugiados no Vaticano, denunciou as políticas agressivas anti-imigração, não hesitou em criticar duramente os muros anunciados por Donald Trump: “Uma pessoa que só pensa fazer muros não é um cristão”. Mas, mesmo antes da primeira presidência Trump, numa visita à Casa Branca, diante do presidente Barack Obama, Francisco lembrou que a história dos Estados Unidos só se entende com a imigração, é um país construído por famílias de imigrantes, como ele próprio foi na Argentina.
“Parece que ele está a falar de nós e isso foi também uma grande revolução na forma de o Papa falar informalmente, mesmo sobre os documentos pontifícios”, diz o padre Miguel.
A primeira viagem ao estrangeiro, à semelhança do antecessor Bento XVI, foi para participar numa Jornada Mundial da Juventude, e logo na América do Sul, a falar português. Francisco foi recebido no Rio de Janeiro, em julho de 2013, por milhões de jovens, a quem pediu empenho social. Na passagem por uma favela, entrou numa pequena igreja evangélica, visitou uma família e revelou o tom do pontificado. As palavras do Papa fizeram vibrar a multidão que o aguardava na favela: “Queria bater em cada porta, beber um cafezinho, mas não um copo de cachaça”, disse o Papa.
De regresso a Roma, depois do banho de multidão no Rio, Francisco deu um novo fôlego ao habitual encontro com os jornalistas no avião. Era um novo tempo de comunicação, nas palavras e nos gestos. “O que mais me custou [nesta viagem] foi a ciática, a sério”, revelou, entre gargalhadas: “Tive dores que não desejo a ninguém.” Foi uma surpresa. Em Buenos Aires dizia-se que Bergoglio não gostava de dar entrevistas e era poupado nas palavras quando falava com jornalistas.
José Tolentino de Mendonça, cardeal-arcebispo, prefeito do dicastério para a Cultura e Educação, entende que Francisco “fez da comunicação e da colaboração com os jornalistas também um muito curioso exercício da sua missão e do seu magistério”.
É uma marca do pontificado, “a linguagem acessível e simples do Papa, que marca os crentes, mas os não crentes também”, acrescenta Rita Sacramento Monteiro. A portuguesa ligada à Fundação Economia de Francisco realça “os temas da economia, da sociedade, do ambiente” que o Papa “transformou numa linguagem do dia a dia que todos compreendemos”.
O Papa a subir a praça de São Pedro, sozinho, à chuva, em vésperas das celebrações pascais, com Itália e o mundo em confinamento por causa da pandemia de covid-19, concorre para a eleição da imagem do pontificado. O Papa Francisco trouxe “a força de imagens novas”, sublinha o cardeal José Tolentino Mendonça, das “imagens que ele produziu, coreografou, e a força dessas imagens é interiorizada e continua”.
Eram meses de angústia global e, “num mundo completamente desarmado, sem saber como resolver aquele momento dramático da história, este homem, sem mais recursos senão aqueles que a fé nos dá, expôs-se no extremo da vulnerabilidade ao mundo, e essa é uma imagem que nos não esquecemos”, conclui o cardeal português na Cúria romana.
Também frei Fernando Ventura guarda aquele momento como o mais emblemático no caminho de Francisco: “É daquelas coisas que ficam nos olhos da gente, a praça molhada, a chover e o Papa sozinho, que sobe… é um Papa sozinho acompanhado da humanidade inteira”. Na ocasião, Francisco desafiou o mundo a uma mudança relacional. “Ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém”, diria, reforçando a ideia na encíclica Fratelli Tutti, dedicada à fraternidade humana.
“A expressão ‘só nos salvamos juntos’ é muito forte nos tempos que correm, tempos polarizados e divididos”, salienta Rita Sacramento Monteiro.