Uma nova juventude perto dos 40: da Champions à Trofa

19 out 2016, 10:14
Hélder Sousa e Ricardo Fernandes

O Chipre uniu Hélder Sousa e Ricardo Fernandes, agora aos 39 e 38 anos alinham juntos no Trofense por culpa do primeiro. E no futuro podem ser uma dupla a liderar plantéis. Conheça a história de um jogador que tem mais minutos na Champions do que na I Liga e de outro que foi campeão da Europa pelo FC Porto

Domingo à tarde é uma nova rubrica do Maisfutebol, que olha para o futebol português para lá da Liga e das primeiras páginas. Do Campeonato de Portugal aos Distritais, da Taça de Portugal aos campeonatos regionais, histórias de vida e futebol.

Hélder Sousa e Ricardo Fernandes vivem no Trofense uma nova juventude e aos 39 e 38 anos, respetivamente, nem um nem outro pensam ainda no fim.

Correção: o segundo já tinha terminado, mas este verão voltou e só quer desfrutar: «Agora que voltei é pensar no dia a dia. Conforme for correndo e se eu estiver satisfeito, se me sentir bem, se as pessoas do clube estiverem satisfeitas, se acharem que é válido terem-me na equipa, continuo. Se for só para estar para dizer que estou não vou continuar, não tinha lógica.»

A culpa deste regresso até foi de Hélder Sousa, que ligou ao amigo Ricardo, que conheceu no Chipre, e lhe disse para voltar a tirar as botas de onde as tinha pendurado.

Aceitou, não pensa noutra coisa e neste fim de semana voltaram a recordar os grandes jogos e os grandes palcos, na eliminatória de Taça de Portugal frente ao Vitória de Setúbal. A derrota surgiu apenas nas grandes penalidades e ambos referem que ao Trofense «só faltou eficácia».

Caíram, mas de cabeça erguida, e acreditam que o futuro deste plantel, onde são os ‘paizinhos’, será risonho.

A época começou mal porque problemas do passado, no caso dívidas a um ex-jogador, impediram que o plantel jogasse a primeira jornada do Campeonato de Portugal. A direção não podia inscrever jogadores e por isso foi imposta uma derrota ao clube.

A nova Comissão Administrativa, que assumiu este ano as rédeas, está a tentar lutar contra todos os handicaps e o plantel tem mostrado dentro do campo que é possível fazer uma boa época.

«Ainda só perdemos um jogo na Madeira, com o Camacha. O outro jogo que perdemos não o pudemos disputar, por questões burocráticas. É sinal que temos uma equipa que não é fácil bater. Agora é um caminho novo, com treinador novo, jogadores novos, direção nova, é um caminho que demora a percorrer. Estamos no bom caminho, temos que continuar, que os resultados vão aparecer.»

Hélder Sousa é prata da casa e conhece todos os cantos. Está na sua quarta passagem pelo clube e sempre disposto a ajudar. «Costumo dizer às pessoas da Trofa: ‘Não nasci do Trofense, mas aprendi a gostar muito do clube'. Sempre apanhei pessoas sérias, desde há vinte anos quando cheguei aqui para o meu primeiro ano como profissional. Cheguei com 19 e foi sempre um clube que eu admirei, os anos foram passando e fiquei sempre adepto do clube.»

«Não nasci do Trofense, mas aprendi a gostar muito do clube»

Continua a envergar a camisola e a braçadeira do clube, agora num plantel em que apenas ele, Ricardo Fernandes e o guarda-redes Vítor Murta têm mais de 30 anos.

«Para além da experiência de futebol, temos experiência de vida. Para os mais novos não é só o jogo que conta, é também o extra campo, tudo conta. Nós tentamos indicar o caminho pela experiência que temos dentro e fora de campo e podemos ajudar um grupo que é jovem, mas muito ambicioso», diz Hélder Sousa.

Ricardo Fernandes brinca com a situação: «Tenho filhos quase da idade de miúdos que jogam comigo. O meu filho tem 15 e temos lá uma série de miúdos que acabaram de fazer 19 anos. Também temos um bocadinho o papel de educadores com esses miúdos. Vamos tentando passar a nossa experiência com o intuito de os fazer crescer e tornar profissionais de futebol.»

E será que os «miúdos» procuram os conselhos dos mais velhos?

«Mesmo que não procurassem tinham que ouvir (risos). Isto é importante para eles, felizmente temos um capitão com uma história já longa e de sucesso no Trofense. A juventude que temos no balneário tem a capacidade de perceber que o Hélder é um grande exemplo para eles e respeitam-no muito. Tentam segui-lo, a mim também me ouvem um bocadinho e ao Murta também.»

O jogador que tem mais minutos em jogos com o Real Madrid que na Liga portuguesa

Hélder Sousa estreou-se na I Liga na época 2002/03 e apenas alinhou 20 minutos pelo «seu» Braga frente ao Varzim. Esses são os únicos 20 minutos da sua carreira na maior Liga portuguesa e foi lá fora, no Chipre, que conseguiu o seu espaço de afirmação.

«Fui numa perspetiva de conhecer o campeonato. Fui já numa idade avançada, só para tentar ter outros conhecimentos a nível de futebol, e em termos sociais também, e as coisas acabaram por correr bem. As pessoas não ligavam à idade, olhavam para a qualidade, gostaram do que viram e depois até fui para um clube que jogava a Liga dos Campeões», explicou.

O médio saiu de Portugal na época 2010/11 (jogava no Trofense) para assinar pelo Olympiakos Nicosia, clube onde esteve um ano e meio. Em janeiro de 2012 surgiu um convite que o próprio pensou que fosse «brincadeira».

«Sabia que tinha outras equipas interessadas, mas o presidente do clube não me deixava sair, queria que eu continuasse, mas tinha tudo feito para ir para o Omonia, que era rival do APOEL. De um momento para o outro, tudo mudou. Numas horas tudo mudou, tive a proposta do APOEL e pensava que era brincadeira. Estava num treino, discuti lá com o empresário e tudo, mas foi a realidade.»

Rumou ao APOEL, que na altura disputava a Liga dos Campeões e tinha passado a fase de grupos, precisamente no grupo do FC Porto. Seguia-se o Ol. Lyon nos oitavos de final da prova e Hélder Sousa foi titular nos dois encontros com os franceses.

MINUTOS NA CHAMPIONS:

OL. LYON-APOEL, 72’

APOEL-OL. LYON, 94’ (jogo teve prolongamento)

APOEL-REAL MADRID, 45’

REAL MADRID-APOEL, (suplente não utilizado)

Hélder Sousa em ação frente ao Ol. Lyon

Os cipriotas seguiram em frente nas grandes penalidades, fazendo história, e saiu em sorte o Real Madrid. No Chipre, Ronaldo e companhia venceram por 0-3 e Hélder Sousa jogou toda a segunda parte. Em Espanha o marcador apontou um 5-2 para os merengues e o português viu todo o jogo do banco.

Como se explica este fenómeno de um jogador servir para jogar Champions e não servir para o campeonato português?

«Quando fazemos este percurso, olhamos para trás e pensamos onde é que podíamos ter mudado. Comecei o meu percurso vindo do regional e cheguei à I Liga em quatro ou cinco anos. Se calhar não estava tão bem sustentado como pensava que estaria. Também não vou dizer que não merecia outras oportunidades, mas não foi só culpa dos treinadores. Eu tive mais culpa que eles, era rebelde e tinha atitudes que não eram as mais corretas. Não culpo ninguém, aliás se tivesse que culpar se calhar seria mais a mim que aos treinadores, mas sempre achei que merecia outras oportunidades. É como tudo na vida, nunca temos as oportunidades que achamos que merecemos.»

E como é que um antigo «rebelde» consegue agora ensinar os companheiros mais novos? «A rebeldia é boa se for controlada, como costumo dizer. Aos mais novos quando vejo um mais rebelde digo-lhe: ‘Acho isso muito bem, agora tens que controlar isso dentro de ti’. Isso é o mais difícil, se conseguir controlar a rebeldia e não se acomodar é uma maravilha. Agora, é preciso saber até que ponto pode ir para ser benéfico para a carreira.»

Um campeão europeu que esteve «no sítio certo, na hora certa»

Ao contrário de Hélder Sousa, Ricardo Fernandes está a representar pela primeira vez o Trofense, clube para o qual só tem elogios.

«Para ser sincero não sinto no dia a dia que esteja a jogar no Campeonato de Portugal», começa por explicar. «Não tenho sentido essas diferenças, a forma como o Trofense tem trabalhado desde que eu cá estou tem sido como uma equipa profissional, com a mesma exigência e qualidade, temos uma equipa técnica muito capaz, que trabalha como se trabalha num clube de topo em Portugal, temos uma Comissão Administrativa que com seriedade nos tem dado tudo o que necessitamos para fazer o nosso trabalho ao fim de semana», rematou.

O médio, que foi campeão europeu naquele FC Porto de José Mourinho, fez grande parte da sua carreira lá fora e o Chipre foi, tal como para o amigo Hélder, o lugar de continuidade ao que iniciou em Portugal.

Depois do ano do título europeu com os dragões, saiu para a Académica e após uma época rumou ao APOEL: «O Chipre foi, e tem sido para outros, uma oportunidade para jogar em clubes com dimensão, alguns com dimensão europeia agora, não ao nível dos grandes em Portugal, mas com boas condições e que nos deram a oportunidade de ganhar títulos e de nos valorizarmos como profissionais. Foi gratificante o tempo que lá passei.»

Ricardo Fernandes (à esquerda) com Pedro Emanuel e Pedro Mendes num treino do FC Porto

Dois anos e meio com muitos minutos e golos e saída para o Metalurh Donetsk.

«Donetsk é uma cidade com menos condições que outras em que estive a viver, mas a nível profissional foi dos clubes com melhores condições para um profissional de futebol poder trabalhar. Um campeonato competitivo com qualidade  e foi pena o que aconteceu [conflitos políticos na Ucrânia], porque infelizmente o clube desapareceu com esses problemas. Em termos profissionais, mesmo comparando com os 'grandes' em Portugal, foi dos clubes com melhores condições.»

Um ano e meio depois, com 37 jogos e nove golos marcados, regressou ao Chipre para dividir uma temporada entre Anorthosis e AEL Limassol. A seguir, nova paragem: Israel.

Vestiu a camisola do Hapoel Be’er Sheva (atual clube de Míguel Vítor) durante seis meses e fez 15 jogos. Apesar da curta estadia, não esquece o país, apesar da cidade do clube pelo qual assinou «não ser das melhores», reconheceu.

«A opinião que eu tenho de Israel e de Telavive é completamente diferente da que nos é dada pela televisão porque só se mostra o que acontece de mau. Não se mostra uma cidade, que para mim que até já conheci algumas, foi se calhar a melhor em que estive a viver. Telavive foi uma agradável supresa, Israel no geral também. Tinha reservas, mas depois vi que não era aquilo que eu via pela televisão.  Não é por acaso que é um dos países mais visitados do mundo e foi sinceramente uma das cidades que mais me marcou e que gostei mais de viver.»

Seguiu-se um regresso à Ucrânia e ao Metalurh por um ano e depois mais uma nova aventura, na Grécia. Alinhou pelo Panetolikos, onde fez poucos jogos (oito e um golo marcado). Depois voltou a «casa», ao Chipre.

Foi o DOXA que o contratou em 2012/13 e em ano e meio, com 34 de idade, provou que estava ainda preparado para clubes com objetivos máximos naquele país e saltou para o Omonia na segunda metade de 2013/14.

Foram seis meses apenas e novo regresso ao DOXA para mais dois anos. Jogou em tudo que era clube de topo e finalizou o percurso no DOXA, uma equipa mais modesta e com objetivos diferentes das restantes.

 

Fez trocas entre 'grandes' cipriotas o que nos levou a perguntar se nunca teve problemas com isso? Atira de imediato: «Era natural que enquanto jogava nos ‘grandes’ houvesse um bocadinho de rivalidade e ouvisse coisas que não gostasse muito, faz parte. É curioso que quando fui para o DOXA eram todos meus amigos. Onde fosse jogar sentia o respeito das pessoas, se calhar por não estar a jogar num clube que fizesse frente à posição deles. Nesse aspeto, o período mais feliz foi quando estive no DOXA porque toda a gente me respeitava fosse que clube fosse.»

Essa última paragem foi também onde viveu a altura mais complicada: «Nos últimos anos, o país teve problemas económicos e financeiros e também se notou no futebol. Acabámos por ter dificuldades em receber os salários, o que traz dificuldade ao nosso rendimento porque toda a gente tem família, tem despesas...»

Mas explica de imediato: «A única coisa que eu posso dizer é que houve alturas em que se atrasaram em ordenados, mas não posso dizer mal do Chipre em nada. A minha experiência foi positiva em todos os aspetos, nada é perfeito, tinha de haver um pequeno ‘senão’, mas não posso dizer mal nem do DOXA nem de qualquer outro clube por onde passei.»

Ricardo Fernandes reconhece que a qualidade do campeonato não é a mesma que em Portugal, mas...desengane-se quem pensa que é tudo um mar de rosas: «Já vi alguns exemplos que pensaram que o Chipre era fácil, depois chegaram ao Chipre e as coisas não correram bem e tiveram de arranjar desculpas noutras coisas.»

Em Portugal também trocou o Sporting pelo FC Porto e ao comparar com os tempos que se vivem atualmente deixa o comentário: «Sempre houve este tipo de trocas e lembro-me de algumas bem sonantes, muito mais sonantes que estas que têm acontecido e que se calhar não criaram tantos problemas aos jogadores e aos clubes como estas têm criado. Lembro-me que o João Pinto, talvez na melhor fase da sua carreira, salta do Benfica para o Sporting e continuou a viver em Lisboa e não me lembro de ter problemas com adeptos do Benfica. Agora empola-se um bocadinho as coisas e há um bocadinho de falta de cuidado no que se diz, no que se escreve, mas acho que se dá muito tempo de palavra a muita gente que não devia falar.»

Ricardo Fernandes em Old Trafford após o empate que deu o apuramento ao FC Porto na Champions

Na altura de recordar a passagem pelo FC Porto e o título europeu explica: «Estive no sítio certo, à hora certa.»

«Tive a felicidade de pertencer a uma das melhores equipas de sempre do futebol português, se calhar a melhor do meu tempo», concluiu o médio que agora, de regresso a casa, sente-se feliz por «esta nova juventude» na Trofa.

O futuro ditará uma dupla Hélder Sousa-Ricardo Fernandes num banco de suplentes?

Nenhum dos dois tem definido o limite para continuar a brilhar nos relvados. Hélder diz que enquanto se sentir bem lá continua, Ricardo alinha pelo mesmo discurso e faz um elogio ao colega.

«Ainda com o V. Setúbal se viu, o Hélder foi mais uma vez o melhor em campo. Acho que um jogador de futebol, independentemente da idade, se tiver capacidade para ajudar e dar coisas que não vemos todos os dias nem ao domingo, se conseguir fazer diferente, mesmo com 45 anos, deve continuar a jogar. Isso é o que o Hélder faz e enquanto puder deve continuar», disse.

Apesar de a data de fim não estar estabelecida, os dois gostavam de ser treinadores e Ricardo Fernandes já fez o exame para obter o segundo nível, ainda quando estava no Chipre. Está à espera do resultado, mas quer deixar isso para mais tarde: «Quando passar esta fase de jogador que voltou agora, voltarei outra vez a pensar nisso.»

E se os dois querem ser treinadores porque não uma dupla, sugeriu o Maisfutebol a Ricardo Fernandes.

«Seria um prazer! Acho que é recíproco fazer uma dupla com o Hélder. Ele tem muitos anos de futebol, sabe o que quer, creio que partilhamos grande parte das nossas ideias em relação àquilo que queremos do futebol, e se calhar até seria uma dupla de sucesso», admitiu.

E ainda entre risos, atirou: «Ainda somos jovens para começar a pensar nisso.»

 

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