
Francisco sempre defendeu a disciplina do celibato no sacerdócio, rejeitando que seja causa de abusos sexuais. “Não tem nada a ver com a imposição do celibato a padres e freiras”, garantiu o Papa argentino na entrevista à TVI e CNN Portugal, em 2022. “O abuso é uma coisa destrutiva, humanamente diabólica”, disse Francisco, “porque nas famílias não há celibato e também ocorre”.
Mas se rejeita a relação entre o celibato e o desvio criminoso dos abusos sexuais, também surpreende ao admitir a revisão da norma. “Não há nada que contradiga que um sacerdote pode casar”, disse, em declarações ao portal Infobae, em março de 2023, “na Igreja ocidental, é uma prescrição temporal”, lembrou, sem ter a convicção de que o fim do celibato obrigatório “resolve, de um modo ou de outro”, o problema das vocações”. Mas, sublinhou, “o celibato pode ser revisto”.
O celibato obrigatório e o papel da mulher são temas fraturantes no debate interno, abordados pelos crentes numa dinâmica sinodal, de auscultação e diálogo, relançada por Francisco, para quem “as mulheres são especiais e é preciso fazer uma profunda teologia da mulher”.
Francisco impulsionou, de facto, o debate teológico sobre o diaconado feminino – como eventual primeiro passo para o acesso ao sacramento das ordens (diaconado/diáconos, presbiterado/padres e episcopado/bispos) – mas disse não ter coragem para contrariar a palavra de João Paulo II, que entendeu dar como encerrada a questão, vedando o acesso da mulher à ordenação. Enquanto permanece o impasse, o Papa argentino alterou as normas de organização da Cúria, nomeando mulheres para os mais altos cargos do governo da Igreja.
É o caso da religiosa italiana Simona Brambila, 59 anos. Enfermeira de formação, fez missão em Moçambique, foi superiora geral das missionárias da Consolata e é primeira mulher “prefetto”, ou seja, a assumir a prefeitura de um dicastério, o equivalente a uma “ministra”, no caso o “ministério” para a Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica. Explicou Francisco que “faltavam mulheres na administração normal da Igreja”.
Fizemos a pergunta à irmã Brambila, em janeiro de 2025: entende esta nomeação como o final de um processo ou um passo para algo mais? “É um passo de um processo”, respondeu, “um processo que se coloca na linha sinodal da Igreja, portanto de uma cada vez maior inclusão, diálogo, discernimento, escuta, incluindo todas as sensibilidades”. A decisão do Papa “abre uma reflexão, um diálogo, abre pistas (…) e tem, com certeza, também uma dimensão simbólica…”
Elisabetta Piqué, jornalista argentina que escreveu uma biografia de Francisco, não hesita em ver nesta nomeação “uma revolução”, era “impensável há dez anos, ou há 100 anos, haver uma mulher ‘prefetto’ na Cúria romana”.
Rita Sacramento Monteiro, da Fundação Economia de Francisco, vê este passo como um exemplo do que pode ainda ser possível: “Se há as dimensões imutáveis na Igreja, há também as dimensões mutáveis e esta é uma dimensão mutável.” Também a jurista e ex-ministra Assunção Cristas entende que “há aqui um caminho para ser feito”, para que “as mulheres possam estar em todas as funções da Igreja, desde logo começando pelo mais fácil, que pode gerar mais consenso, que é o do diaconado feminino”.
Sobre a mulher e o papel da mulher na sociedade, Francisco sintetiza o pensamento numa frase: “A mulher nunca abandona o perdido.”
Francisco defendeu a união civil de casais homossexuais, para que sejam protegidos pela lei civil, e propôs que recebam, à semelhança de qualquer outro cristão que solicite, a bênção do clero, embora sublinhando que a Igreja não reconhece um matrimónio entre pessoas do mesmo sexo e este gesto não deve ser alvo de equívocos.
Logo na primeira conferência de imprensa do pontificado, em 2013, Francisco disse não ser capaz de julgar um homossexual que se aproxima de Deus. “O problema”, explicou, “não é haver esta tendência, pois temos de ser fraternos, o problema é o lóbi…”.
O matrimónio pela Igreja é considerado indissolúvel. Quem, após divórcio, assume novo casamento civil, está a cometer adultério e não deve comungar. Francisco simplificou os processos de nulidade do matrimónio pela Igreja, defendeu que há casos em que a separação é “moralmente necessária” e, numa encíclica sobre a família (Amoris Laetitia, 2016), propôs o acolhimento pastoral de divorciados recasados para terem acesso à comunhão, outra sugestão pastoral que gerou contestação da parte dos opositores à linha de abertura pastoral de Francisco.
Em agosto de 2015, numa audiência com casais, o Papa indicara já o propósito pastoral: “A Igreja (…) tem um coração de mãe e estas pessoas não devem absolutamente ser tratadas como excomungadas: elas fazem parte da Igreja.”
Este acolhimento pastoral, no contexto de vivências espirituais e de fé, de pessoas homossexuais ou divorciados recasados, “arrisca-se a introduzir um elemento talvez de confusão, mas é mesmo para mergulhar na confusão, porque a vida é confusa”, admite o padre jesuíta Miguel Almeida, lembrando que, ao questionar “tudo o que não está dentro da regra – resta saber quais são as relações ideais…” –, o Papa valoriza o que é de valorizar: “Estas pessoas amam-se e respeitam-se? São fiéis um ao outro? Ao fazer isto pode pôr em causa uma série de estruturas que se entendem muito seguras e estabelecidas de acordo com a regra.”
A ex-ministra Assunção Cristas reconhece que “com outros Papas havia outros setores mais identificados” e “há sempre críticas”, mas também entende “que ninguém discute e duvida da extraordinária fidelidade de Francisco em relação à mensagem central do evangelho e do testemunho de vida que ele próprio deu”.
Quanto aos “elementos fundamentais da doutrina”, analisa o padre Miguel, “ele não mudou muito, mas é um reformador”.