Este sábado, milhares de soldados norte-americanos vão desfilar em Washington DC para marcar os 250 anos das Forças Armadas dos EUA - e o aniversário do presidente, que completa 79 anos. O evento está a ser criticado pelas semelhanças com regimes militarizados como a Coreia do Norte e a China, numa altura em que a administração Trump também está sob escrutínio por medidas "contrárias à Constituição" para reprimir os protestos em Los Angeles contra as suas duras políticas anti-imigração, recorrendo a forças militares
Comecemos pelo que ainda não aconteceu – a parada militar de celebração do 250.º aniversário das Forças Armadas dos Estados Unidos da América, que não por acaso vai coincidir com o 79.º aniversário do presidente e comandante supremo dos militares, Donald Trump, este sábado, 14 de junho.
Com um custo previsto de até 45 milhões de dólares, segundo a Reuters, e ainda sujeita a possíveis alterações, a parada militar, na sua forma e conteúdo, não encontra precedentes nas últimas décadas. A última vez que os EUA foram palco de um desfile similar foi em 1991, quando tanques e tropas desfilaram por Washington para celebrar o fim da primeira guerra do Golfo, com a expulsão do exército iraquiano de Saddam Hussein do Kuwait.
Desta vez, cerca de 6.600 soldados vão marchar no National Hall a partir das 18:30 locais (23:30 em Lisboa), acompanhados de 150 veículos do exército, 50 aviões da Força Aérea, 28 tanques M1 Abrams de 60 toneladas cada e veículos de combate M2 Bradley, sete bandas militares, 250 novos recrutas a prestar juramento à bandeira e vários pára-quedistas que, dos céus, trarão uma bandeira da América para entregar ao seu comandante supremo.
Algumas ruas da capital americana, noticia o Washington Post, poderão estar fechadas ao longo dos próximos quatro dias por causa da parada, que está envolta em fortes medidas de segurança, incluindo uma vedação de aço de quase 30 quilómetros e 175 detetores de metais instalados em checkpoints.
Os organizadores dizem esperar pelo menos 200 mil pessoas no centro de Washington DC. É possível que nunca se venha a saber quantos dos participantes terão respondido ao anúncio publicado no Craigslist na quarta-feira de manhã, em busca de "ocupantes de lugares e figurantes" que "disponibilizem o seu tempo para maximizar o espaço e a perceção da assistência", em troca de 1.000 dólares em bitcoin.
O evento para comemorar o aniversário redondo das forças militares norte-americanas estava em preparação desde antes da eleição de Donald Trump. Mas com a vitória do republicano em novembro, a parada ganhou outras proporções, atraindo críticas sobre a “demonstração de poder autoritário” pouco condizente com a tradição dos EUA e mais próxima de regimes altamente militarizados como a Coreia do Norte, o Irão ou a China.
Mais de 1.500 manifestações batizadas “Sem Reis” estão planeadas para várias partes dos EUA no mesmo dia, embora os organizadores tenham garantido que não vão realizar eventos em DC, em parte para evitar confrontos diretos, depois de o presidente ter avisado que qualquer manifestante que atrapalhe a sua parada “enfrentará muita força”.
Entre os críticos conta-se o governador da Califórnia, Gavin Newsom, há vários dias numa acesa troca de farpas com Trump, desde o início dos protestos em Los Angeles contra a atuação da agência anti-imigração (ICE), que levaram o governo federal a mobilizar 4 mil membros da Guarda Nacional e a destacar 700 fuzileiros navais para controlar a população em protesto.
“Todos sabemos que, este sábado, [Trump] vai dar ordens aos nossos heróis americanos – os militares dos Estados Unidos – obrigando-os a fazer uma exibição vulgar para celebrar o seu aniversário, tal como outros ditadores falhados fizeram no passado”, afirmou Newsom.
“O desfile em DC foi capturado por ele para se transformar noutra demonstração dos seus movimentos fascistas, o que é muito preocupante, no meio de muitas outras ações presidenciais preocupantes”, diz à CNN Portugal Paul Beck, professor emérito de Ciência Política da Universidade Estatal do Ohio.
Como ressalta o canal britânico Sky News, nem todos os países que realizam paradas militares são necessariamente autoritários. Mas o facto de esta coincidir com um momento de “ferro e fogo” em L.A., e com as “muitas outras ações presidenciais preocupantes” citadas por Beck, tem alimentado comparações a Estados “fascistas” e críticas, inclusive vindas de dentro do Partido Republicano.
Violações da Constituição – e o que está por vir
Com a Califórnia a ferver, e em mais um passo equiparado ao de regimes autoritários, há alguns dias o senador democrata Alex Padilla foi algemado e forçado a deitar-se no chão por questionar a secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, sobre as decisões do governo federal para travar manifestantes em larga medida pacíficos. Um juiz chegou a declarar que a Guarda Nacional só pode ser colocada sob controlo federal em casos de “rebelião”, acrescentando que os protestos em curso “estão muito aquém” desse cenário. Mas em menos de 24 horas, um tribunal de recurso suspendeu essa decisão até nova audiência, marcada para a próxima semana.
“Os protestos parecem ser menores, não violentos e muito localizados em L.A.”, ressalta Paul Beck. “Penso que se trata de uma ‘crise’ que Trump queria para poder reforçar a sua posição anti-imigração, entregando as deportações a Stephen Miller, em mais um passo perigoso rumo ao fascismo, desta vez utilizando o poder da presidência.”
Numa análise recente intitulada “Protestos contra as deportações em massa de Trump podem remodelar a política dos EUA”, o editor de política nacional da CNN destaca que a continuação, ou não, do status quo beligerante em partes da América vai depender das próximas cartadas quer das autoridades federais, quer das autoridades locais.
“Questões de imigração já funcionaram a favor de Trump muitas vezes – mas o risco aqui é que Trump esteja a incitar uma crise que pode espalhar-se, sair do controlo e custar vidas”, escreve Stephen Collinson. “Donald Trump pode mesmo desejar governar uma autocracia, mas não está claro se a maioria dos americanos deseja viver nessas condições. E se manifestantes, agentes da polícia e soldados forem feridos na violência que exacerbou, a culpa é dele.”
Antes da decisão e contra-decisão judicial sobre o destacamento de forças militarizadas para L.A., uma série de notícias veio baralhar ainda mais os cenários de futuro. Por um lado, o Washington Post noticiou que “a administração está a preparar-se para enviar milhares de estrangeiros para o infame centro de detenção da Baía de Guantánamo, incluindo pessoas do Reino Unido, França e Itália, sem intenção de notificar os seus governos de origem” – abrindo mais uma frente conflito com os aliados. Por outro, o próprio presidente deu a entender que, em breve, poderá rever algumas das suas duras políticas de imigração, em resposta às crescentes preocupações nos setores da agricultura e serviços sobre a escassez de mão de obra causada pela sua postura agressiva.
“Os nossos grandes agricultores e as pessoas que trabalham no setor da hotelaria e do lazer têm afirmado que a nossa política muito agressiva em matéria de imigração lhes está a retirar trabalhadores muito bons e de longa data, sendo quase impossível substituir esses empregos”, escreveu Trump. “Em muitos casos, os criminosos autorizados a entrar no nosso país pela política MUITO estúpida de Biden de fronteiras abertas estão a candidatar-se a esses empregos. Isto não é bom. Temos de proteger os nossos agricultores, mas temos de tirar os criminosos dos EUA. As mudanças estão a chegar!”
Sendo uma rara admissão do impacto nocivo das políticas anti-imigração na economia, não se conhecem ainda quaisquer detalhes sobre as “mudanças” prometidas, e as atenções continuam focadas nos acontecimentos já em curso na Califórnia, onde as detenções e a repressão estão longe de se concentrar nas pessoas em situação ilegal. “Com L.A., a administração Trump está a dar o seu próximo passo anti-imigração, detendo qualquer pessoa que se pareça com um imigrante”, diz Beck. “Não se concentram especialmente nos criminosos, pois parecem estar a reunir qualquer pessoa a quem possam deitar as mãos – indo aos seus locais de trabalho, escolas, etc. E com a federalização da Guarda Nacional da Califórnia e o destacamento de 700 fuzileiros navais, a administração também está a usar os militares para aplicar a lei local – o que viola a Constituição.”
Na sua análise à atual situação na Califórnia, Stephen Collinson traça um paralelismo com um evento não muito distante. “Trump perdeu após o seu primeiro mandato porque piorou uma crise – a pandemia. A história pode repetir-se – e assim que os presidentes perdem a confiança do público, tendem a descobrir que é impossível recuperá-la.” E o “ponto de ruptura pode ocorrer se as expulsões [de imigrantes] se ampliarem” nas próximas semanas e meses.
“Sondagens recentes mostram que, embora os americanos apoiem as deportações e uma política de fronteira mais rigorosa, não concordam necessariamente quando amigos, vizinhos e outros membros cumpridores da lei da comunidade são afetados”, escreve o correspondente da CNN internacional. “No primeiro mandato de Trump, a política de tolerância zero de separar crianças migrantes dos seus pais causou furor público, resumido na expressão ‘crianças em jaulas’. A maioria dos observadores políticos acredita que o país acertou em cheio na questão da imigração devido ao desempenho infeliz do governo Biden na fronteira sul [com o México]. Mas uma imagem pungente que resuma crueldade ou incompetência ainda pode abalar a credibilidade de Trump.”