O mundo não pode continuar a dar-se ao luxo de depender de lideranças que tropeçam de crise em crise, cegas a qualquer horizonte que ultrapasse a urgência do momento. Compete a americanos e europeus começar a dar pequenos passos na direção certa
Donald Trump não é um parêntesis, mas o prelúdio de uma era em que o caos, a fragmentação e o culto à irracionalidade se impõem. A Ucrânia não pode ser um eco que se apaga. Gaza, um abismo que preferimos ignorar. A Europa, um continente sonâmbulo que se recusa a acordar. A sua eleição marca um ponto decisivo na geopolítica mundial, acelerando o enfraquecimento da ordem liberal e agravando a insegurança europeia. As capitais e instituições europeias há meses que preparam o seu regresso, mas ninguém está preparado para o que aí vem – da energia ao comércio, das alterações climáticas à saúde. A política de Trump define-se pela contradição.
Para a Europa, os principais desafios, além da instabilidade política e económica, serão a capacidade dos líderes europeus para chegar a consensos, a ameaça crescente da Rússia e a hostilidade do Presidente-eleito dos Estados Unidos face à NATO. Necessariamente, a indisponibilidade de Trump para liderar o Ocidente enfraquecerá a unidade transatlântica e forçará a União Europeia a assumir a sua própria segurança e defesa, sendo também uma oportunidade para demonstrar ser um aliado fiável e autónomo. Convém lembrar que os estados-membros estão a investir, coletivamente, mais de 2% do seu PIB em defesa, e que países como a Polónia ou a Estónia estão a destinar uma proporção maior do seu PIB do que os próprios Estados Unidos. Assim como que desde fevereiro de 2022, a União Europeia ter proporcionado à Ucrânia quase 109 mil milhões de dólares em ajuda militar, financeira e humanitária.
Tudo isto num cenário internacional complexo. O regresso da política “America First” não será certamente bem recebido pela China, que durante o primeiro mandato de Trump respondeu de forma hesitante. Desta vez, esperam-se retaliações tarifárias que prejudiquem empresas americanas e reforcem a posição doméstica da China, apoios às empresas e consumidores chineses para mitigar os efeitos de uma nova guerra comercial, assim como a diversificação e fortalecimento de laços económicos com parceiros internacionais. Na Europa, a tensão entre a necessidade de uma autonomia estratégica e o peso da aliança transatlântica está longe de ser resolvida, enquanto as crises regionais, da Moldávia à Geórgia sublinham as vulnerabilidades expostas pela invasão da Ucrânia. No Pacífico, a tensão em torno de Taiwan ilustra o equilíbrio instável entre os Estados Unidos e a China, uma dinâmica que definirá a ordem global.
A juntar a tudo isto, as incertezas económicas agravam um cenário já volátil, que só piorará com pressões inflacionárias, ausência de cooperação global e com a paulatina deslegitimação das organizações internacionais, com a mais que provável saída imediata dos Estados Unidos da Organização Mundial de Saúde e do Acordo de Paris.
Neste sentido, o verdadeiro impacto de Trump será avaliado pela capacidade das democracias liberais para responderem às circunstâncias. A forma como o fizerem determinará, a curto prazo, o futuro da Ucrânia e de Gaza. A médio prazo, o equilíbrio de poder global. A longo prazo, o futuro da democracia liberal. A relação transatlântica enfrenta divisões profundas, com ameaças de tarifas e exigências de maior investimento em defesa por parte da Administração Trump.
Nesta equação, defender a Ucrânia não é apenas uma questão de segurança, mas também um exemplo vivo de resistência contra a tirania, em defesa dos valores que fazem a Europa valer a pena ser defendida. Os líderes europeus devem deixar claro que rejeitarão qualquer tentativa de Trump em forçar a Ucrânia a aceitar um cessar-fogo que não assegure os seus interesses, comprometendo-se a fornecer o material militar necessário para conter os avanços russos. A recente de decisão de contrair 50 mil milhões de dólares contra receitas futuras provenientes de ativos russos congelados, para garantir apoio à Ucrânia em 2025, assinala que a União Europeia não está disposta a abandonar um Estado candidato – e europeu – à sua sorte.
Mesmo com um possível cessar-fogo entre Moscovo e Kiev, a União Europeia permanecerá sob ameaça, algo inédito desde o fim da Guerra Fria. A invasão da Ucrânia dissipou qualquer ilusão de segurança, obrigando os europeus a redefinir as suas prioridades. De Lisboa a Helsínquia, os líderes europeus são conscientes que os custos da guerra vão muito além do conflito, incluindo a reconstrução e o reforço das capacidades defensivas da União. Será necessário, também, que os cidadãos europeus percebam que Putin não só desafia as democracias ocidentais que se aproximam da sua esfera de influência, como também se intromete nos processos internos, promovendo líderes alinhados com os seus interesses.
A sobrevivência da Ucrânia vai depender da capacidade e vontade dos europeus de a defenderem. E de os lideres europeus perceberem que quererá Trump em troca para continuar a apoiar a NATO, numa nova realidade na qual as alianças são transacionais e os Estados Unidos são, de facto, uma potência revisionista. Uma solução rápida para o conflito na Ucrânia, como prometido por Trump, não será nem fácil nem provável, e será sempre um cessar-fogo, não um acordo de paz, à semelhança do que aconteceu noutras regiões da antiga União Soviética.
Sobre Gaza, a UE tem poder económico para convencer Israel, sendo o seu maior parceiro comercial, que as recorrentes violações do direito internacional não podem continuar a ocorrer, podendo optar, como de facto o fizeram Espanha, a Noruega e a Irlanda, pelo reconhecimento formal da Palestina como Estado, sem que isto possa ser entendido como uma legitimação do que aconteceu no dia 7 de outubro de 2023.
O silêncio, como defende David Grossman, é impensável.
O futuro da democracia – neste caso, americana – decorrerá da capacidade dos seus cidadãos de não cederem à indiferença. A Constituição prevê várias barreiras para prevenir o autoritarismo, mas as mesmas só são eficazes quando os cidadãos resistem. O pior inimigo não será Trump, mas sim o desânimo, a autocensura e o medo. Dependerá, também, da clarividência do Partido Democrata para construir uma alternativa – começando por aceitar que a identidade não determinará o seu destino político e que será preciso convencer, não distribuir sermões. A vitória de Trump exige uma reflexão profunda sobre a necessidade de reconstruir pontes com os eleitores – uma reflexão que deve ir além da economia, mas que não a pode desvalorizar.
Na Europa, os desafios não serão menores e poderemos estar perante uma convergência de crises. O nacionalismo e o culto ao líder regressaram. Uma economia estagnada. Crises políticas na Alemanha e na França. Normalização da extrema-direita, desde a Hungria a Itália, com o fantasma de Marine Le Pen no horizonte. Manter-se-ão as democracias unidas? À medida que a segurança antes garantida pelos Estados Unidos se torna mais cara – ou desaparece – a União Europeia terá de se tornar mais forte, mais resiliente e mais autónoma em matéria de segurança e defesa, o que poderá ter custos sociais que terão de ser bem explicados aos cidadãos. Contra o pessimismo militante, recordar que o seu êxito sempre foi o resultado de uma negociação constante, não de um destino inevitável, contruído não ignorando o passado, mas sim tornando possível um futuro comum no qual a divisão será sinónimo de irrelevância.
Vivemos hoje, querendo ou não, uma crise existencial. O mundo não pode continuar a dar-se ao luxo de depender de lideranças frágeis que tropeçam de crise em crise, cegas a qualquer horizonte que ultrapasse a urgência do momento. Compete, portanto, a americanos e europeus começar a dar “pequenos” passos na direção certa. Começando por não deixar cair a Ucrânia. Por não fechar os olhos à situação em Gaza.
E por começar, finalmente, a governar com os olhos bem abertos.