"Ao contrário da primeira vitória dele - vista como uma falha no sistema, no contexto do progresso para um mundo mais liberal, para o fim das guerras e por aí fora - esta eleição atinge duramente a ideia de um futuro diferente e, na verdade, desafia o próprio modelo europeu de valores"
Foi com uma enorme margem nacional que Donald Trump, o 45.º presidente da América, abriu caminho para se tornar no 47.º presidente da América – e o facto de ser o primeiro desde 1892 a conquistar um segundo mandato não-consecutivo, e de estar em rota para se tornar o primeiro republicano a ganhar o voto popular em duas décadas, só começa a descrever o quão histórica esta sua eleição será vista no futuro.
No rescaldo da contagem de votos que garantiu a sua vitória sobre a democrata Kamala Harris, várias análises focaram uma ideia que analistas ouvidos pela CNN Portugal também destacam: o primeiro mandato de Trump até pode ter sido descartado como um acaso, uma aberração ou um “erro terrível”, como Joe Biden chegou a dizer quando derrotou o rival republicano em 2020, mas um segundo mandato Trump prova que essa ideia não corresponde à realidade. E isso terá muito impacto no resto do mundo, em particular na Europa.
“Penso que, ao contrário da primeira vitória dele – que foi vista como uma falha no sistema, no contexto do progresso para um mundo mais liberal, para o fim das guerras e por aí fora – esta eleição atinge duramente a ideia de um futuro diferente e, na verdade, desafia o próprio modelo europeu de valores, a par do seu modelo económico e do seu modelo de defesa, tudo está realmente em jogo neste momento”, diz Victor Warhem, do Center for European Policy (CEP). “Esta nova vitória de Trump marca uma nova crise existencial para a União Europeia e não devemos subestimar o seu impacto. Não creio que isto seja um novo 2016: estamos em 2024 e creio que é muito pior.”
Ao longo da campanha, com as sondagens taco a taco nos estados mais decisivos, uma nova vitória de Trump parecia ser o pior cenário possível. Mas chegados à manhã de quarta-feira em Lisboa, o pior estava confirmado – como refere a revista New Yorker, a eleição de “um criminoso condenado, um mentiroso crónico que geriu mal uma pandemia mortal única num século, que tentou anular as últimas eleições e desencadeou uma invasão violenta do Capitólio, que chama à América ‘um caixote do lixo do mundo’ e que ameaça retaliar contra os seus inimigos políticos”.
Tudo isto está agora no horizonte dos EUA e, fora do país, o cenário é igualmente soturno, em particular numa Europa muito dividida desde o primeiro mandato de Trump. “Esta eleição representa um grande desafio para todos os europeus e há muito a fazer, porque não estamos de acordo em tudo, enfrentamos muitas novas divisões, e os países tentarão manter relações com os Estados Unidos talvez até à custa de alguns países vizinhos”, destaca Warhem. “No longo prazo, e até talvez no médio prazo, estou muito preocupado. Preocupa-me que Trump possa trazer ainda mais divisões entre os europeus e que a Europa não seja capaz de encontrar as soluções necessárias para resistir a esta mudança, para responder às ameaças e para proteger ao máximo aquilo que consideramos ser o melhor para o mundo – porque é suposto a UE ser um modelo para o mundo.”
Este é precisamente um de dois riscos que Ricardo Borges de Castro, analista do European Policy Center (EPC), também destaca no rescaldo imediato da vitória de Trump nos EUA. “Temos de perceber se a eleição de Trump vai fomentar mais integração europeia ou desintegração”, diz o especialista em assuntos europeus e internacionais à CNN. “As ameaças recentes têm dado origem a mais integração, mas entre os 27 Estados-membros – especialmente entre a direita conservadora e radical – há líderes que não veem Trump, que à sua maneira é um eurocético, como uma ameaça mas sim como um aliado” (veja-se quem foi o primeiro líder europeu a dar os parabéns a Trump pela sua vitória, ainda a vitória não tinha sido oficialmente confirmada.)
América volta aos anos 1920, e a UE?
Há quem argumente que a era Trump, agora firmada com o segundo mandato que vai inaugurar a 20 de janeiro do próximo ano, não é uma novidade. Veja-se a análise da Economist, que traça paralelismos com a América pré-Franklin D. Roosevelt (1933-45). “Nalguns aspetos, a era Trump é muito moderna. Foi possível graças às mudanças tecnológicas e à fragmentação dos meios de comunicação social, numa altura em que é difícil distinguir o Direito da política e a política do entretenimento”, escrevia a revista ontem. “Mas é também um regresso a uma ideia antiga da América, antes de a luta contra o fascismo ter convencido FDR de que era do interesse do seu país ajudar a trazer ordem e prosperidade ao mundo, [quando] o país era hostil à imigração, desdenhoso do comércio e cético em relação a interferências no estrangeiro. Nas décadas de 1920 e 1930, isso conduziu a tempos negros – isso pode voltar a acontecer.”
Neste cenário, defende Victor Warhem, “este será talvez o melhor momento para os europeus criarem o que é preciso para proteger a democracia liberal, as proteções sociais, o respeito pelos direitos humanos, a igualdade, mais igualdade do que no resto do mundo”. Mas não é certo se o conseguirão fazer. “A eleição de Trump traduz uma ideia de que os países podem safar-se sem Estado social, fazendo bullying aos demais, com uma abordagem muito pouco realista das relações internacionais, e esse é o maior desafio ao modelo europeu e à visão europeia de futuro – nesse sentido, estamos diante de um momento histórico, estamos a entrar numa nova ordem mundial.”
E dadas as promessas de Trump ao longo da campanha, muitas delas em tudo semelhantes às que o conduziram à sua primeira vitória em 2016, a Europa tem de se preparar para o que aí vem – a começar pela questão da guerra da Ucrânia, que deixou ainda mais a descoberto uma das maiores vulnerabilidades da UE, concretamente em termos de capacidades de defesa e segurança, e a sua enorme dependência dos EUA.
Para Borges de Castro, esse é “o primeiro risco que salta à vista” no rescaldo destas eleições. “A futura arquitetura de segurança europeia é uma questão existencial para a UE, mas é transacional para Trump. Se ele impuser uma paz injusta e podre à Ucrânia, perdem os ucranianos e perdem os europeus, caso não consigam evitá-lo.”
“O futuro que nos espera pode ser bem diferente e isso também se aplica à geopolítica, pode haver problemas no horizonte”, adianta Victor Warhem. “Não fazemos ideia de como é que Trump vai gerir estas guerras, quer na Ucrânia quer no Médio Oriente, não sabemos se vai sair-se melhor do que Biden se saiu ou do que Harris poderia ter feito – existe esta espécie de otimismo quanto à sua capacidade de fechar acordos para acabar com as guerras, mas não estou seguro disso, as coisas podem ficar bem piores.”
"O momento em que conseguimos algo ambicioso"?
Como em 2016, Trump promete impor tarifas a todo e qualquer bem importado à Europa, pelo que se antecipa uma potencial guerra comercial em moldes impossíveis de prever de antemão, considerando a notória postura errática e impulsiva do empresário tornado político. Sob a famosa promessa de “drill, baby, drill” e vários na sua equipa investidos em acabar com o Inflation Reduction Act (IRA) de Biden – que já tinha causado incómodo entre os europeus dado o seu cariz protecionista, mas que inclui várias medidas para a transição energética que a UE queria implementar a par e passo com os EUA – é seguro antecipar que a aposta nas energias verdes não vai acontecer nos próximos quatro anos. E face aos riscos de menos regulação financeira no mercado americano, é incerto que impacto isso poderá ter nas vidas, e nos bolsos, dos europeus.
“Vamos ter uma guerra comercial contra Trump e temos muitas razões para estar preocupados quanto ao resto, da mesma forma que não há certezas sobre qual será a resposta europeia”, ressalta Warhem. “Não sabemos se conseguimos substituir os americanos em termos de trocas ou de apoio financeiro, neste momento parece muito improvável, especialmente em termos de defesa… E tudo isto é muito importante se se olhar para os EUA e para a China – como conseguiremos resistir à sua hegemonia tecnológica e económica, que está a acontecer também à custa dos europeus?”
Já depois de terem dado os parabéns a Trump pela sua vitória, reafirmando o desejo de “continuar a trabalhar em conjunto”, os líderes da Alemanha e de França falaram na quarta-feira para coordenarem a sua postura face ao regresso do republicano à Casa Branca. No rescaldo da conversa, noticiou a Reuters, Olaf Scholz disse aos jornalistas que “a UE tem de se manter unida e agir de forma concertada” e Emmanuel Macron escreveu na rede social X que Paris e Berlim vão trabalhar por uma Europa forte neste “novo contexto”.
Foi mais um indicador do quão preocupados os europeus estão, no que Victor Warhem vê, apesar de tudo, também como uma oportunidade. “Este é um momento de profunda crise existencial, mas também pode ser um momento em que, finalmente, conseguimos resolver os nossos problemas, quanto ao orçamento, à defesa, ao comércio, ao ambiente”, refere o analista do CEP. “Pode ser o momento em que conseguimos algo ambicioso que nos mantenha unidos enquanto europeus. Porque este é um desafio à unidade europeia e à prosperidade europeia – é isso que Trump vai desafiar.”