
1. "A diversidade"
Há os que vão à frente, mais adiantados, por vezes muito depressa, na expectativa de abrir um caminho por desbravar, por onde todos possam passar, e há os que vão mais atrás porque não conseguem acompanhar ou porque recusam acelerar o passo, na convicção de que têm um ritmo seguro e é melhor não puxar sob risco de perderem o músculo. E, depois, há ainda os que vão a meio, garantindo um corpo comum, não perdendo no horizonte a ousadia dos que vão à frente, nem deixando totalmente os mais cautelosos que vão atrás.
Este podia ser um ensaio, em analogia, das palavras do Papa na entrevista a Maria João Avilez, emitida pela TVI e CNN Portugal no verão de 2022. Quando questionado sobre a dinâmica do sínodo da sinodalidade – a merecer outra análise mais à frente –, quase com uma dimensão conciliar, tal a relevância do que está em causa, o Papa Francisco comparou o processo a uma corrida. Recusando a ideia de uma “guerra eclesiástica”, vê as tensões com naturalidade, sem esconder a preocupação. São diferentes velocidades num mesmo caminho e “um pastor tem de ser universal”. O clericalismo, “que é uma perversão, retira essa universalidade ao pastor e torna-o pastor de um sector ou de uma modalidade pastoral”. Uma mensagem incisiva para os irmãos do episcopado.
“É preciso deixar que os processos acabem”, diz o Papa, que não hesita em criar condições para lançar processos cujo alcance, usando a linguagem religiosa, depende do Espírito Santo ou da (in)capacidade humana de o entender.
A Igreja não é, nunca foi, monolítica – é recordar a história das origens deste movimento de matriz judaica a que se chamou… cristianismo – e quando tentou impor uma hegemonia apadrinhou a desumanidade.
Se “não há sínodo sem a presença do Espírito Santo” – “seria um parlamento” –, o Papa recupera as palavras de Basílio de Cesareia, que “define o Espírito Santo como harmonia”. Com esta ideia, conclui Francisco, no sínodo “está a diversidade”, “cada um diz o que sente ou o que pensa”.
Francisco é um Papa com uma estrutura mental de inclusão, numa linha mais próxima de João XXIII ou de Paulo VI. Devidamente contextualizadas no tempo, à memória vêm, por exemplo, as admoestações a teólogos da libertação no tempo do Papa João Paulo II, com o cardeal Joseph Ratzinger como prefeito da Doutrina da Fé. Num gesto corajoso, porque as memórias carregam ainda muitos preconceitos, Francisco apressou-se a reabilitar estes teólogos.
O Papa Bergoglio não se cansa de apelar à não exclusão na Igreja, que “não pode permanecer fechada em si mesma” (Francisco, 05.06.2022). Sustentado pelas narrativas evangélicas, insistiu que todos têm um papel a desempenhar, “há lugar para todos” (Francisco, 29.06.2022), até para os que se sentem fora. A abertura ecoaria na JMJ de Lisboa: “Na Igreja há lugar para todos, todos, todos…”
O tom foi dado logo no início do pontificado quando, numa meditação matinal, defendeu uma “comunidade do sim” (…), contraposta à “Igreja do não” (Francisco, 05.05.2013).
Esta atitude de inclusão sobrepõe-se a aspetos mais racionais e estratégicos de uma personalidade ou instituição. Um modelo de pensamento em “inclusão” determina a ação.
Para algumas correntes de pensamento cristão católico, a “inclusão” está sujeita à normalização e disciplina, implica assim uma perspetiva segregadora. Para o Papa Francisco, a normalização e disciplina não são argumento para a “exclusão”. É esta a chave de leitura. A montante não está o direito ou o regulamento. A montante está o evangelho e o conceito de misericórdia insondável. As normas estarão algures a jusante do caminho, como propostas e desafios que carecem de uma permanente reflexão no tempo, em cada tempo. O discernimento de que o Papa tanto fala deve ser individual e institucional.
2. "Um ato de justiça"
“Em todos os processos existem os que estão bem no processo, os que vão mais à frente, os que vão mais atrás”, disse o Papa na entrevista transmitida pela TVI e CNN Portugal. “No amadurecimento”, acrescenta, “há quem não ache bem, esperam, estão mais atrasados”. É “a teologia do caminho: uns vão à frente a correr e outros para trás”.
Isto aplica-se também, como o próprio enfatiza, ao papel da mulher na Igreja. Com a reflexão teológica sobre a ordenação de mulheres num difícil impasse, Francisco deu sequência à intuição de Paulo VI e aprofundou as possibilidades de empoderamento de mulheres pelo serviço. “Faltavam mulheres na administração da Igreja”, diz, legitimando assim as recentes nomeações. Nunca as estruturas administrativas da Santa Sé tiveram tantas mulheres em cargos de influência na decisão, como é o caso da primeira mulher “prefetto” – equivalente a "ministra" na Cúria, o governo da Santa Sé –, a religiosa missionária Simona Brambilla, no Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, responsável pelas ordens e congregações religiosas, ou da nova governadora do Estado da Cidade do Vaticano, Raffaella Petrini, outra freira.
Com esta dinâmica, foi mais um processo aberto por Francisco, dando cumprimento ao que considera a “maternalidade” da Igreja. Como explica, “mulheres na Cúria é um processo cultural, um processo de justiça”. Há 100 anos, constata, uma pessoa que dissesse isto seria considerada “maluca”. Ter outras três mulheres no dicastério que escolhe os novos bispos da Igreja é mais, muito mais do que um gesto simbólico.
3. "Não pode continuar"
Foram incisivas as palavras de Francisco quando se referiu aos abusos sexuais de menores por agentes da Igreja. O Papa repetiu nesta entrevista três vezes a palavra “monstruosidade”. Não desvalorizando o problema na Igreja, recorda que há muito mais casos em contexto familiar – uma forma assertiva de realçar que se trata de um problema social, transversal, e não exclusivo da Igreja católica como a dinâmica mediática pode dar a entender – e reforça que os abusos sexuais de menores são um drama para ser enfrentado e não escondido, “nem que fosse um só”.
Na verdade, Francisco limita-se a replicar o que nunca deixou de enfatizar: o reforço da “tolerância zero”. Mas esta entrevista foi dada a uma jornalista portuguesa, para emissão numa televisão portuguesa, quando, em Portugal, decorria uma investigação por uma Comissão Independente, nomeada pela própria Conferência Episcopal, que revelou a dimensão do drama, não muito diferente do verificado noutros países cultural e socialmente comparáveis ao nosso.
Sem se pronunciar em concreto sobre a situação em Portugal e os casos já conhecidos, nomeadamente o de Lisboa, o Papa reafirma que “um sacerdote não pode continuar a ser sacerdote se for abusador”, até porque “é doente ou um criminoso”.
Não seria de, para lá das leis e das prescrições, refletir sobre o impacto destas palavras? Há sacerdotes que, tendo cometido abusos, reconhecidos pela própria Igreja – que, pelas práticas da altura, se limitou a afastá-los dos locais e circunstâncias em que prevaricaram –, continuam no ativo.
4. "Olhem para a janela"
Embora tendo abordado temas vários, foi a Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, organizada um ano depois desta entrevista, em agosto de 2023, que deu o mote. Aos jovens, o Papa pede que “olhem para a janela”, sem “vistas curtas”, com um “ímpeto positivo de esperança” porque “há um caminho”, com a “linguagem comum e criativa” das novas gerações. “Ainda que falem diversas línguas e sejam de outras culturas” têm nestas cíclicas jornadas uma oportunidade de encontro, de “universalização da juventude”.
Se não teve tempo, na entrevista, para refletir sobre as dificuldades reais das novas gerações – muito sujeitas aos humores de uma “economia que mata”, como escreveu –, não deixa de sublinhar que há uma “cultura da juventude”, de “linguagem progressista”, com a qual é preciso saber dialogar sem “duplo sentido” ou “hipocrisia”, sem dizer “uma coisa, pensando outra”.
5. "João XXIV"
Este retrato da juventude é feito por um homem que, na altura da entrevista, tinha já 85 anos. Uma idade que não lhe permitia dar a certeza de que estaria na Jornada de Lisboa. No meio de sorrisos, foi na resposta a esta dúvida que Francisco – intencionalmente, pelo subconsciente ou mero acaso – deixou mais uma interessante pista de reflexão: “O Papa vai [à Jornada de Lisboa], vai Francisco ou 'João XXIV', mas o Papa vai”.
Ao referir-se a um hipotético sucessor de nome João XXIV – não foi a primeira vez… –, o Papa argentino trouxe à memória João XXIII, o Papa do aggiornamento, que ousou convocar o revolucionário Concílio Vaticano II. Na segunda metade do século XX, foi o acontecimento que sintonizou a Igreja com o mundo. Muitas das mudanças ou possibilidades saídas do Concílio estão ainda por realizar, como se verifica no ímpeto reformista e sinodal que quis impor.
O sínodo sobre a sinodalidade na Igreja, lançado por Francisco em 2021 e cuja dinâmica continua, tem uma importância chave no devir da comunidade católica e da sociedade.
Na dinâmica sinodal, foram auscultadas as comunidades. Na síntese portuguesa desse trabalho, elaborada pela Conferência Episcopal, as “bases” católicas disseram que a Igreja mantém uma “atitude demasiado hierárquica, clerical, corporativa, pouco transparente e resistente à mudança”, que dá prioridade à “manutenção da sua imagem, ao invés de preservar a segurança da comunidade”. Um lúcido estado da arte que levou sectores mais conservadores a lançar petições de contestação ao documento. Não se reveem na forma como a maioria dos católicos se vê e relaciona com a Igreja. O processo tem avanços e recuos, entre gente motivada e setores mais clericais empenhados em abrandá-lo ou mesmo travá-lo.
Esta contestação interna às evidências tem sido sentida em quase todos os países e não é muito diferente da verificada no Concílio Vaticano II (1962-1965). João XXIII morreu no decorrer dos trabalhos. Valeu a continuidade, embora suavizada, garantida pelo sucessor Montini – Papa Paulo VI.
Qualquer que seja a motivação de Francisco, tratando-se apenas de uma sugestão ao acaso – também temos de admitir este pressuposto… –, a ideia de um sucessor de nome João XXIV realça uma evidência: os processos abertos por Francisco precisam de um sucessor que agarre esta vontade reformista com a mesma coragem e determinação.
João XXIII não concluiu os trabalhos do concílio. E se fosse um João XXIV a concluir os trabalhos do sínodo convocado por Francisco que, na essência, se desenha na concretização do Vaticano II?
Pelo prisma desta “alma” católica reformista brilha também a luz dos comprometidos com o evangelho, pela justiça, pela solidariedade, pela corresponsabilidade e inclusão. Optando pela periferia, é com eles que o “reino dos céus” desce à terra para, na ação pragmática, combater a indignidade humana, contrariar “castas” que segregam e recuperar o dom da horizontalidade como novo prisma de relação.
Notas
- Francisco, educado como católico mariano, diz que ficou “mudo” na Cova da Iria diante da “Virgem do silêncio”. Sustentou assim a experiência da eco-devoção de Fátima, na era da velocidade e do ruído.
- Político, social, familiar… entre religiões, o diálogo afirma-se na prática. “Ao dialogar, nunca se perde. O diálogo é deixar de lado o instinto e ouvir.”
- A tranquilidade quanto à natureza humana e os sinais do tempo. “Eu não me atrevo a dizer que atualmente tudo é mau. Há coisas muito boas, atualmente. O trigo e o joio estão juntos, crescem juntos e na colheita vão separar-se. Temos de nos habituar…”
- Foi surpreendente a força anímica do Papa Francisco no acolhimento à equipa da TVI e CNN Portugal. Sabíamos que mantinha em aberto a possibilidade de uma renúncia – que o próprio classificara como gesto de grande humildade – e o tínhamos ouvido elogiar a decisão de Bento XVI, mas não pareceu, naquela altura, ser um homem com a intenção de, no curto ou médio prazo, deixar funções. “Eu penso ir [à Jornada de Lisboa]”, mas “seja o que Deus quiser”.
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A entrevista na íntegra