Eles podem trabalhar em qualquer parte do mundo, mas preferem Lisboa. É que “o gato já está fora do saco”...
Alojamento local, turismo, habitação, gato. Foto: Jorge Mantilla/NurPhoto via Getty Images
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Eles podem trabalhar em qualquer parte do mundo, mas preferem Lisboa. É que “o gato já está fora do saco”...

Texto
Carolina Baltazar

Vídeo
Sofia Marvão

Fotografia de Capa
Jorge Mantilla / NurPhoto via Getty Images

Séanna, Shahar e Michael vêm de continentes diferentes e pouco parecem ter em comum. Mas todos concordam neste aspeto: Lisboa já não é um segredo e está destinada a tornar-se na capital do trabalho digital.

“Há algo de especial em Lisboa. Com a sua vibrante mistura de tradição e modernidade, não há nenhum sítio no mundo semelhante.” O elogio é do portal Global Citizen Solutions, numa breve apresentação das vantagens de Portugal. A capital portuguesa vem em primeiro lugar, como sempre veio quando o assunto é atrair visitantes do estrangeiro. Fala-se de sol, praias, monumentos: as bandeiras que fascinam curiosos de todo o mundo e tornam o setor do turismo um dos principais motores da atividade económica no país.

A pandemia deu o empurrão que faltava e fez desabrochar um novo paradigma do trabalho. Em vez de um escritório, o cenário de fundo dos novos teletrabalhadores é qualquer canto do mundo com acesso à Internet. No fim do dia, basta desligar o ecrã e já está. Não há aquelas horas intercalares no trânsito ou enredado em transportes públicos. O trabalho remoto é o futuro, diz-se. E Lisboa é destino preferencial, pelo menos para quem vem de fora.

Os dados dos Censos 2021 observam que mais de 55 mil pessoas saíram do concelho de Lisboa nos últimos três anos, dispersando-se pelas áreas suburbanas e periurbanas. Apesar deste abandono massivo, o município não perdeu residentes durante este período – perdeu portugueses. Um quarto das novas famílias que chegaram à cidade nos últimos três anos veio do estrangeiro. Estando Portugal na cauda da Europa no que respeita ao salário mínimo, quem vem de fora demarca-se dos residentes pelo (muito) superior poder de compra.

Lisboa é a terceira cidade mais cara da Europa para arrendar casas. Foto: Jorge Mantilla/NurPhoto via Getty Images

Na capital, o custo de vida começa a dilatar-se para corresponder à oferta de quem consegue pagar mais e a pressão no mercado imobiliário afasta o cidadão comum – o que recebe o salário médio e não usufrui ainda das regalias do teletrabalho – para as periferias.

Em novembro, o Banco de Portugal mostrou que os estrangeiros compram casas 63% mais caras do que os portugueses, sobretudo aqueles com domicílio fiscal fora da União Europeia.

Os estrangeiros que não tencionam assentar, como os trabalhadores remotos, instalam-se nos incontáveis alojamentos locais e residências que vão germinando pela cidade e inflacionam também os valores do arrendamento. Só no último ano, as rendas em Lisboa aumentaram uns galopantes 36,9% e posicionaram-na em terceiro lugar do pódio das cidades mais caras da Europa. A primeira é Paris, onde o salário mínimo bruto é de 1.678 euros – quase mais um milhar do que em Portugal.

Mas quem são estes estrangeiros, pelas suas próprias palavras? De onde vieram, para onde vão, e o que as mantém em Portugal –seja por um mês ou por tempo indefinido? Partimos à descoberta das peças do novo puzzle demográfico da capital, contado por sotaques de diferentes origens. Séanna é norte-americana, apesar do travo francês do nome. Shahar veio diretamente de Telavive para a descoberta do mundo. Michael divide-se entre o alemão nativo, o inglês que usa na profissão e na vida pessoal e o português em que se vai atrevendo timidamente.

Vêm de continentes diferentes, mas as circunstâncias ditaram que se tornassem cidadãos europeus em etapas diferentes da vida. Shahar, por ter parentes alemães; Séanna, quando se mudou para França aos 28 anos; Michael, por nascimento. Por pertencerem à União Europeia, não carecem de visto para residir em Portugal. Não têm em comum nem a idade, nem a profissão. Unem-se pela trajetória de descoberta do mundo que tem Portugal como paragem tão essencial que pode mesmo vir a tornar-se casa permanente.

Afinal, Lisboa é a capital do nomadismo, a capital do futuro do trabalho, mesmo que não seja a capital de que os portugueses precisam.

03
Dorothy à procura do caminho para casa

A vida de Séanna Marie pode (e provavelmente vai) dar um filme. Nascida e criada em Santa Cruz, Califórnia, não poderia ser de outra forma.

Pensar em Califórnia é pensar num verão perpétuo, emoldurado por palmeiras e o sinal de Hollywood opulento no topo de uma colina, anunciando a chegada à máquina de fazer sonhos. A Europa, em que cada pedra da calçada remonta a uma história milenar, pode parecer mera periferia do centro do mundo. Mas foi este o destino que Séanna Marie escolheu – ou que a escolheu a si, numa noite sem rumo.

Durante anos, dividiu-se entre continentes e cenários tão díspares como a romântica Paris, a tela de betão de Nova Iorque, a ilha edénica de Bali. E foi na Indonésia que soube não querer regressar a nenhuma destas casas temporárias.

“Uma noite, pus a mão no coração e perguntei: qual é o destino agora? O que faço? O que amo? E essa noite tive um sonho, apesar de não estar à espera de sonhar. Estava montada numa moto, com colinas à minha frente. E o sonho dizia: vai para Lisboa.” De olhos abertos, decidiu perseguir o seu sonho da forma mais literal possível.

Poderia ter sonhado com pior destino, sabe agora. Portugal é “muito mais acessível” do que todas as cruzes que assinalou no mapa, em especial os pontos luminosos de Nova Iorque e Califórnia. Após uns momentos de cálculos mudos, reconhece o seu privilégio: “Claro que os preços da cidade são 100% mais acessíveis a quem vem do estrangeiro.”

Séanna encontrou em Portugal um lugar sedento de "inovação e criatividade"

Em 2017, Séanna lançou-se às estradas europeias com uma mochila, uma motorizada a que chamou Joy e uma câmara fotográfica para registar a paisagem. A viagem começou no Mónaco e percorreu quinze países. Joy aguentou todas as paragens e percalços até à última etapa, entre Sevilha e Lisboa, e foi então que cedeu ao cansaço e deixou de funcionar no meio de um interminável fio de alcatrão perto de Évora. 

A cidade alentejana acabou por ser um namoro inesperado, onde viveu durante “um par de anos” e conheceu o vagar como estilo de vida. Entre todas as outras cidades-amantes por que se dividia, era de longe a mais acessível. “Um apartamento de três quartos e duas casas de banho custa cerca de 1.100 euros, e um jantar midscale para dois só 50 euros”. Mais uma vez, concentra-se em cálculos internos. “Diria que é 1/3 mais barata do que Lisboa”.

Mas Lisboa, o destino final, não tinha ficado esquecida. Em 2021, e acompanhada pela fiel Joy, Séanna rumou a Norte e ultrapassou o Tejo até surgir materializado aquilo que só tinha visto em sonhos. Uma cidade de colinas e oceano parecida com Califórnia, unida à outra margem por uma ponte inspirada na de São Francisco. E, ainda assim, dissonante de tudo o que os Estados Unidos lhe tinham dado a conhecer.

“E agora é a parte em que fico emocionada”, adverte com uma risada embaraçada a norte-americana de 43 anos, levantando a cabeça para evitar que o olhar embargado irrompa em lágrimas. “É realmente a minha cidade do coração. É a minha casa.”

Séanna Marie nasceu em Santa Cruz, na Califórnia, viveu em Paris e em Nova Iorque, e trocou todas estas cidades por Lisboa. Foto: DR

Séanna conta-nos a sua história num apartamento no Príncipe Real, tão espaçoso e imaculado que quase parece um cenário de filmagens de uma produção de Hollywood. “Nem sequer o arrumei hoje”: as primeiras palavras ao abrir a porta parecem uma brincadeira. Os livros e objetos decorativos estão cuidadosamente plantados nas estantes. O cheiro a madeira delicada do aromatizador de palo santo no corredor, para depurar as energias negativas, chega a todas as divisões.

É designer criativa numa empresa sediada na Califórnia, embora grande parte do seu tempo seja dedicado à escrita. “Aqui é onde trabalho.” Aponta com a palma da mão estendida para a divisão onde está a montar a versão alargada da história da sua vida, quiçá com spoilers que prefere agora omitir.

Finalmente, depois de anos à deriva pelo mundo, conhece a estabilidade de saber onde começa e acaba o dia. Diz os “bons dias” ao passar pela pastelaria Marquise, logo pela manhã; as “boas tardes” à colaboradora Ana da “adorável mercearia local” Alberto & Rosa ou aos funcionários do café Tease, a metros de casa, onde por vezes leva o computador e onde também escreve sobre a jornada que a trouxe até aqui.

Não é a única: o fluxo de nómadas digitais que escolhem a periferia lusitana para viver tem aumentado ao longo dos últimos anos. Portugal não beneficia da visibilidade cultural dos Estados Unidos e de França, nem se imortalizou no cinema como palco de histórias apaixonantes. Durante muitos anos foi um segredo restrito aos que sonhavam com ele ou o descobriam por acaso. Agora? Séanna usa uma expressão inglesa para descrever o momento: "the cat’s out of the bag". Traduzida literalmente significa que o gato já está fora do saco. O segredo foi revelado e não dá para voltar atrás.

Séanna percorreu 12 mil quilómetros de mota até chegar a Portugal. Foto: DR

Os nómadas que escolhem Portugal são jovens e transitórios, com uma permanência média de dois meses e meio. O visto de residência em vigor desde o dia 30 de outubro pressupõe que os trabalhadores remotos que dele usufruem ganhem pelo menos quatro vezes mais do que o salário mínimo nacional (ao contrário dos vistos turísticos e D7, que não obrigavam a tais requisitos). Nos três meses que decorreram desde então, já foram emitidos cerca de 200 vistos a nómadas com ordenados iguais ou superiores a 3040 euros brutos. Numa página popular entre os nómadas digitais, o custo de vida estimado para viver em Lisboa, com um nível de vida “médio a superior”, é de 2,513 euros por mês.

Séanna não tem dúvidas de que este fluxo não vai parar. “Agora que as pessoas ouviram falar de Portugal, vão começar a vir, e a parte entusiasmante vai ser tentar perceber como é que os portugueses podem fazer dinheiro e melhorar a sua economia” com esta enchente de estrangeiros. À medida que Lisboa se torna numa metrópole cosmopolita - “e o Porto, de certa forma” - a demografia do centro ganha outras propriedades e as comunidades autóctones são progressivamente afastadas para os subúrbios e periferias.

A norte-americana paga cerca de 2.000 euros para viver neste ponto privilegiado do coração citadino, onde consegue chegar a qualquer lado a pé. Sabe que a esmagadora fração das famílias locais não conseguiria suportar esta renda, mas reforça: “É assim mesmo que o desenvolvimento funciona. O centro torna-se internacional e as pessoas que trabalham na cidade vivem fora dela.”

Além disso, argumenta, não é um preço tão extravagante quanto os quatro dígitos possam fazer parecer - é tudo uma questão de perspetiva. “Portugal é muito acessível”, sim, quando comparado com outras “localizações privilegiadas” pelo mundo fora e não com o salário médio da população local. O que podem então fazer os portugueses para reclamar o seu pedaço da cidade?

Séanna não poupa elogios: somos um povo inteligente, culturalmente aberto, com universidades bem reputadas – até lemos legendas, em vez de dobrarmos filmes e séries estrangeiros. “Os portugueses têm valor, muito mais do que imaginam”. O estilo de vida português vai continuar a ser afetado pela mudança do perfil demográfico da capital, mas a solução passa por “escolher profissões que se adequem melhor à nova realidade” do trabalho remoto “e que permitam uma maior mobilidade e flexibilidade”. E também requerer um aumento dos salários, “mas isso já é mais a longo-prazo”.

A designer no capacete e traça o recorte dos autocolantes, detendo-se com especial carinho onde se lê “Motodiana”: a oficina que reparou a moto em Évora. “Sentia-me como Dorothy no filme O Feiticeiro de Oz, só que ainda não sabia onde era a minha casa”. O que amo? Para onde vou? A cada pergunta que fazia, mais um tijolo amarelo no caminho. “E finalmente, ao bater três vezes os calcanhares e conduzir a moto por 12 mil quilómetros, encontrei a minha casa.”

Shahar Cohen decidiu percorrer o mundo com um portátil às costas. Lisboa foi a primeira cidade que escolheu visitar
Shahar Cohen decidiu percorrer o mundo com um portátil às costas. Lisboa foi a primeira cidade que escolheu visitar

07
O plano é não ter plano

Shahar Cohen queria trabalhar e percorrer o mundo ao mesmo tempo, mas tinha de começar por algum lado. Então, perguntou à internet.

Todos os motores de busca devolveram o mesmo resultado: a bela Lisboa, mais soalheira do que Madrid, menos caótica do que as grandes metrópoles europeias. Veio da costa mediterrânea de Telavive com a promessa de um outro paraíso ocidental, ameno e mágico mesmo nos meses de inverno. Quando aterrou em Lisboa, a 11 de dezembro, uma tempestade abatia-se sobre a capital.

Encontramo-nos com Shahar cinco dias depois desta receção gelada. Os trabalhos de limpeza vão varrendo os vestígios de chuva das ruas e túneis, embora ainda pese uma humidade cortante no ar. “O tempo já está a ficar agradável”, comenta, espreguiçando-se para um céu azul-cinza onde só agora o Sol começa a irromper.

O primeiro encontro não o desmotivou - pouco parece desmotivá-lo, na verdade. Tem 25 anos e a juventude transparece no sorriso fácil, na postura plácida e confiante que mantém ao longo da entrevista. Está aqui para desfrutar, independentemente dos temperamentos meteorológicos. Ainda por cima, é uma experiência com prazo de validade: apenas um mês para conhecer sem ganhar raízes.

“Depois devo ir para a ilha da Madeira. Mas há pouco falei com uma nómada digital que vai para Espanha, portanto se calhar…” Expira profundamente, já enfastiado pela responsabilidade da decisão. Decidirá o próximo destino quando se despedir deste. “O plano é não ter plano”.

É uma máxima que persegue desde os 22 anos, quando trocou Israel por uma caminhada de seis meses no outro lado do mundo. “Foi uma grande experiência para mim”, confidencia, debruçando-se sobre a mesa como quem conta um segredo. Foi na Nova Zelândia que viveu o primeiro amor e o primeiro desgosto - a emoção de sentir tudo pela primeira vez para depois ver isso desabar. Um desgosto que afasta com a lembrança do que permaneceu: a paixão pela descoberta do mundo.

Quando o contrato de arrendamento do apartamento em Telavive estava prestes a expirar, Shahar teve duas opções. Permanecer na terra dos pais, dos amigos, de tudo o que sempre conhecera e era casa ou partir à descoberta do resto do mundo. O pêndulo não hesitou em cair para o lado da liberdade. “Sou jovem, sou solteiro, não tenho grandes responsabilidades de momento. Se não explorar o mundo agora, talvez nunca mais tenha a oportunidade de o fazer.”

“Vocês não têm esse som, pois não? Shahar. Sha-har”. Enfatiza a quebra entre as duas sílabas, exagerando um «h» estranho à fonética portuguesa. Tentamos repeti-lo uma vez, duas vezes, e à terceira o rosto ilumina-se num “Sim! Quase perfeito. Quase”. Falamos em inglês, com breves pausas para traduzir mentalmente um ou outro conceito mais técnico. Quando a conversa vai dar à sua profissão, franze o sobrolho e faz um esforço redobrado por encontrar as palavras certas.

“DevOps é uma coisa nova, uma espécie de invenção recente no mundo da alta tecnologia. É uma combinação entre desenvolvimento de software e operações de tecnologias de informação.”. Explica que tem passado as tardes no espaço de coworking do hostel WOT Lisbon Patio, onde se encontra instalado, mas que está à procura de cafés simpáticos com boa ligação à internet para diversificar o cenário. Parecendo prever questões adicionais sobre o assunto, clarifica: “basicamente, o objetivo do meu trabalho é ajudar a resolver problemas e facilitar a vida de toda a gente”. Uma gargalhada esfuma-se em frente ao rosto.

A procura é bastante elevada, garante, e a remuneração também. “Em Israel, toda a gente diz que os profissionais da indústria de alta tecnologia são os culpados pelo aumento das rendas, porque estão dispostos a pagar valores que a maioria da população não consegue suportar. Até têm razão, mas o que é suposto fazer? Também tenho direito ao dinheiro que recebo.”

Não especifica a quantia a que se refere, mas reconhece que se sente “super rico” quando vai às compras em Portugal. As refeições económicas na secção de take away dos supermercados são uma novidade bem-vinda, mas a cerveja! Os olhos arregalam-se. “Nunca vi cerveja tão barata, em qualquer lugar do mundo. Em Telavive, uma caneca seria 10 euros”. Aqui, a mais cara que bebeu não chegou a cinco.

Nos últimos anos, Lisboa tem perdido residentes portugueses. Em contrapartida, um quarto dos novos habitantes da cidade são estrangeiros. Foto: Jorge Mantilla/NurPhoto via Getty Images

Os israelitas até têm razão. Telavive é a cidade mais cara do mundo, à frente de grandes urbes como Singapura e Nova Iorque. “Partilhava o apartamento com um colega, e a nossa renda era qualquer coisa como…” Ergue o dedo e perde-se no telemóvel por uns momentos. “Em euros, 860 por mês. Era absurdo. Aqui as rendas devem ser muito mais baratas, com certeza.”

Conversamos num dos pontos mais movimentados de Lisboa, com o Parque Eduardo XVII e o bulício das festas natalícias a uma caminhada de meros minutos. Na verdade, dizemos, 800 euros parece um valor bastante modesto para uma habitação na capital. Depois de uns segundos de incredulidade, Shahar abana a cabeça. “Então, como é que é possível viver aqui? Parece impossível.”

As chuvas torrenciais fecharam temporariamente a piscina do hostel e a aragem fria convida a que nos abriguemos no interior. Para aquecer, o cálice mágico da tradição portuguesa: uma bica. Shahar chegou há menos de uma semana e ainda não conhece sequer o que significa “olá” ou “obrigado”, ou o encanto de um café expresso e um pastel de nata pulverizado com a dose certa de canela. Torce o nariz ao pesquisar a imagem do doce conventual: “não parece muito bom, mas prometo que depois experimento”. A rececionista ajuda-o a tirar um café em chávena escaldada e o rapaz atreve-se, algo hesitante. “Obrigada?” Quase – seria “obrigado”, neste caso. Shahar suspira dramaticamente. “Tão difícil”.

Shahar escolheu alojar-se num hostel para conciliar o trabalho com a miscelânea de rostos, línguas e experiências dos quartos ao lado. Também já fez amizades nas ruas cintilantes da vida noturna da cidade. “Há pessoas educadas em todo o lado, mas aqui não são só educadas. São genuinamente amigáveis.”

O maior choque cultural não foi o sistema de pronomes pessoais da língua portuguesa ou a doçaria embebida em ovos e açúcar – foram as colinas. As escadarias, as subidas que parecem não chegar a lado nenhum mas que depois lá compensam pelos miradouros improvisados no topo do último degrau. “Estou a ver que vou ter de entrar em forma para viver nesta cidade”, finge lamentar-se, com uma mão a pressionar os músculos doridos em antecipação do que está para vir. Um novo sorriso, para confirmar que está apenas a brincar. Claro que já está preparado para Lisboa, tal como está preparado para o enorme bocado de mundo que ainda lhe falta devorar.

09
Um pé em Portugal, outro no resto do mundo

Michael Meyer-Resende é um outlier no núcleo de nómadas digitais no coração do Saldanha. Formou raízes, tanto em território português como no hífen que une a herança alemã ao apelido da esposa. “Michael Meyer é um nome muito comum na Alemanha, como João Silva aqui. Ter acrescentado o Resende torna-me mais identificável… e talvez mais interessante”, sorri.

Michael vive entre Berlim e Lisboa desde 2006. "Os salários dos nómadas digitais são altos e isso cria desigualdades mas também há muitas oportunidades"

Encontramos Michael num espaço de trabalho inconvencional que poderia passar por uma casa, a julgar pela mobília acolhedora. Até há direito a letreiros fluorescentes e a almofadas espalhadas num anfiteatro em miniatura, porque pernas cruzadas não têm de ser pouco profissionais. Na cozinha há fruta, uma máquina de café e plantas a pender do teto, como um recorte de catálogo de decoração transplantado para a realidade.

Tudo foi pensado ao pormenor, explica Carlos Gonçalves, fundador e diretor-executivo do espaço, enquanto nos acompanha numa visita guiada. “O conforto do local de trabalho é algo que as pessoas valorizam cada vez mais. É por isso que procuramos que os nossos espaços sejam muito próximos daquilo que é o ambiente das nossas casas.”

Mas “espaço de trabalho” talvez não seja o termo que melhor descreve este lugar. Work, Relax, Enjoy é a filosofia do Avila Spaces, no segundo piso do centro comercial Atrium Saldanha, no centro de Lisboa. Entre os que ali trabalham, todos têm um regime de trabalho remoto e grande parte é nómada digital, de saída já mais ou menos definida para outro lugar qualquer. O trabalho é individual, mas o relaxamento e o desfrutar da experiência de coworking são vividos em ambiente comunitário. 

O burburinho de conversas abafadas e os passos para aqui e para ali tornam difícil acreditar que, há poucos anos, este espaço estava completamente deserto. Deserto, não: atoalhado com os restos de cabides, manequins e, enfim, estruturas de lojas de roupa que, vinda a pandemia, se declararam extintas. Quando regressámos a uma “normalidade” cautelosa e as portas se abriram com álcool gel na entrada, já as lojas tinham sido transformadas no escritório do futuro.

O Avila Spaces é um espaço amplo e aberto que lembra o conceito de “loja sem paredes” que vigorava na sua vida passada, com enormes janelas que sugam a luz natural do Saldanha para o interior. Os principais vestígios dessa existência anterior estão na “quiet zone”, onde os provadores com espelhos se transmutaram em pequenas cabines individuais para telefonemas sossegados ou reuniões Zoom.

As cabines podem ser usadas sem qualquer pré-reserva com o plano mensal mais flexível, o business lounge, por 200 euros + IVA. A utilização do espaço de secretárias privadas já é mais restrito, ascendendo a valores entre os 300 e os 400 euros por mês. Aqueles com rotinas mais imprevisíveis, como Michael, podem sempre optar por planos pré-pagos de 10 dias a usar à medida das necessidades, sem prazo definido, a cerca de 20 euros por dia.

Michael Meyer-Resende vive em Lisboa desde 2006, com a mulher portuguesa e duas filhas. Foto: DR

A entrevista foi agendada para uma sexta-feira, e quando chegamos os cartazes anunciam que a happy hour semanal começa às 18:00. Outra nota, rabiscada a giz num quadro, confirma que as aulas de padel estão para breve. “Aqui há muitas oportunidades para conhecer outras pessoas. Trabalhar em casa pode ser claustrofóbico, mistura-se demasiado a vida privada e a vida profissional”, explica Michael, e os espaços de coworking são essenciais para garantir este desfasamento. E possibilitar, também, uma maior ligação ao país de acolhimento. “O Avila Spaces tem muitos portugueses, é gerido por portugueses, e sinto que é mais enraizado em Lisboa do que outros espaços do género.”

Não que Michael precise de se enquadrar na cultura local - vive em Lisboa desde 2006 com a mulher portuguesa e duas filhas adolescentes. Conheceram-se em inglês e é nessa língua que mantêm a relação, apesar de se esforçar por exercitar o português (“exceto quando discutimos: aí falo em inglês, para não estar numa posição de inferioridade”).

A língua nativa é alemã, a nacionalidade é alemã, mas o coração divide-se. É também português, tanto que quando o questionamos sobre se ainda experiencia choques culturais inclina a cabeça, franze o sobrolho e não consegue lembrar-se de nenhum. Os pais e irmãos ficaram a milhares de quilómetros de distância e tornaram-se rostos ocasionais; aqui, construiu um casamento e um quotidiano em Belém, a bebericar café enquanto observa os barcos a ondular, para cima e para baixo, na agitação subtil do rio.

“Tenho um pé na vida e sociedade normais de Portugal, e o outro pé em Berlim e no meu trabalho internacional.” Em Berlim (“ou em Bruxelas, ou na Tunísia, ou na Ucrânia”, enumera países e sinaliza que serão muitos mais com um aceno da mão) está sempre em movimento, em conferências e reuniões presenciais. “Quando estou em Lisboa, é tempo de relaxar.” Trabalha sobretudo no computador e, depois, para desembaraçar o corpo das horas curvado sobre o ecrã, corre à beira-rio e pratica ioga. Os sábados em Portugal são um suspiro profundo numa rotina ofegante.

“Nem sempre é fácil, mas é sempre interessante”, desabafa. É fundador da Democracy Reporting Internacional, uma organização não-governamental cujo nome não poderia ilustrar melhor o objetivo: promover a democracia, um pouco por todo o mundo. Com o rebentar da guerra, o escritório em Kiev tornou-se um ponto de observação da cidade dizimada e uma ponte de ajuda para colegas, conhecidos e outros ucranianos que dela necessitem. É o exemplo mais dramático da fusão entre “difícil” e “interessante” a que se referia.

Berlim assiste passiva enquanto “as pessoas vêm e vão”, mas Lisboa-mãe nunca deixa de embalar quem nela nasceu. “Muitas pessoas nascem e vivem a vida toda cá. Pelo menos com base no que vejo na família da minha mulher” - que se tornou também a sua - “e no meu círculo de amigos, parece uma sociedade muito estável”.

Quem acaba por desenraizar os lisboetas da cidade-Natal é a comunidade de nómadas digitais e estrangeiros com um poder de compra muito acima dos rendimentos médios dos habitantes. Lisboa é tão cara como Berlim, onde o salário mínimo é quase o dobro do português (e o segundo mais elevado em toda a União Europeia).

As únicas exceções são algumas ofertas culturais, como concertos, e os restaurantes e cafés tradicionais, onde tudo é “muito, muito barato” em comparação com o resto da Europa. “Aqui consegue-se comer o pequeno-almoço por €1,5, o que é impossível em qualquer outro lugar”.

As desigualdades preexistentes vão sendo agravadas pelos nómadas, reconhece Michael, embora “não seja tudo a preto e branco”. Na outra face da moeda, “também podem trazer novas ideias e negócios e ser muito vantajosos para Portugal”. Palavras que ecoam as do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, quando, em novembro, reconheceu "algumas consequências" do nomadismo, como o encarecimento da habitação e o aumento do custo de vida, e depois desvalorizou: a grande vantagem é sermos “um país atrativo para os que são o futuro - e o digital é o futuro".

Suspira que é uma situação “dramática” e que tem de ser “bem gerida”, mas vinca alguma distância quando fala sobre este grupo recém-chegado. Não é totalmente nómada, “no sentido clássico da palavra”: não só tem raízes, como as tem repartidas por vários lares. O hífen aglomerando dois nomes, os voos de avião desenhando uma linha invisível entre o país do berço e o país que tornou casa.

“Sempre houve profissões que obrigavam as pessoas a viajar”, e os períodos de confinamento geral deram início a uma década em que o trabalho remoto se torna cada vez mais normalizado. “A covid deu o grande empurrão para que as pessoas percebessem que podem trabalhar a partir de onde quiserem”, acentua. As empresas procuram os melhores profissionais, onde quer que estejam no mundo, e “a vida está progressivamente a evoluir para o mundo digital. Em termos geográficos, já não há constrangimentos.”

É sexta-feira. Despedimo-nos pouco antes do início da happy hour, mas Michael devolve logo a atenção ao computador e escreve, escreve, aparentemente alheio às pessoas que começam a levantar-se e a sacudir o corpo da tensão da semana. As janelas desafogadas pintam um Saldanha de luzes de trânsito e cabeças a desaparecer na escadaria do metro; na cozinha, alguém tira um chá celebratório. Michael demora-se mais um bocadinho, com dedos tamborilantes no teclado. É uma sexta-feira de trabalho ainda por encerrar, mas vale a pena pelo sábado que o espera na margem do Tejo. A corrida de ar límpido, o café na mão, os barcos ondulantes que convidam ao fechar dos olhos.

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