
Dizer “mudança” na Igreja católica, ganhou com Francisco o espaço e o tempo da dinâmica sinodal lançada pelo Papa Paulo VI. Inspirado na ideia de corresponsabilidade, de valorização e auscultação das bases laicais, vinda do Concílio Vaticano II, pediu aos fiéis de todo o mundo e a não fiéis que dissessem o que pensam da Igreja. A ordenação de mulheres, o acolhimento da diversidade de género ou o celibato chegaram a ser temas em cima da mesa.
Os relatórios finais deste inquérito global foram analisados em duas assembleias sinodais com clero e religiosas, leigas e leigos, sentados à mesma mesa, em igualdade de circunstância, para dialogar sobre a desclericalização e o empoderamento do laicado nas decisões, desde a gestão à escolha de bispos.
“É uma imagem nova, inédita, que será recordada”, prevê o cardeal José Tolentino Mendonça, prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, como “semente que é lançada à terra e depois terá o seu desenvolvimento”.
A dinâmica sinodal de Francisco acabou por revelar uma tensão interna, entre os que, com o Papa, sustentam esta sinodalidade inclusiva, a partir das bases, ou seja, da condição de batizado, com uma estrutura mais horizontal e participativa, e os que defendem a Igreja hierárquica e vertical, empoderada no clero.
“Este Papa olha para a realidade, pergunta à realidade onde está Deus e a partir daí começa a fazer teoria e teologia sobre a realidade”, entende o padre jesuíta Miguel Almeida. “Estávamos habituados a documentos que estabeleciam grandes princípios, grandes valores e depois aplicavam-se à realidade, mas este Papa faz o contrário, aliás, diz mesmo que não vamos levar Deus a lado nenhum porque Deus já lá está”, conclui.
Já Rita Sacramento Monteiro, da Fundação Economia de Francisco e ativamente empenhada na dinâmica sinodal, considera que, com Francisco, “este caminho sinodal, mais do que um processo para encontrar soluções, respostas ou fazer mudança, é um processo para desafiar os crentes a uma nova atitude, com uma Igreja menos hierárquica, mais colaborativa e cooperativa”.
Será este caminho sinodal irreversível? A jornalista argentina Elisabetta Piqué, autora de um livro biográfico sobre Jorge Mario Bergoglio, entende que sim, “esta forma de ser Igreja, a dar muito mais espaços às mulheres e aos batizados na tomada de decisões, é irreversível”.
Frei Fernando Ventura é mais cauteloso, entende que “estamos sempre todos em risco de voltar para trás, a vida é feita disso mesmo”. O frade franciscano capuchinho, coautor de uma trilogia de livros sobre o futuro da Igreja, o mundo atual e a sinodalidade, espera, ainda assim, “que não haja retrocesso no grande tema que ocupou todo o pontificado – a sinodalidade –“, pois “a vida, a fé e as relações precisam de um tempo pedagógico”.
Se o sínodo sobre a sinodalidade “fosse levado a sério”, acrescenta o padre Miguel, “seria talvez a reforma mais profunda que acontece desde o Concílio Vaticano II, com a visão de uma Igreja “não a partir de cima, mas da própria realidade”.
Piqué recorda o grito que ecoou em Lisboa, na JMJ: “A Igreja tem de ser um hospital de campanha para curar os feridos de hoje, acolher todos, todos, todos”. Ou, nas palavras exatas do Papa, “na Igreja há espaço para todos – repitam comigo – todos, todos, todos…”.
A frase resume um programa de vida que é também um desafio do pontificado, um processo em aberto. Como quem liga pontos cardeais num tempo em inegáveis mudanças e imprevisibilidades, o primeiro Papa sul-americano traça uma linha de ação inclusiva, que passa pela pobreza, pela economia, pelo clima, pela justiça, pela família, pela proximidade, com uma teologia inspirada na realidade, entre as reformas internas, oposições e uma vasta admiração. As dores maiores de Francisco ganharam o tamanho da sua paróquia global, o mundo, que está pior do que no dia em que lhe pesou nos ombros a responsabilidade da cadeira de Pedro. Que diria nestes dias Francisco, na posse de uma voz firme, sobre o novo rufar de tambores para a guerra e o rearmamento da Europa, ele que sugeriu, como proposta do ano jubilar, a reorientação, para o combate à pobreza, de verbas previstas para o fabrico de armas.
A pergunta que se faz é: e depois de Francisco?
O sociólogo José Manuel Pureza sabe que “o pós-Francisco é um problema, sê-lo-ia sempre, mas haverá sempre quem esteja do lado da argumentação que Francisco coloca”, e, portanto, “por mais que haja contra-reformas, o que andamos, está andado”.
Francisco criou um colégio de cardeais que vai eleger o sucessor, com uma maioria já designada por ele, o que não quer dizer que vamos ter outro como ele. Para Elisabetta Piqué, “podemos, ainda assim, esperar que este processo de mudanças e abertura continue com o sucessor”.
José Tolentino de Mendonça está entre os cardeais com lugar no conclave e há quem o coloque na restrita lista dos papabili. Sobre Francisco, não hesita em considerar que “um quinhão da esperança que hoje nós vivemos devemo-lo também à profecia e ao Espírito Santo que nos fala através do Papa Francisco”.
No confronto com a realidade, o Papa Bergoglio construiu, mais do que uma imagem mediática, um registo, um modelo de Igreja em saída, de e para o mundo, que Rita Sacramento Monteiro resume na ideia de papado como reduto último da esperança: “No dia em que o Papa deixar de denunciar, de pedir que nos aproximemos do outro, que não deixemos pessoas continuarem a morrer no mar, na solidão, no desprezo, na indiferença, no dia em que ele deixar de fazer isto… estamos todos perdidos”.