Donald Trump deveria destruir os centristas do establishment com uma revolta populista global anti-"woke". Mas o seu segundo mandato caótico pode estar a produzir o efeito oposto. Muitas democracias ocidentais enfrentam os mesmos problemas políticos intratáveis que impulsionaram Donald Trump no seu surpreendente regresso eleitoral no ano passado, incluindo preços elevados, crises de habitação acessível e dificuldades em controlar fronteiras.
Assim, até há pouco tempo, o plano de Trump para 2024 parecia um guião para populistas em todo o lado. Mas as suas tentativas de concentrar poder, os ataques a aliados dos EUA e as guerras comerciais com tarifas rapidamente geraram algum ressentimento. Os estrangeiros podem ser cínicos quanto aos seus próprios líderes, mas muitos olham para os americanos e pensam: “Não queremos o que vocês têm”. É por isso que Mark Carney continua a ser primeiro-ministro do Canadá.
O substituto tardio dos Liberais celebra uma vitória eleitoral surpreendente depois de recuperar de uma desvantagem de 25 pontos em poucos meses. Mas Carney nem sequer estaria na política se não fosse Trump, cujas exigências para que o Canadá se tornasse o 51.º estado dos EUA e tarifas que poderiam ser existenciais para a economia canadiana condenaram a oposição.
“O líder conservador Pierre Poilievre tem repetido muito da linguagem de Trump durante anos”, diz Matthew Lebo, politólogo da Universidade de Western, em Ontário, no Canadá. “Soar ‘trumpista’ num momento em que todo o Canadá está focado em Donald Trump e vê os estragos que causa… foi uma péssima altura para Poilievre”.
Trump pode ser o flagelo dos globalistas. Mas não há nada mais establishment, um poder instalado, do que um primeiro-ministro que estudou em Harvard e Oxford e liderou dois bancos centrais. “Mark Carney parecia feito para este momento”, considera Lebo.
Um regresso à Austrália?
A próxima hipótese para uma vaga anti-Trump é a Austrália, que realiza eleições gerais este fim de semana. Há semanas, o primeiro-ministro trabalhista Anthony Albanese parecia destinado à derrota. Mas subiu nas sondagens no meio da fúria dos eleitores face às tarifas dos EUA, e a coligação conservadora da oposição, liderada por Peter Dutton, outro guerreiro cultural anti-"woke", estagnou.
É impossível prever o que os eleitores decidirão, mas se o outrora impopular governo de Albanese sobreviver, Dutton enfrentará as mesmas questões sobre posicionamento político que Poilievre. (A ideia de que Dutton é propenso a gafes solidificou-se logo no início da campanha quando pontapeou uma bola de futebol australiana contra a cabeça de um cameraman durante uma sessão fotográfica desastrosa).
Mesmo os líderes que não enfrentam entretanto eleições tiveram de se reajustar para lidar com o barulhento segundo mandato de Trump. O presidente dos EUA é profundamente impopular no estrangeiro e a sua arrogância e insultos fomentaram o antiamericanismo, criando dilemas para os líderes que têm de lidar com ele. O primeiro-ministro britânico Keir Starmer, por exemplo, teve dificuldade em ganhar tração após a sua vitória esmagadora no ano passado. Mas a sua aprovação subiu devido à forma calma como lidou com Trump e ao apoio à Ucrânia, à medida que os EUA se começavam a afastar em direção à Rússia. Ainda assim, o maior teste de Starmer aproxima-se, com a visita de Estado do presidente norte-americano ao Reino Unido, tendo encontro marcado com o rei Carlos III – um ato de bajulação cerimonial que muitos britânicos desaprovam.
O presidente francês Emmanuel Macron tem tido dificuldades desde que foi reeleito, e foi instrumental no colapso do seu próprio governo após convocar desastrosamente eleições legislativas no ano passado. Mas agora parece ter tido razão. Há anos que alerta para a necessidade de a Europa cuidar da sua própria defesa – e os ataques de Trump aos aliados permitiram-lhe relançar a sua campanha não oficial para ser o líder indispensável da União Europeia.
As eleições na Alemanha no início deste ano pareceram contrariar a tendência, já que o partido populista de extrema-direita AfD duplicou a sua votação com o apoio aberto do vice-presidente JD Vance e de Elon Musk. Ainda assim, alguns analistas acreditam que o alarme dos eleitores quanto a uma maré direitista ao estilo dos EUA impôs um limite à ascensão do AfD.
Noutros pontos da Europa, a atitude “America First” de Trump mudou o jogo para os partidos de direita que têm Donald Trump como inspiração. A raiva face às tarifas poderá enfraquecer a tentativa da líder da extrema-direita Marine Le Pen de usar táticas à Trump para pintar a sua condenação por desvio de fundos como interferência eleitoral antes das presidenciais francesas de 2027. Até Nigel Farage, arquiteto do Brexit, acusado por críticos de passar mais tempo em Mar-a-Lago do que na sua cidade costeira inglesa, distanciou-se da política de Trump para a Ucrânia. E na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán, cujo manual antidemocrático o tornou um herói MAGA, está cada vez mais impopular antes das eleições do próximo ano.
As guerras comerciais e as eleições na Ásia
De forma mais ampla, os sismos políticos provocados por Trump pairam sobre outras campanhas. Tanto a Coreia do Sul como o Japão têm eleições importantes este ano que serão moldadas pelas guerras comerciais. Os líderes de ambos os aliados dos EUA estão sob pressão para fechar rapidamente acordos que minimizem os danos económicos que poderão afetar os seus eleitores.
O secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, rejeitou a ideia de que as eleições no Japão (em julho) e na Coreia do Sul (em junho) atrapalharão as negociações comerciais de que Trump precisa para mostrar que a sua estratégia está a funcionar. “Pelo que percebemos das conversações, estes governos querem mesmo ter a estrutura de um acordo comercial concluída antes de irem para eleições, para mostrarem que conseguiram negociar com os Estados Unidos”. assegura Bessent. “Estamos a notar que estão mais motivados a sentar-se à mesa, resolver isto e depois voltar a casa e fazer campanha com base nisso”.
É uma forma de ver as coisas. Mas os acordos comerciais envolvem compromissos dolorosos que podem alienar blocos importantes de eleitores – o que os políticos menos querem antes de eleições difíceis. Isso também pode limitar o alcance dos acordos que Trump insiste em apresentar como concessões espetaculares para os EUA.
O maior teste de Carney está para vir
Mark Carney sabe o que o levou à vitória. E não está a abrandar. “Os Estados Unidos querem as nossas terras, os nossos recursos, a nossa água, o nosso país,” alertou o primeiro-ministro do Canadá. “Mas estas não são ameaças vãs. O Presidente Trump está a tentar quebrar-nos para que a América possa ser dona de nós. Isso nunca, nunca jamais acontecerá”.
A multidão aplaudiu. Mas as suas palavras levantam uma questão que se aplica não só ao Canadá, mas a outras democracias estrangeiras: será que uma mensagem anti-Trump funciona enquanto o 47.º presidente estiver na Casa Branca? Talvez, já que não há sinais de que Trump vá moderar a sua postura. Mas o mundo está cheio de eleitorados desiludidos e o Ocidente enfrenta profundos problemas políticos. Na verdade, os eleitores enviam repetidamente sinais claros de que querem mudança, mas os novos governos muitas vezes têm dificuldade em cumprir. E grandes vitórias eleitorais podem rapidamente desvanecer sob o peso de problemas intratáveis – basta perguntar a Starmer.
A pressão sobre Carney para apresentar resultados é imensa, já que tem de desativar a guerra comercial com Trump, que ameaça provocar uma crise económica e destruir milhões de empregos no Canadá. Tem de encontrar novos mercados e receitas para o seu país, agora que os EUA deixaram de ser um parceiro fiável. E está sob pressão para finalmente cumprir as metas mínimas de despesa com a NATO. E os eleitores vão, mais cedo ou mais tarde, exigir progresso noutras áreas – saúde, habitação, preços elevados, sem-abrigo, toxicodependência e desemprego. E o primeiro-ministro não tem muito espaço de manobra.
Os eleitores podem tê-lo escolhido como a melhor aposta para enfrentar Trump. Mas não lhe deram um mandato amplo, deixando-o com um governo minoritário. Precisará de partidos mais pequenos para aprovar legislação que pode implicar escolhas políticas difíceis. Esta é uma situação inerentemente instável para construir confiança e um legado que possa convencer os eleitores a dar-lhe uma maioria dentro de alguns anos.
E embora tenham sido derrotados, os conservadores não foram eliminados. As suas promessas de combater o crime e reduzir impostos cativaram alguns eleitores, e podem acreditar que têm hipóteses de vencer daqui a alguns anos – talvez com um novo líder como o primeiro-ministro de Ontário, Doug Ford, também ele populista, mas que fez a escolha sensata de enfrentar Trump em vez de o imitar.
Os Liberais de Carney sabem que têm de mostrar mudança. Apaziguaram os eleitores zangados afastando brutalmente o impopular primeiro-ministro Justin Trudeau numa jogada desesperada para manter o poder. Escolheram um não-político como Carney para os liderar. E assim que se tornou líder interino, ele abandonou as posições mais impopulares de Trudeau, incluindo o imposto sobre o carbono. Isso eliminou um dos melhores argumentos de Poilievre. Mas numa era de eleitores mal-humorados e líderes com dificuldades em cumprir, nem as maiores vitórias eleitorais garantem sucesso.
Afinal, os EUA estão a viver a sua terceira presidência consecutiva de um só mandato – assumindo que Trump cumpre a Constituição e sai em janeiro de 2029. E apesar de ter conquistado todos os estados decisivos no ano passado, Trump tem os piores índices de aprovação aos 100 dias de mandato em décadas.
E a política nunca é estática. A vitória esmagadora do Partido Trabalhista de Starmer no ano passado poderá não valer nada esta quinta-feira, quando se espera que o partido de extrema-direita Reform UK, de Farage, obtenha grandes vitórias nas eleições locais, o que pode anunciar o eclipse do Partido Conservador – a máquina eleitoral de maior sucesso da Grã-Bretanha – nas próximas legislativas.
Será cedo demais para prever um renascimento populista?