3. O diálogo como método, a paz como objetivo
O Papa Francisco visita o campo de refugiados de Moria, na ilha grega de Lesbos, no sábado, 16 de abril de 2016. O Papa Francisco viajou no sábado para a Grécia para uma breve mas provocadora visita para se encontrar com refugiados num centro de detenção, numa altura em que a União Europeia implementa um controverso plano para os deportar de volta para a Turquia. (Osservatore Romano/Foto de grupo via AP)

3. O diálogo como método, a paz como objetivo

Por Joaquim Franco

Os apelos sociais e políticos de Francisco fazem eco e onde era mais difícil deu testemunho. Foi o caso do encontro que promoveu, no Vaticano, entre representantes das fações em conflito no Sudão do Sul. Num gesto inesperado, ajoelhou-se e beijou os pés de cada um deles, noutra imagem que marca o pontificado.

Teve a mesma atitude de proximidade, de pontífice – fazedor de pontes –, nas relações com outras religiões e confissões cristãs. Em junho de 2014, numa iniciativa com o patriarca ecuménico ortodoxo de Constantinopla, juntou os presidentes israelita e palestiniano, Shimon Peres e Mahmoud Abbas, para uma ‘Invocação pela paz’ com momentos de oração. Os quatro plantaram nos jardins do Vaticano uma oliveira, símbolo da paz. Eram ainda anos de sonhos altos para Francisco: “Para fazer a paz é preciso coragem, mais do que fazer a guerra, encontro, diálogo e não violência, negociação e não provocação.”

Um mês antes, em Jerusalém, tinha já rezado junto ao muro que separa Israel da Palestina e, à semelhança dos antecessores, no muro das lamentações. Abraçou, ali mesmo, o imã Omar Abboud e o rabino Abraham Skorka, amigos de longa data de Buenos Aires.

A jornalista argentina Elisabetta Piqué, autora do livro “Francisco - Vida e Revolução”, lembra que o conterrâneo “mudou o tema do diálogo inter-religioso, dando-lhe a dimensão da proximidade”. Na Argentina, tinha um debate televisivo regular com os amigos Abboud e Skorka. O diálogo tem de ser com “o poder do serviço, não só entre católicos ou outros cristãos, mas todos”, defende Piqué.

Quando, no final de fevereiro de 2025, Francisco combatia uma grave pneumonia bilateral na clínica Gemelli, o calendário assinalou o início do Ramadão. Num capricho dos elementos, a perspetiva da praça de São Pedro, pelo enfiamento da Via della Conciliazione, revelou, ao início da noite, uma lua crescente em céu limpo, a rodar à volta da cruz cimeira da basílica. Na contraluz daqueles breves minutos, registado por centenas de turistas e peregrinos surpreendidos com a imagem, ilustrava-se o dia. O imã da grande mesquita de Roma informara que a comunidade muçulmana local também orava pela recuperação do Papa.

O diálogo entre religiões e culturas atravessou o pontificado, tendo como prioridade calar as armas e colocar a experiência religiosa no campo da construção da paz.

Na mais longa viagem, à Ásia, em 2024, já em cadeira de rodas, Francisco visitou a Indonésia, maior país islâmico do mundo, de pacíficas convivências religiosas, onde instou as lideranças religiosas a “enfrentarem o extremismo”. Já em 2016, reforçara o plano de Assis lançado por João Paulo II. Na presença de representantes de outras religiões, sob inspiração de S. Francisco de Assis, disse que “a violência não se justifica em nome Deus, só a Paz é santa, não a guerra”. Francisco fazia assim eco do grito do papa polaco, ali mesmo, em Assis, noutro encontro inter-religioso organizado em 2003: “Não à guerra, ela nunca é uma fatalidade, é sempre uma derrota da humanidade”.

Não foi só nas palavras que Francisco ampliou esforços para trazer as lideranças religiosas para o campo da não-violência. Houve gestos que, na sua simplicidade, funcionaram como pontes de grande eficácia simbólica. 

As viagens periféricas revelaram-se sempre oportunidades para o encontro. Em Bangui, na República Centro Africana, em novembro de 2015, Francisco entrou numa mesquita e ali esteve largos minutos, em silêncio orante, enquanto era aplaudido no exterior por crentes muçulmanos que erguiam cartazes com o nome do representante máximo dos cristãos católicos.

Durante a histórica viagem ao Iraque, em 2021, que considerou uma das mais importantes que fez, Francisco visitou, em Najaf, o ayatollah Ali al-Sistani, líder espiritual dos muçulmanos xiitas no país. Foi a primeira vez que um Papa se encontrou com tão alto representante do ramo xiita do Islão.

“Há não muitos anos”, lembra o cardeal José Tolentino Mendonça, prefeito do Dicastério da Cultura e Educação, “estávamos perante o dilema de uma guerra religiosa e a verdade é que hoje é mais claro que as religiões estão ao serviço da paz”. E isso deve-se, entende o cardeal português, “também ao contributo deste pontificado.”

O Papa esteve em oração na destruída cidade de Mossul. Ouviu sobreviventes da guerra, percorreu as ruas em escombros. “A visão de Mossul atingiu-me como um soco”, escreveu na autobiografia (Papa Francisco, Esperança, 2025, Ed. Nascente).

Em Ur, terra de Abraão, o “pai” comum das religiões monoteístas, o Papa insistiu na purificação das religiões, mas o momento que registou uma patente histórica no diálogo inter-religioso foi vivido durante a visita aos Emirados Árabes Unidos, em fevereiro de 2019. Em Abu Dhabi, Francisco rubricou com o grande imã de Al-Azhar, uma das figuras mais respeitados no Islão sunita, a declaração de fraternidade humana, na qual os signatários se comprometeram a rejeitar a guerra.

“Há aqui uma declaração clara, honesta e assertiva de dizer ‘nós Igreja católica queremos ser atores e protagonistas da construção de um mundo mais fraterno e pacífico’”, interpreta o padre jesuíta Miguel Almeida.

Um gesto inédito na forma de um compromisso que vai sendo replicado. Entende o cardeal Tolentino de Mendonça “que a declaração de fraternidade universal, como as encíclicas do Papa, identificam causas comuns e são muito importantes para esta transição de época que estamos a viver”.

Frei Fernando Ventura recorda outro momento de grande simbolismo no diálogo entre religiões, quando o Papa orou na grande mesquita azul de Istambul ao lado do mais alto representante dos muçulmanos turcos, o Grande Mufti Rahmi Yaran. “O ponto de chegada tem de ser o respeito pela diferença e a consciência de que a diferença do outro completa aquilo que me falta a mim e que as diferenças em relação ao outro oxalá possam completar o meu ser pessoa e ser relação”, explica o frade franciscano capuchinho.

Rezar uns pelos outros e fazer coisas juntos, pediu Francisco ao abrir um novo capítulo no diálogo ecuménico. Ao sublinhar as boas intenções de Lutero, o fundador da grande reforma que daria lugar ao cristianismo protestante, foi alvo de críticas por parte de setores mais conservadores da Igreja católica. Em Lund, na Suécia, em 2016, participou nas comemorações dos 500 anos da reforma luterana, numa cerimónia ecuménica com uma mulher ordenada no episcopado protestante. “Não podemos resignarmos ao distanciamento entre nós”, reconheceu o Papa, que esteve com o arcebispo da Cantuária no Sudão do Sul e apelou à unidade na diversidade.

Aliou-se ao patriarca de Constantinopla na defesa da ecologia integral. Em outubro de 2014, participou em Istambul na Divina Liturgia presidida por Bartolomeu, na Igreja de São Jorge, sede do patriarcado ecuménico.

A caminho dos Estados Unidos, em fevereiro do mesmo ano, fez escala em Havana para estar com o patriarca ortodoxo de Moscovo. Um encontro inédito com o líder do maior bloco do cristianismo ortodoxo. Os dois acertaram escalas para se cruzarem na capital cubana, mas as profundas divergências sobre a guerra na Ucrânia acabariam por esfriar anos depois a relação entre Cirilo e Francisco, com o Papa a acusar o patriarca de Moscovo de tentar legitimar a invasão russa abusando de hermenêuticas evangélicas e da história do cristianismo na Europa.

 

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