O atentado pode colocar "as portas da Casa Branca escancaradas" para Donald Trump, mas oferece uma 'vitória' a curto prazo a um Joe Biden que continua a cair nas intenções de voto
“Honestamente, vai ser um discurso completamente diferente”, anunciou Donald Trump na sua primeira entrevista desde o atentado contra a sua vida, ao jornal Washington Examiner. O antigo presidente norte-americano admitiu alterar o tom do aguardado discurso de abertura da Convenção Nacional Republicana para tentar “unir todo o país” ou, admite, “até mesmo o mundo inteiro”. As próximas horas ameaçam alterar profundamente a política norte-americana.
“O atentado contra a vida de Trump vai ter um efeito positivo nos interesses do partido republicano. De certa forma, permite ao antigo presidente vitimizar-se e confirmar perante os seus eleitores de que é perseguido pelo sistema. As ideias não ganham força por serem verdadeiras ou falsas, mas sim por serem acreditadas. O atentado vai fazer parte do eleitorado acreditar em que ele é, de facto, vítima do sistema. Trump está com as portas da Casa Branca escancaradas”, explica o professor José Filipe Pinto.
Com um dos eventos mais importantes da campanha republicana em curso, os especialistas acreditam que a campanha de Trump vai aproveitar todos os elementos para aproveitar politicamente o atentado de que o antigo presidente foi alvo. Inclusive junto de uma franja mais religiosa do eleitorado, apresentando-se na Convenção Nacional Republicana (RNC, na sigla original) como uma figura “quase messiânica” que, perante ataques judiciais, eleitorais e falhas de segurança, é salvo “por ação divina”.
A campanha de Trump escolheu precisamente o evangelista Franklin Graham para ser um dos principais oradores do evento. Este reverendo norte-americano foi uma das primeiras personalidades religiosas a sair em apoio do antigo presidente após o atentado, afirmando que Trump foi protegido “pela mão protetora de Deus”, apesar de os dois estarem em rota de colisão no tema do aborto.
“Esta vai ser uma convenção republicana que se vai assemelhar a uma marcha triunfal ao som das trompetas de anjos. Isto porque ele vai conseguir passar a mensagem de que só sobreviveu ao atentado porque é o escolhido e que tem a proteção de Deus. Daí a utilização da palavra milagre. A utilização desta palavra não é inocente”, sublinha José Filipe Pinto.
Para Donald Trump, que conseguiu a terceira nomeação consecutiva para o Partido Republicano, o ataque contra a sua vida só veio reforçar o seu controlo do partido e de alguns elementos independentes que se apressaram a anunciar o seu apoio logo após o atentado, como o empresário Elon Musk. O dono da Tesla anunciou na rede social X, da qual é proprietário, que apoia “totalmente” Trump e sugeriu, sem apresentar qualquer prova, que os serviços secretos poderiam ter agido de forma “deliberada” para permitir o ataque.
“A última vez que a América teve um candidato tão duro foi Theodore Roosevelt”, disse Musk, acerca do antigo presidente que também foi o alvo de uma tentativa de assassínio durante uma campanha eleitoral, em 1912, que acabaria por perder as eleições para o democrata Woodrow Wilson.
Mas para os especialistas o principal impacto é mesmo nas franjas do partido que há não muito tempo manifestavam o seu descontentamento com o posicionamento e com a postura do candidato. Um desses casos é o da antiga governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, que parece estar disposta a colocar de lado as diferenças em nome da união do partido e vai mesmo discursar na convenção em Milwaukee, no Wisconsin, nesta terça-feira, um dia depois de Donald Trump ter anunciado que o seu vice-presidente é J.D. Vance, senador do Ohio, de 39 anos.
“Nesta convenção republicana, vai estar presente Nikki Haley, o que é um sinal. Candidatou-se e procurou afastar uma parte do Partido Republicano de Trump. Esta reaproximação pode demonstrar que Trump não só é forte dentro da sua própria ala como está a conseguir juntar todos os republicanos”, considera Jorge Botelho Moniz.
Uma vitória antes de uma derrota
Para os democratas aumenta a pressão, mas as saídas são poucas. As últimas duas semanas tinham sido particularmente difíceis para o presidente Joe Biden, cujo desempenho no debate com Trump voltou as expor as dificuldades do presidente e colocou um ponto de interrogação acerca do impacto dos seus 81 anos de idade nas hipóteses de reeleição. Por isso, a curto prazo, o atentado pode mesmo vir a ter um efeito inesperadamente benéfico para os democratas.
“Biden ganha, mas vai perder no futuro. Ganha porque sai das capas dos jornais, paramos de olhar para as suas gafes, se ele gagueja, se ele tropeça, mas sabemos que no futuro, pelas sondagens, e pela ideia do homem forte que resiste a tudo, Biden não está na direção certa para a vitória”, defende Jorge Botelho Moniz.
O presidente Joe Biden reagiu ao ataque num discurso na Sala Oval, no domingo à noite, onde apelou à calma e à necessidade de "baixar a temperatura" na política para que os americanos se lembrem que não são “inimigos”, mas sim “vizinhos, amigos, colegas de trabalho, cidadãos e compatriotas”.
Num discurso marcado pelo tom de união, o presidente insistiu que não há lugar nos Estados Unidos “para este tipo de violência”. O presidente lamentou a morte de Corey Comperatore, um bombeiro e pai de família, que morreu no comício de Trump a tentar proteger a família e juntou-se ao rol assombroso de americanos perdidos pela violência política. Mas nem o tom sentimental escapou ao escárnio do seu adversário, que aproveitou os vários erros verbais para gozar com Joe Biden.
Muitos no próprio partido defendem que ainda há tempo para mudar o rumo da eleição, que está agendada para o dia 5 de novembro, caso o partido arranje um novo candidato. Mas essa possibilidade só está em cima da mesa caso o próprio presidente decida afastar-se e libertar os 3.894 delegados de 3.937 que prometeram nomear o presidente. Apenas nessa circunstância existiria a possibilidade de os delegados serem livres de votar em quem entenderem, algo extremamente raro na política norte-americana.
“Os partidos na América não funcionam como na União Europeia. O partido não tem estruturas que garantam capacidade para trocar de candidato. O candidato Joe Biden só desiste por sua exclusiva decisão. Não há órgãos colegiais que apontem que o candidato já não reúne condições. A partir do momento em que Joe Biden se apresenta como candidato o partido não tem capacidade de impor um travão a essa candidatura”, esclarece José Filipe Pinto, que acredita que "Biden vai tentar minimizar os prejuízos, manter-se na corrida".
Um legado de 43 anos
Ao mesmo tempo decorre uma investigação que pode mudar o rumo da “narrativa” política em torno do atentado, mas que também pode trazer graves danos reequacionais para uma das instituições mais prestigiadas do país. Os serviços secretos norte-americanos têm como função proteger os presidentes e os antigos presidentes e, no sábado, essa missão falhou quando o Thomas Matthew Crooks, de 20 anos, conseguiu subir a um telhado com um campo de visão aberto e disparar contra Donald Trump, enquanto este discursava. Os motivos ainda são claros, mas a polícia federal continua a investigar este caso, que classificou de “terrorismo doméstico”.
É preciso recuar 43 anos, até ao atentado contra Ronald Reagan, para encontrar um erro desta dimensão por parte dos serviços secretos. A Câmara dos Representantes já chamou a diretora dos serviços secretos, Kimberly Cheatle, para testemunhar sobre os eventos que poderiam ter resultado na morte de um ex-presidente norte-americano. Este pedido acontece porque os serviços respondem politicamente ao presidente norte-americano.
“Houve uma falha. Essas coordenações não são fáceis de fazer. A competência de recolha de informações estratégica com vista à prevenção deste tipo de atentados pertence ao FBI. Neste momento, joga-se mais do que a investigação, joga-se também a comunicação e o aproveitamento deste tipo de incidentes. Tendo tido sucesso, teria tido um impacto. Não tendo sucesso, maximiza um conjunto de outras ações que são exploradas até à exaustão em termos mediáticos”, frisa o especialista em assuntos de informação e Defesa, Jorge Silva Carvalho.
A segurança e a organização destes eventos não cabem, em exclusivo aos serviços secretos. A organização do evento é feita pela equipa de Donald Trump em coordenação com os serviços secretos, com a polícia federal e com os xerifes dos condados onde o evento ocorre. O resultado da audição e da investigação do FBI podem vir a alterar como este evento será aproveitado politicamente.
"Os serviços secretos saem muito mal daqui. É preciso perceber se o erro foi da campanha que não requisitou os meios necessários. É preciso perceber como é que a direção de campanha se articulou com os serviços secretos e com os serviços de segurança estaduais", explica ainda Jorge Silva Carvalho.