
É quase um resumo da reflexão que fez ao longo do pontificado. Num dos últimos textos, com data de 26 de fevereiro de 2025, assinado no hospital Gemelli e enviado aos participantes na conferência “O fim do Mundo? Crises, Responsabilidades e Esperanças”, organizada pela Pontifícia Academia para a Vida, Francisco denuncia a “multicrise” nos contornos da guerra, do clima, da energia, das epidemias, das migrações e da inovação tecnológica.
O Papa insiste na convicção de que “a tecnocracia não nos salva” e critica a “desregulação utilitária e neoliberal” que “impõe a lei do mais forte como única regra”, uma lei que “desumaniza”. Ainda reafirma a encíclica Fratelli Tutti, sobre a fraternidade humana, lamentando a “progressiva irrelevância dos organismos internacionais, prejudicados por atitudes míopes, preocupadas em proteger interesses particulares e nacionais” e defendendo o multilateralismo, o compromisso em “organizações globais mais eficazes, com autoridade para garantir o bem comum global, a erradicação da fome, da pobreza e dos direitos fundamentais”.
Este texto foi divulgado enquanto Francisco acompanhava no hospital, lendo os jornais, como disse a Sala Stampa, a situação complexa e imprevisível criada após o encontro em Washington, entre Trump e Zelensky, com o desenho do novo quadro geopolítico que exalta o utilitarismo económico-financeiro e secundariza o papel da diplomacia política e da Organização das Nações Unidas.
São estes os condimentos, causa e consequência, daquilo a que Francisco insistentemente chama “terceira guerra mundial em curso, aos pedaços”.
Quando, em novembro de 2014, discursou em Estrasburgo no Parlamento Europeu, tinha já avisado, com ênfase, para o distanciamento entre os cidadãos e os decisores políticos.
É um Papa empenhado “em reabilitar o que é o sentido de serviço e o que é o sentido do bem comum, também na política e sobretudo na política, onde parece estar perdido”, defende Rita Sacramento Monteiro, da Fundação Economia de Francisco.
Na visita ao Brasil – à margem da JMJ do Rio de Janeiro, que teve de conviver com protestos de rua –, Francisco defendeu mais diálogo perante a “desilusão e o desencanto que invadem os corações e saltam para a rua”. O compromisso ético e social implica “reabilitar a política”, contrariando a corrupção, a violência e as desigualdades sociais.
Superior dos jesuítas na Argentina durante a ditadura militar, foi acusado de não proteger devidamente padres encarcerados pelo regime, apesar de relatadas intervenções para facilitar a fuga de ativistas políticos. Já Papa, disse não ser de esquerda ou de direita, mas confessou ter sido muito influenciado na juventude, por uma amiga militante comunista.
É preciso conhecer o contexto de vida e a experiência sul-americana de Bergoglio para entender a sua aparente ambiguidade política. A realidade é superior às ideias. Como ele disse, “não basta comunicar ideias, as ideias devem resultar da experiência e podem discutir-se”.
Pouco depois de ser eleito, numa audiência no Vaticano, um professor perguntou-lhe o que devia um jovem fazer para melhorar o mundo. A resposta foi incisiva. “Para o cristão, é uma obrigação envolver-se na política. Os cristãos não podem 'jogar a fazer o Pilatos', lavar as mãos”, devem envolver-se na política “pois a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum”.
Para o sociólogo José Manuel Pureza, o Papa “veio dizer aquilo que é cristalinamente evidente, ou deve ser: a política pode e deve ser uma forma superior de caridade”. Até porque, acrescenta frei Fernando Ventura, franciscano capuchinho, “os cristãos são chamados a assumir o papel de cidadãos do mundo e fazedores de política como todos os seres humanos são fazedores de política”. Mas a exigência é quase uma utopia. Há que não ter medo de sujar as mãos e desafiar a quadratura do círculo.
“A paz é possível, nunca me cansarei de o repetir” (Papa Francisco, Esperança, 2025, Ed. Nascente). Na mensagem para o 50.º Dia Mundial da Paz, em 2017, Francisco surpreendeu ao propor a “não-violência” como “estilo de uma política para a paz”. O programa ganha raiz evangélica no episódio das “bem-aventuranças”, serve para religiosos e políticos o aplicarem como desafio à responsabilidade, não descartando ninguém, sem danificar o planeta e sem querer vencer a qualquer custo. Está tudo ligado e parte do pressuposto da não agressão. Na lógica do Papa, “é impossível acentuar mais um tema em favor de outros ou insistir mais na moral individual ou na moral social” (António Marujo & Joaquim Franco, Francisco – A Revolução Imparável, 2017, Ed. Manuscrito).
É um pontificado marcado por uma crítica radical e frontal ao modo dominante de organização da economia na sociedade, entende Pureza: “Se quisermos escolher uma frase emblemática era ‘esta economia mata’, da exortação apostólica Evangelii Gaudium, que é toda uma síntese de um pensamento denso, justamente sobre o modo de organização da economia e da sociedade que gera pobreza, discriminação, pessoas descartáveis.”
Pureza integra um grupo internacional de reflexão sobre a relação entre o marxismo e o cristianismo, e lê nas intervenções de Francisco “muitos aspetos de pensamento social e de ação pastoral que não hesitaria em dizer que colhem simpatias na esquerda política”, isto embora ele tenha dito que “não é de esquerda nem de direita”, mantendo-se “fiel à genuinidade do cristianismo, que procura resgatar a divina rebeldia de Jesus”.
Francisco visitou Cuba em 2014. Encontrou-se com o ex-presidente cubano Fidel Castro, celebrou missa na praça da revolução e pediu aos cubanos que estejam ao serviço das pessoas e não de ideias. Um ano depois, de visita à Bolívia, recebeu das mãos do presidente Evo Morales um crucifixo esculpido numa foice e martelo, símbolo internacional do movimento comunista. Na altura, foram muitas as vozes a criticar o gesto, que teve, assim, uma interpretação política. O objeto de arte era a réplica de uma peça esculpida pelo padre jesuíta Luis Espinal, que, na Bolívia, acolheu a causa anti-imperialista e os movimentos políticos socialistas influenciados pela teologia de libertação, tendo sido assassinado em 1980 por paramilitares de direita durante um golpe militar. No regresso a Roma, Francisco explicaria que não se sentiu ofendido com a oferta, justificando que era apenas “uma expressão de arte de protesto”, uma obra que levaria para os museus do Vaticano.
É uma evidência, mesmo para quem não acompanhou os detalhes do pontificado. As opções do primeiro Papa sul-americano foram “claramente periféricas, e muito políticas no ramo da justiça social”, concorda o padre jesuíta Miguel Almeida, que realça em Francisco “um desejo de encontrar políticas que transformem a vida social das pessoas”.
Os leigos cristãos devem trabalhar na política? “Não é fácil”, admitiu Francisco, mas se a política “está suja” isso não se deve também, pergunta o Papa, à demissão dos cristãos, que não se envolvem na política com “espírito evangélico”?
Francisco falou para os países desenvolvidos, sempre a partir de um ângulo periférico e abraçou a causa ambiental com a teimosia de um ativista.
Sintonizou-se com as cimeiras internacionais sobre o clima. Ofereceu um par de sapatos para se juntar a uma manifestação simbólica em Paris contra um “suicídio coletivo” (António Marujo & Joaquim Franco, Francisco – A Revolução Imparável, 2017, Ed. Manuscrito). Escreveu a encíclica Laudato Si – Louvado Sejas, numa referência ao Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis –, um documento dedicado às questões ambientais, no qual faz denúncias sobre a exploração de recurso naturais e propostas concretas para um desenvolvimento sustentável e integral.
Francisco tomou partido no debate sobre as alterações climáticas, com uma abordagem social e económica. “Associa a ecologia integral, o cuidado com a casa comum, a uma forma de pensar a economia e a sociedade que justamente partem da referência aos pobres, da critica ao capitalismo neoliberal”, recorda José Manuel Pureza.
Rita Sacramento Monteiro, que abraçou desde a primeira hora o desafio de Francisco para que jovens de todo o mundo pensem em novas relações económico-sociais, num movimento que levou à criação da Fundação Economia de Francisco, não hesita em apresentá-lo como alguém que, “como tantos de nós, quer construir uma economia e um mundo onde todos possamos viver e reconhecer que fazemos parte da criação e precisamos de cuidar desta casa”.