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Trump 2.0: ecos de uma América dividida

18 jan, 17:00

Nas democracias, a mudança só parece tornar-se urgente quando uma crise existencial bate à porta. Mas ao final destes quatro anos, não serão os autocratas que determinarão o nosso destino. Será aquilo que fizermos com o tempo que nos foi dado – e como o comunicarmos.

A batalha não está perdida. Está em suspenso. Há naquilo que não compreendemos, que não somos capazes de decifrar, algo que nos insta a resistir. Mas talvez devêssemos começar por reconhecer que a ciência política e o jornalismo são incapazes de explicar porque Trump venceu, Kamala perdeu e prever o que acontecerá na Europa, pelo menos logo na semana a seguir às eleições. É fascinante o número de publicações que atribuem (definitivamente) a responsabilidade da derrota ao wokismo dos Democratas e ao “fracasso global e irremediável” dos progressistas. Tal como é fascinante o espalhafato daqueles que apontam o dedo a Biden por se ter esquecido dos trabalhadores, quando estamos a falar provavelmente do Presidente mais à esquerda, em termos económicos, que a Casa Branca já hospedou.

Precisamos de “perguntadores”. Que saibam colocar as questões, em vez de oferecer respostas imediatas. Capacitados para promover o pensamento crítico, fomentar o debate construtivo e considerar múltiplas perspetivas antes de ditar sentença. Não precisamos de artigos que repitam hoje unicamente o que fizemos mal ontem, mas também o que devemos fazer bem amanhã. Não precisamos de transmissores do óbvio, do previamente calculado. Se somos incapazes de perceber satisfatoriamente o que motiva um votante em Portugal, um votante na Alemanha ou na França, como podemos, quase instantaneamente, ser capazes de discernir o que motiva um votante, distante, no Midwest americano?

Talvez, não tenha sido o wokismo ou a capacidade de Trump para classificar os progressistas como uma massa única, alheada da realidade e radical, a causa principal da derrota democrata, mas sim, como alegou Michael Sandel, que as raízes do fracasso venham de longe, da desregulamentação da indústria financeira, do desinteresse pela crescente desigualdade e do peso excessivo do dinheiro na política americana?

É evidente que assumir a identidade de guardiões da democracia não foi suficiente para convencer os cidadãos americanos. Hoje, diz-se que Kamala Harris se devia ter distanciado de Biden. Ontem, dizia-se que não poderia trair o seu Presidente e renegar de uma agenda comum. Talvez tenha sido a economia, para os “estúpidos”, ou a incapacidade de Biden, tal como de Ruth Ginsburg, de se retirar a tempo. Podemos afirmar com segurança que uma campanha eleitoral com pouco mais de cem dias teria sempre poucas hipóteses de triunfar, fosse quem fosse o candidato – Josh Shapiro, Gretchen Whitmer ou Newsom. Esta intuição parece estar correta, tendo o conta o estudo da YouGov, que aferiu que mais americanos votaram em Harris do que votariam em Biden, Whitmer ou Shapiro nas eleições de 2024.

Isto não significa que os Democratas não tenham cometido erros graves. Kamala precisava de apresentar uma alternativa sólida à agenda económica do candidato republicano. Não o fez. Além da falta de sensibilidade para responder à perceção de mal-estar económico que Trump cavalgou durante toda a campanha, elencou uma combinação desarticulada de políticas sociais e medidas alinhadas com as elites de Wall Street, não tendo sido capaz de definir uma agenda própria ou contruir uma identidade clara. Por mais questionável que seja a visão de Trump, apresentou uma, tendo sido capaz de ultrapassar uma tentativa de golpe de estado, acusações criminais e um atentado, alavancando uma combinação de nativismo, racismo e promessas contraditórias. Manifestamente, não ser Donald Trump não foi suficiente para que Kamala Harris ganhasse.

O apelo de Trump é uma promessa de retirar o poder às elites e aos “invasores”, devolvendo o país aos seus “legítimos proprietários”. A sua vitória demonstrou a amplitude do apelo tanto nos estados azuis como vermelhos, entre todas as raças, etnias ou idades. Ironicamente, convenceu os eleitores de que representa a mudança, apesar de ter sido a figura central da política americana durante estes dez anos, e dominando hoje, claramente, o mundo da cultura popular, refletido, por exemplo, na batalha dos podcasts.

A Kamala foi-lhe exigido que explicasse as suas políticas de forma consistente e abrangente. A Trump, somente lhe foi exigido que fosse um bom contador de histórias. Como para políticos como Trump as palavras não estão ligadas a significados, teve apenas de continuar a contar histórias alheias à complexidade do mundo. Poucos políticos conseguirão convencer um votante de que a inflação desceu devido às políticas implementadas, muito menos num Tweet. Trump nunca o terá de fazer. Os Democratas – e a grande maioria dos meios de comunicação – há muito que defendem a premissa de que o acesso à verdade libertará o público. Contudo, a maioria dos americanos não acredita em informações que vão contra aquilo que pensam que sabem, optando antes por ter como certo o que ouvem em late shows de direita, de Joe Rogan a Lex Fridman.

A pergunta que se impõe é o que fazer quando nenhum compromisso, nenhuma esperança de reconciliação parece possível. Quando metade de um país parece estar tão em desacordo com a outra, que deixa de ser possível sequer pensar numa visão partilhada do futuro. Para isto contribuíram, certamente, os meios de comunicação, que amplificaram a presença de Trump e foram incapazes de passar a mensagem, de explicitar as consequências da sua eleição.  Tal como foi apontado, o facto de metade dos americanos ter decidido que Trump está qualificado para ser Presidente significa que não estão a consumir informação de meios de comunicação tradicionais.

Talvez seja hora de redirecionarmos a atenção, afastando-nos das redes sociais e da obsessão pelo fact-checking, para focarmos nas histórias daqueles que permanecem à margem. Ao integrá-los nas narrativas, podemos evitar que figuras como Trump ou Le Pen criem um "público", reconhecendo que, para os apoiantes do Trump, a questão vai além do salário; é também uma questão de humilhação. Trata-se de uma sensação de perda de dignidade e reconhecimento.

As nossas narrativas, precisam, portanto, de ir mais além das divisões económicas, culturais e geográficas. As narrativas são como fios que tecem a experiência humana, enquanto os factos, por mais rigorosos que sejam, raramente têm o poder de atravessar as muralhas emocionais ou os preconceitos que estão profundamente enraizados. Recordar, por exemplo, que a Administração Biden não só aumentou os salários e alcançou o pleno emprego, como também foi das mais bem-sucedidas no combate à inflação. Que Biden tentou reorientar o Partido Democrata na direção da classe trabalhadora, outrora a sua coluna vertebral, e que Kamala, apesar das perceções, evitou fazer campanha em função da sua identidade. Mas que apesar de tudo isto, a maioria dos cidadãos está convicto do contrário. A construção de milhares de habitações ou o aumento exponencial dos salários não teriam, certamente, sido suficientes para que muitos cidadãos acreditassem mais em Kamala do que em Trump.

São, portanto, necessárias respostas concretas para convencer muitos cidadãos que estão de facto a ser ouvidos. Para perceberem que o bem-estar económico e social – pelo menos da maioria – não se pode materializar sem uma democracia liberal, pluralista e transparente. Isto implica que nos próximos quatros anos, tanto os americanos como os europeus, terão de ser capazes de imaginar novas formas de chegar aos cidadãos. De responder a uma forma de fazer política que não compreendemos.

O grande paradoxo da democracia é que proporciona aos seus inimigos as ferramentas para a sua própria destruição. Mas ainda vamos a tempo de resgatar a democracia liberal da implosão se nos centrarmos no concreto, se formos capazes de explicar que a economia mundial não está a proporcionar a segurança e prosperidade partilhada esperadas pelas nossas sociedades – algo que se reflete numa perda generalizada de confiança nas elites – e o que estamos a fazer para alterar essa realidade.

Precisamos de empregos que devolvam a dignidade, já que populismo floresce em terrenos de desigualdade e precariedade. O mercado de trabalho não deve ser uma mera fonte de rendimentos ou segurança económica, mas um espaço onde as pessoas possam encontrar propósito, um sentido de pertença. A saúde, por sua vez, deve ser acessível a todos, cortando de raiz o terreno fértil para a demagogia, que se alimenta da desigualdade no acesso aos serviços essenciais, cultivando divisões entre alegados "privilegiados" e "não privilegiados".

É imperativo, também, que a economia não apenas pareça justa, mas que realmente o seja. Os populistas exploram como ninguém as disparidades de um sistema global onde a riqueza se concentra nas mãos de uma minoria, de uma elite. Precisamos de mais do que uma economia de mercado. Precisamos de um sistema que promova o bem-estar comum, que invista na redistribuição de recursos através da justiça fiscal, na criação de empregos sustentáveis e em redes de segurança social eficazes.

Além disso, é crucial resistir à tentação de combater o radicalismo com mais polarização. As políticas devem centrar-se naqueles que sentem que o sistema os deixou para trás, oferecendo soluções reais em vez de promessas vazias. Enfrentar à combinação tóxica de raiva racial e económica de muitos homens brancos uma narrativa exclusivamente contraditória, não parece estar a ter êxito, antes pelo contrário.

Por fim, não basta elaborar políticas; é essencial repensar as histórias que escolhemos contar. Precisamos de algo mais profundo do que slogans: um propósito que nos una. A verdadeira democracia exige narrativas mais complexas, que reflitam as múltiplas vozes e experiências que compõem a sociedade. Exige uma nova narrativa que valorize a inclusão, o respeito pela diferença e a solidariedade — não como conceitos abstratos, mas como valores que devem orientar as nossas práticas políticas e sociais. A resposta ao populismo não está em replicar as suas fórmulas simplistas, mas em oferecer uma alternativa concreta que vá ao encontro das necessidades das pessoas e que possa restaurar a confiança nas instituições.

Uma alternativa que tem de ser autêntica, nítida, clara e transmitida diretamente aos cidadãos, encontrando novas formas de comunicação – podcasts, influenciadores, talk shows – que sejam entendíveis, que sejam persuasivas, que afetem a sua vida, todos os dias.

Ao final destes quatro anos, não serão os autocratas, não serão os oligarcas, não serão os plutocratas que determinarão o nosso destino. Será aquilo que fizermos com o tempo que nos foi dado e a forma como comunicarmos com os cidadãos. Como disse Albert Camus, a verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente. É na ação presente, na coragem de enfrentar a incerteza, que reside o verdadeiro progresso. Nas democracias, a mudança só parece tornar-se urgente quando uma crise existencial bate à porta. Não se ganham votos com medidas preventivas, não se constroem carreiras políticas com medidas impopulares. O futuro, sempre eminente, dissolve-se nas preocupações do presente, levando-nos a adiar o inevitável, até que a catástrofe se torna visível, e a procrastinação, insuportável.

No último artigo desta série, vamos examinar as repercussões da eleição de Donald Trump, tanto para os Estados Unidos como para a Europa, analisando como o seu triunfo exacerbou divisões sociais e políticas, previsivelmente enfraquecerá as instituições democráticas e desafiará os alicerces da ordem política tradicional, alterando o rumo das democracias ocidentais.

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