Trump proclama-se protegido por Deus - mas não apresentou provas disso. Ficou é provado que se tornou deus do partido

19 jul 2024, 13:22

Depois de levar o tiro, Trump prometeu "curar a discórdia" e unir o país. Mas acaba de fazer um discurso longuíssimo carregado de declarações enganosas ou falsas sobre catástrofes iminentes. Se isso uniu o país é algo que está por ver, mas uniu definitivamente o Partido Republicano

Foram 91 minutos de discurso ininterrupto, sob repetidos aplausos de uma plateia emocionada, que arrancou com uma descrição detalhada do atentado que sofreu há menos de uma semana mas que depressa se transformou numa panóplia de ataques a críticos e opositores sob uma latente ameaça de colapso, salpicada com a necessidade de "curar a discórdia e a divisão na sociedade americana".

Quando, no sábado, foi alvejado na orelha durante um comício de campanha na Pensilvânia, Donald Trump prometeu que ia alterar o discurso pré-preparado para a Convenção Nacional Republicana, onde na noite passada aceitou oficialmente a nomeação do partido para as presidenciais. Mas chegada a hora de agitar as hostes, o empresário que ocupou a presidência dos EUA entre 2016 e 2020 rapidamente regressou à retórica que o tem definido ao longo dos últimos oito anos, dentro e fora da América, carregado de declarações enganosas ou falsas sobre catástrofes iminentes.

“Somos uma nação em declínio sob a atual administração”, declarou Trump numa das inúmeras críticas a Joe Biden, a dada altura apoiado por gritos de “Luta! Luta! Luta!” dos seus apoiantes. “Temos uma crise de inflação que está a tornar a vida incomportável, a devastar os rendimentos das famílias trabalhadoras e de baixos rendimentos e a esmagar o nosso povo. Também temos uma crise de imigração ilegal, uma invasão em massa da nossa fronteira sul que está a espalhar a miséria, o crime, a pobreza, doenças e a destruição das comunidades por todo o nosso país. Temos uma crise internacional como o mundo raramente viu, guerras na Europa e no Médio Oriente, um crescente espectro de conflito a pairar sobre Taiwan, Coreia, Filipinas e toda a Ásia e o nosso planeta está à beira da III Guerra Mundial, que vai ser uma guerra como nenhuma outra.”

Trump está a capitalizar as pressões sobre Joe Biden para que desista da corrida desde o famigerado primeiro debate dos candidatos à presidência, no final de junho foto AP

Este excerto do longo discurso de quase hora e meia de Trump sumariza bem o seu conteúdo: economia, imigração e política externa, os temas que mais preocupam o eleitorado norte-americano e que agora unem todo o Partido Republicano. Se em 2016, quando foi confirmado pela primeira vez como o candidato conservador à Casa Branca, só angariava o apoio de um punhado de entusiastas entre as fileiras de topo republicanas, esta semana provou que já domina todo o partido (e também que a era do Reaganismo, com as suas políticas intervencionistas, teve finalmente o seu funeral).

Uma prova: há alguns meses, quando ainda tentava disputar a nomeação republicana, Nikki Haley destacou várias vezes que “muitos dos mesmos políticos que agora apoiam publicamente Trump temem-no em privado” – mas no Milwaukee foi uma de muitos na procissão de seguidores do ex-presidente, o primeiro candidato nomeado três vezes por um dos dois grandes partidos dos EUA desde Richard Nixon na década de 1970. Outra prova: entre os fiéis contou-se aquele que Trump escolheu para seu vice-presidente, o senador JD Vance, que há alguns anos se declarava “um gajo nunca-Trump” e classificava o candidato como “um imbecil igual a Nixon”, um “Hitler americano” e um “idiota” que era “inapto para a presidência”.

Trump, JD Vance e as suas respetivas famílias no encerramento da Convenção Nacional Republicana foto Jae C. Hong/AP

Levantar do véu

Longínquas parecem estar as memórias da queda em desgraça de Trump quando abandonou a Casa Branca em janeiro de 2021, no rescaldo do ataque ao Capitólio e sob acusações de variados crimes federais. Primeiro candidato à presidência condenado por um crime grave, a sorte do ex-chefe de Estado não se esgotou quando, há seis dias, moveu a cabeça escassos milímetros para o lado no milissegundo em que uma das balas foi disparada contra ele – a diferença entre levar com ela no cérebro e morrer ou, como foi o caso, ser atingido de raspão na orelha.

Perante centenas, senão milhares, de apoiantes com enormes compressas brancas a tapar as suas orelhas, um Trump de orelha tapada declarou na convenção a uma audiência eletrificada: “Não era suposto estar aqui esta noite. Estou aqui hoje nesta arena apenas pela graça de Deus todo poderoso.”

Um dia antes do ataque, outro golpe de sorte tinha agraciado Trump na forma de uma sentença de um tribunal federal da Flórida a anular um dos casos que ainda pendiam sobre ele, relacionado com a retirada ilegal de documentos confidenciais quando abandonou a Casa Branca. A procuradoria-geral foi rápida a garantir que vai pedir recurso. E Trump foi igualmente rápido a declarar que esta foi “apenas a primeira” de uma série de decisões que vão pôr fim à “caça às bruxas” de que diz ser vítima há vários anos.

Tudo isto aconteceu sob o que muitos dizem ser uma sorte para Trump: o facto de Joe Biden, o seu rival democrata, continuar debilitado e sob pressão para se deixar substituir por outro candidato, numa altura em que as sondagens indicam que, ao contrário de há quatro anos, deverá ser derrotado se permanecer na corrida.

“Trump abandona a convenção no Milwaukee mais forte do que parecia possível há apenas alguns meses”, escreve a revista Economist. “Os casos judiciais que enfrenta já não o ameaçam, o seu partido está-lhe subjugado, as sondagens prometem uma limpeza [republicana] do Congresso e da Casa Branca. E entretanto, o Supremo Tribunal reduziu o controlo jurídico da presidência e restringiu a liberdade das agências federais.”

Traduzido por miúdos: Trump está em rota para voltar a dominar a política americana e essa perspetiva é, aponta a mesma revista, “preocupante para aqueles que, como esta publicação, acreditam que a política externa deve ser mais do que transacional, que o comércio internacional estimula a produtividade e que a imigração é uma fonte de renovação e vitalidade – mas é isso que, cada vez mais, parece ser o futuro da América do mundo”.

Do lado esquerdo, a imagem da Getty Images mal Trump foi baleado na orelha; do lado direito, a imagem que correu mundo, "um momento criado por uma ex-estrela de um reality show" que "sabe que os media vão sucumbir a fazer desta a fotografia icónica do evento"  foto Getty Images e AP)

Mais do que nunca, Trump soma e segue com a manipulação das emoções mais primitivas dos americanos. Veja-se a fotografia que os media mais destacaram do ataque que sofreu, alvo de análise e comparação no Instagram pelo famoso fotógrafo Pete Souza: "Na imagem da Anna [Moneymaker, fotógrafa da Getty Images], vemos um grande plano extraordinário de Trump com o sangue a escorrer pelo seu rosto. O drama do que acabara de acontecer está todo ali, em toda a sua crua realidade. Em contrapartida, a primeira fotografia é um momento criado por uma ex-estrela de um reality show [quando] já tinham passado muitos minutos do tiroteio. [Foram] os instintos dele que nos deram essa imagem. Ele sabe que as pessoas vão adorar. Sabe que os media (a quem chama inimigos do povo mas que, na realidade, deseja que gostem dele) vão sucumbir a fazer desta a fotografia icónica deste evento. Estava certo. Foi isso que fizeram".

Ao encerrar o discurso desta madrugada, como um pastor evangélico perante um rebanho de fiéis em delírio, Trump garantiu que “nada nos vai fazer recuar, nada nos vai atrasar e ninguém nos vai parar”.

“Independentemente dos perigos que surjam no nosso caminho, independentemente dos obstáculos, continuaremos a lutar pelo nosso destino partilhado e glorioso – e NÃO FALHAREMOS. Juntos vamos SALVAR ESTE PAÍS, vamos restaurar a República e vamos dar início aos ricos e maravilhosos amanhãs que o nosso povo realmente merece.”

E.U.A.

Mais E.U.A.
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