
Há cerca de 1300 anos que a cadeira de Pedro não era ocupada por um clérigo de fora da Europa, mas os dois antecessores europeus permaneceram na sombra do Papa vindo da América do Sul. Na finitude das funções, o argentino Bergoglio seguiria o exemplo do alemão Ratzinger, que resignou, ou do polaco Woytilla, que agonizou no pontificado.
O dilema acompanha-o. Elogiou a coragem do antecessor, mas sempre manifestou uma grande admiração pelo exemplo de João Paulo II, que o fez cardeal.
Em julho de 2022 disse aos jornalistas que a renúncia “não é uma catástrofe, pode mudar-se o Papa”. Deixou notas para legitimar a saída no caso de perder as faculdades para o exercício e persistiu na fragilidade, com internamentos, intervenções cirúrgicas, uma cadeira de rodas e problemas respiratórios crónicos.
Dias antes do conclave, via-se na praça de São Pedro um pano com a inscrição “Francisco I Papa”. O homem que erguia a tarja não mais foi visto depois do anúncio do novo Papa. Esta imagem chamou a atenção de frade Fernando Ventura. Na véspera do conclave, tínhamos já recebido informações de uma “fonte” do Vaticano a dar conta de movimentações favoráveis ao arcebispo de Buenos Aires. Em direto, enquanto os cardeais eleitores entravam na Capela Sistina entoando Veni Creator, conversava com o frei Fernando em direto, então na SIC Notícias, e avançávamos a hipótese Bergoglio, “para que a Igreja consiga sair do aquaplaning”, dizia o frade franciscano capuchinho (Fernando Ventura & Joaquim Franco, Somos Pobres mas Somos Muitos, 2013, Ed. Verso de Kapa). Percebemos mais tarde que alguns jornalistas argentinos tiveram a mesma informação e também avançaram o nome antes da reunião dos cardeais, à porta fechada, para a eleição do sucessor de Bento XVI.
Na sua autobiografia (Papa Francisco, Esperança, 2025, Ed. Nascente), o Papa Francisco revela, de forma inédita, pormenores do pré-conclave que deviam ser secretos. Ficamos a saber que vários cardeais deram sinais evidentes de que havia uma forte tendência para votar em Bergoglio. Abeiraram-se dele, quiseram conhecer o seu passado, o seu pensamento sobre a Igreja e o mundo, o histórico clínico.
Nas congregações gerais, as reuniões do colégio cardinalício que antecedem o conclave, Bergoglio tinha já dado nas vistas ao dizer que um Papa deve ser alguém que ajude a Igreja a “sair de si mesma e a caminhar pelas periferias” geográficas e existenciais, contrariando uma Igreja “autorreferencial” que “adoece”.
Em 2013, a Igreja estava sufocada por problemas difíceis, com fuga de documentos secretos, escândalos sexuais e financeiros, e um Papa que renunciara por alegada falta de ânimo. Na verdade, Ratzinger revelara-se nos últimos anos do pontificado incapaz de ter mão na complexa máquina de interesses e influências no Vaticano. Era uma Igreja que precisava de recuperar a confiança, a lembrar as “visões” de S. Francisco de Assis, no século XIII, diante do crucifixo na pequena igreja de S. Damião: “Vai, Francisco, e reconstrói a minha Igreja em ruínas”.
Aquele cartaz que chamara a nossa atenção na praça de S. Pedro antes do conclave – “Francisco I Papa” – fizera mesmo um simbólico pré-anúncio. Bergoglio revelou que também o viu na praça, mas só se lembrou já depois de ter escolhido o nome para Papa. Enquanto arcebispo de Buenos Aires, dedicou uma profunda atenção pastoral e social às villas miseria e explicaria que escolheu Francisco na hora da eleição quando o cardeal brasileiro Cláudio Hummes, próximo dos franciscanos, o abraçou e lhe disse: “Não te esqueças dos pobres”.
O Papa “conferiu uma centralidade à posição dos pobres que entrou no senso comum”, constata o sociólogo José Manuel Pureza, que integra um grupo de trabalho sobre as possíveis relações entre o cristianismo e o marxismo.
Bergoglio veio de longe com uma história de resiliência, uma experiência de vida que daria forma e orientação ao pontificado. Ao saudar os milhares de peregrinos que celebravam na praça a eleição, Francisco pediria a oração do povo por ele, antes de, ele mesmo, como se esperava, dar a bênção ao povo. “O pontificado ficou logo marcado pela primeira aparição do Papa Francisco após a eleição”, entende o padre jesuíta Miguel Almeida, “ficaram logo ali os pontos nos ‘is’ do que seria o pontificado, ou seja, a partir de baixo”.
Em junho de 2013, três meses após a eleição, Francisco ampliava a interpretação sobre a “crise” que atormentava o mundo ocidental. “Estes problemas no trabalho, na economia, são consequência de um grande problema humano e tanta pobreza no mundo, é um escândalo”, disse. “O que está em crise é o valor da pessoa humana…”
Frei Fernando Ventura entende que Francisco “mudou o espaço relacional, da Igreja consigo mesma e da Igreja com o mundo”. Esta “horizontalidade relacional”, acrescenta o frade franciscano capuchinho, trouxe “ondas de choque que vão ter maior repercussão na sociedade, mais fora da Igreja do que dentro da Igreja”.
É um Papa que não consegue esconder o seu lado temperamental, evidenciado quando deu uma palmada a uma peregrina asiática que o puxou com tanta força que quase o fez cair, mas deixa também um memorial de silêncios contagiantes. Um jesuíta habituado ao exercício do discernimento, ao diálogo como ferramenta para as mais difíceis tarefas.
No fumo branco da eleição, quem antecipava a revolução de Francisco? Diz a tradição da Igreja que é o Espírito Santo que ilumina um conclave. Os cardeais escolheram-no a pensar nas feridas profundas da Igreja, mas foi também um mundo polarizado e desigual que agarrou Jorge Mario Bergoglio ao magistério.