Reenquadrar conceitos de sexo, fama e beleza. Há mais coisas no arquivo do criador de imagens alemão do que parece à primeira vista
O mais recente livro do fotógrafo Juergen Teller, "Donkey Man and Other Stories," é um tomo de 608 páginas de fotografias captadas ao longo de três décadas. A impressionante história por detrás do título e da imagem da capa – um autorretrato do fotógrafo alemão nu, deitado em cima de um burro – é contada dali a 50 páginas.
Uma pequena passagem chamada "A Viagem de Burro" conta a história de um angustiante incidente que ocorreu na Turquia, em meados da década de 80. Tal como Teller indica, ele e uma ex-namorada fizeram uma longa e assustadora viagem de autocarro que os levou a uma cidade deserta, onde a sua companheira de viagem se sentiu tão mal que foi parar ao hospital. Quando saiu um pouco da cabeceira da cama dela, Teller aventurou-se num passeio. Acabou por aceitar uma boleia, de burro, de um homem que o iria agredir sexualmente sobre o animal.
Ele conseguiu repelir o agressor, mas os pormenores da história são sinistros, e a experiência afetou-o de forma tão profunda que, durante anos, não conseguiu falar sobre o assunto. "Não contei a ninguém," disse ele durante uma entrevista no seu estúdio londrino. "Fiquei tão incomodado com aquilo, que obviamente... não consegui dizer nada à minha namorada da altura. Refugiei-me no meu próprio mundo e não interagia muito com o mundo exterior. Em parte, foi por causa disso que acabámos o namoro."
Após uma experiência tão horrenda, o que terá levado Teller a fotografar-se a si mesmo, décadas depois, nu e vulnerável, em cima de um burro?
A resposta tem origem em Frankfurt, em 2013, quando teve um flashback do incidente, enquanto trabalhava numa peça performativa com a artista alemã Anne Imhof. O papel de Teller era levar um burro do exterior da galeria Portikus para o espaço da exposição e amarrar o animal. Uma tarefa que não só o assustou (por medo de levar um coice) como também lhe trouxe memórias daquilo que acontecera na Turquia.
“Íntimo e pessoal”
Uns anos depois, foi o próprio Teller que arranjou um burro e fotografou a imagem da capa no seu estúdio, um amplo espaço em West London especialmente concebido para o efeito. "Eu disse: 'Preciso de um burro. Quero ter aqui um burro. E quero ficar nu em cima do burro. E quero escrever aquela história", explicou ele.
"Temos boas experiências, más experiências, experiências engraçadas. A vida está repleta de complexidades e eu queria mostrar isso."
Na hora de escolher a capa do livro, Teller reparou que podia ter usado uma das suas fotografias mais reconhecíveis. Ele tirou fotografias icónicas com Kate Moss, Victoria Beckham e Björk, entre outras estrelas que fariam “com que vendesse mais exemplares". Mas tinha de ser esta fotografia, disse ele, porque o projeto é "íntimo e pessoal".
O livro também contém imagens e testemunhos dos colaboradores mais próximos de Teller, como a atriz Charlotte Rampling, que Teller fotografou várias vezes. Numa das fotografias, tirada no átrio do estúdio dele, a atriz está sentada com um ar imponente, com uma bela raposa ao colo. Algumas páginas depois, vemo-la de novo de mãos e joelhos no chão, a comer e beber do mesmo prato que a raposa. O absurdo da cena é uma alegoria comum em Teller, cujo sentido de humor é frequentemente sarcástico.
As fotografias de Teller talvez sejam um pouco provocatórias para alguns. Há muita nudez, formas fálicas e imagens de lesmas e sapos dispersas pelas páginas do livro. As imagens dele obrigam o leitor a questionar-se o que é sensual, humorístico ou triste.
Também não é dado a pedestais. Numa fotografia, Kim Kardashian West rasteja no chão com collants, botas, roupa interior e um casaco de peles e o rabo apontado para o ar. Entretanto, fotografias de Kristen McMenamy totalmente nua revelam as partes mais íntimas da modelo.
Mas Teller rejeita a ideia de que seja muito exigente. Diz que estas cenas surgem naturalmente e acrescenta que nunca pede a ninguém para fazer algo que considere impróprio. "Não faço nada por capricho ou sem que a pessoa saiba o que estou a fazer. Creio que fica sempre claro aquilo que pretendo."
Então, o que pretendia ele com a foto de Kim Kardashian? "Estava completamente interessado no rabo dela e no que se passa ali", disse ele sem rodeios.
Mas centrarmo-nos demasiado na natureza provocadora do trabalho dele seria redutor. E tal como ele disse, à boa moda alemã: "Os ingleses encaram a nudez com estranheza."
A obra de Teller tem muitos momentos tranquilos, tal como as várias imagens da mãe e da natureza. Uma série de fotografias comoventes que ele tirou às crianças doentes num hospital londrino e as fotografias do seu tio que estava a morrer são cruas e emotivas, contando uma história bastante diferente.
Tal como escreveu o editor da Vogue britânica, Edward Enninful , no seu tributo a Teller no livro, o fotógrafo mostra as pessoas “tal como elas são” e é destemido na sua franqueza.
Críticas e felicitações
É notável que a indústria da moda, um setor reconhecidamente controlador e obcecado por apresentar a perfeição, tenha acolhido o trabalho dele. Igualmente confuso é o facto de que Teller prefira a indústria da moda ao mundo da arte de muitas formas, considerando-a "mais autêntica". Mas o mundo da moda que ele vê, através dos seus trabalhos, é mesmo assim. Ele fotografou para muitas marcas de alta-costura, como o trabalho dele para Marc Jacobs, sobretudo a imagem de 2008 das pernas nuas de Victoria Beckham a sair de um saco de compras, e a fotografia de Joan Didion para Celine são algumas das campanhas mais famosas.
Teller é um fotógrafo que surgiu na década de 90, uma época em que as revistas ainda eram a principal forma de aceder à moda e à cultura. Ele ficou famoso em publicações de culto como The Face e a i-D, e fotografou vários artigos para a Vogue. Segundo ele, este novo livro é uma prova do seu amor pelas revistas.
Apesar de tanto sucesso e distinções, o trabalho dele nem sempre foi bem compreendido. Uma reportagem fotográfica para a revista W tornou-se viral no ano passado, após ser criticada nas redes sociais porque as imagens pareciam desleixadas e desrespeitosas. A sessão fotográfica, que apresentava uma série de antigos e novos talentos de Hollywood, como James Corden, Riz Ahmed, Gal Gadot e Taylour Paige, foi feita numa rua comum de Los Angeles, com uma série de carros estacionados como pano de fundo. Um tweet de Ahmed, no qual ele disse: "Esta sessão de fotos da @wmag foi a mais rápida da minha vida. Vinte segundos, dois cliques. Juergen Teller é mesmo rebelde", esteve na origem das críticas. Fotografias que deveriam ser espontâneas foram rotuladas por muitas pessoas como displicentes.
Esta indignação apanhou Teller de surpresa, mas magoou-o. "Sim, claro que me importo com as críticas. Importo-me sempre. E muito." Afirmou ele, refletindo sobre as reações negativas. “O facto de não terem percebido incomodou-me muito."
Ele acabou por transformar essa experiência noutro projeto, publicando os tweets e memes na edição primavera/verão 2021 da revista Pop, com o título "Notas Sobre o Meu Trabalho."
Algumas das imagens também figuram numa nova exposição na Galeria Suzanne Tarasieve em Paris. Com o nome "Auguri," que em Italiano significa "parabéns", a exposição assinala um novo capítulo para o fotógrafo de 57 anos, que acaba de casar com a sua parceira criativa e musa, Dovile Drizyte. Uma das séries fotográficas em exibição, "We are Building our Future Together", mostra o casal vestido com coletes refletores em vários estaleiros de construção, em Veneza e Nápoles, onde casaram este verão. Uma das fotografias mostra o casal sorridente com capacetes amarelos, em poses divertidas com canos de esgoto.
Reviravolta Inesperada
A nossa entrevista foi consideravelmente longa, mas Teller tem muitas histórias para contar. Muitas mais são contadas no livro, tal como o episódio da sessão fotográfica de O.J. Simpson, a conhecida ex-estrela da NFL, em Miami. Simpson, de quem Teller mal podia esperar para se afastar, ter-lhe-á perguntado sem rodeios, "Juergen, para si, quem foi o assassino?" (referindo-se ao homicídio de Nicole Brown) ao que Teller respondeu: “O.J., não faço ideia. Eu não estava lá." Simpson soltou uma gargalhada, levantou as mãos para o céu e disse: "Só Deus sabe."
Uma parte do livro é também dedicada a uma viagem que Teller e Drizyte fizeram ao Irão, mesmo antes da pandemia. Mais uma vez, há uma reviravolta inesperada quando o casal perde o voo de regresso e vai parar ao aeroporto de Teerão, no dia em que o Irão lançou vários mísseis para bases iraquianas com tropas americanas, em retaliação por um ataque com drones que matou o alto comandante iraniano Qasem Soleimani, na semana anterior.
Por incrível que pareça, ofereceram ao casal - que rejeitou – dois lugares no fatídico voo da Ukrainian Airlines, que foi abatido pelas forças iranianas pouco após a descolagem, matando as 176 pessoas que seguiam a bordo.
Fazer a curadoria de um livro desta dimensão poderia ser avassalador, mas Teller parece imperturbável. Na verdade, fez questão de referir que este é apenas o Volume 1, deixando a sugestão de que haverá uma continuação.
As ambições dele não se ficam por aqui. Está a preparar uma grandiosa mostra individual à escala de um museu, no Grand Palais Éphémère de Paris, um espaço com 10 mil metros quadrados, construído para receber exposições, enquanto o histórico Grand Palais está em obras. Ainda não se sabe como ele disporá do espaço, mas não restam dúvidas de que ele não terá dificuldade em preenchê-lo devidamente.
"Juergen Teller: Donkey Man and Other Stories," publicado pela Rizzoli, já está à venda.