Doença de Crohn e colite ulcerosa. Em Portugal há mais de cinco mil doentes "discriminados" pelo Estado

21 fev 2022, 07:00
Coronavírus

Desde 2017 que estes doentes foram privados de acederem à comparticipação de medicamentos no privado. Já foi apresentada uma queixa na Provedora de Justiça, mas a resposta está a demorar

João Parreira tem de pagar cerca de 4.300 euros por mês para poder comer. É um caso limite de alguém com doença de Crohn, que recorre à nutrição entérica, e que necessita de comprar três latas por dia para se alimentar. Na farmácia, cada uma dessas latas custa cerca de 48 euros. Diz que se não fosse a ajuda de amigos não conseguiria viver com qualidade.

Em Portugal, um total de 25 mil pessoas sofrem de Doenças Inflamatórias do Intestino - 10 mil com doença de Crohn, 15 mil com colite ulcerosa. Destas, 20% a 30%, isto é, entre 5 a 7 mil, são como João Parreira: casos graves que necessitam de tratamento especial.

A alteração de uma portaria publicada em 2017 veio dificultar a vida a estas pessoas, que passaram a deixar de poder aceder aos tratamentos especiais de forma comparticipada nos hospitais privados. Atualmente, e de acordo com a lei em vigor, um doente que necessite dos chamados tratamentos biológicos – utilizados nos casos mais graves - tem de ir ao Serviço Nacional de Saúde para lhes poder aceder de forma comparticipada.

A vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia diz à CNN Portugal que se trata de “discriminação” por parte do Governo, uma vez que os mesmos medicamentos são comparticipados a 100% no privado para patologias das áreas de reumatologia ou dermatologia. Marília Cravo não percebe esta distinção e diz que ninguém no Ministério da Saúde lhe consegue explicar qual a razão.

“Não percebemos porque é que este decreto-lei voltou para trás em 2017, e ainda por cima só em doentes com doença de Crohn ou colite ulcerosa. Se fosse um aspeto economicista podia fazer sentido, mas não é”, aponta, referindo que sai muito mais cara a comparticipação a doentes de reumatologia ou dermatologia, que são em maior número que os doentes de gastrenterologia.

Isso mesmo motivou uma queixa por parte da Associação Crohn/Colite Portugal (ACCP) na Provedora de Justiça, queixa essa que a associação assegura ter dado entrada no verão, mas que, à CNN Portugal, fonte oficial daquele gabinete diz só ter sido processada a 22 de outubro. 

Desde então, a Provedora de Justiça questionou o Ministério da Saúde, recebendo uma resposta do gabinete do secretário de Estado em dezembro, explicando que o caso se encontra em análise. 

A Provedora de Justiça garante que todas as partes interessadas têm sido mantidas a par dos desenvolvimentos, mas a ACCP diz, na voz da presidente, que não é bem assim.

“A provedora diz que fomos colocada a par, mas oficialmente não há nada. Há três semanas disse que haveria novidades, mas nada”, afirma Vera Gomes.

As DII costumam manifestar-se entre os 20 e 30 anos e um tratamento precoce é crucial no seu combate. Trata-se de doenças autoimunes que têm aparecido cada vez mais cedo nas sociedade ocidentais, como explicam os especialistas.

“Nem todos os doentes são tratados com [medicamentos] biológicos, mas os tais 20% a 30% devem ser tratados o mais depressa possível com estes tratamentos, nomeadamente antes de complicações como fístula, que obriga a cirurgia e a sequelas como perda de parte dos intestinos, por exemplo”, nota Marília Cravo.

Ainda sobre a discriminação, Vera Gomes chega a falar em casos “ridículos”, em que alguns doentes com DII começam a desenvolver problemas reumatológicos ou dermatológicos, como psoríase, por exemplo, e aí já podem aceder aos tratamentos de forma comparticipada nos hospitais privados.

A luta de João

Como explica à CNN Portugal a doutora Marília Cravo, o caso de João Parreira é um dos mais críticos. Trata-se de um doente que tem apenas 47 anos, mas que já tem quatro sacos e cinco fístulas, vivendo há 23 anos com o diagnóstico de Crohn. A única coisa que lhe permite ter uma vida com qualidade é uma lata de comida em pó, que custa perto de 48 euros em Portugal. Por dia, o homem necessita de três destas latas, o que dá um custo aproximado a 150 euros.

Um preço naturalmente incomportável para a esmagadora maioria dos portugueses, e que faz de João um dos rostos de uma luta pela comparticipação deste alimento, que poderia ajudar a maioria dos doentes, mas que para ele é essencial.

"Trata-se de um caso crítico", diz Marília Cravo, sobre um doente que recebe um dos tratamentos mais recentes, o Ustekinumab, administrado por via subcutânea.

Para contornar estes elevados custos, João encontrou duas soluções: acaba por encomendar as latas da Bélgica, onde custam quase quatro vezes menos, ao mesmo tempo que conta com a ajuda de amigos, uma vez que a pensão de invalidez que recebe não lhe chega para pagar os custos.

“Não posso comer um pão com manteiga, fico logo com cólicas, e essas latas que mando vir da Bélgica são o meu alimento”, sublinha, referindo que, caso coma um alimento normal, vai acabar por estar "10 ou 12 horas a penar".

Os tratamentos em causa

Aquilo que os tais 20% a 30% doentes que sofrem destas condições intestinais pedem é o acesso aos chamados tratamentos biológicos, alguns dos quais podem chegar a custar cerca de 500 euros por mês, um custo que, para Marília Cravo, não é elevado para o Estado, mas que é um grande peso na carteira de muitos doentes, havendo mesmo alguns que não têm possibilidade de pagar pelo tratamento no privado, ficando sujeitos ao moroso processo para pedir a comparticipação.

Trata-se de pacientes cuja doença não responde aos tratamentos convencionais, e que precisam destes novos fármacos, os biológicos. Estes medicamentos (Infliximab e Adalimumab) apareceram há cerca de 20 anos, são injetáveis e, com o aparecimento de biossimilares, o seu custo reduziu-se muito (cerca de 200-400€/mês). Entretanto surgiram outras moléculas como o Vedolizumab e os Ustekimumab (que João utiliza) cujo custo é, por enquanto, mais elevado (500-750€/mês). Já aprovadas na Europa mas ainda não disponíveis em Portugal, estão moléculas orais como o filgotinib. É de esperar que os custos destes fármacos, muito mais práticos para o doente por serem comprimidos, sejam ainda mais baratos. Marília Cravo até nota que o custo destes tratamentos tem vindo a diminuir, e é Vera Gomes que refere que, há uns anos, havia quem tivesse de gastar até três mil euros por semana para receber as injeções necessárias.

Outro fármaco, designado tofacitinib, está disponível para os doentes portugueses desde 26 de fevereiro de 2021.

Até à data e para os doentes com estas patlogias a sua comparticipação terá de ser pedida exclusivamente através do Serviço Nacional de Saúde.

O perigo de uma espera

Desde a vida pessoal à vida profissional, são várias as implicações das DII no dia a dia das pessoas. O desconforto causado por estas condições leva-as a não conseguirem trabalhar, até porque, muitas das vezes, é fisicamente impossível.

Mas se essa é uma condição primária, existe mesmo o risco de que se venham a desenvolver complicações ainda mais graves. Foi o que aconteceu já durante a pandemia, com um caso que nos foi relatado por Marília Cravo.

“Estas doenças têm morbilidade, afetam a qualidade de vida. Temos a oportunidade de aproveitar o avanço tecnológico e até almejar a cura, e não fazemos por problemas de acesso”, diz, apontando que muitas destas terapêuticas de biológicos, quando aplicadas de forma precoce, podem mesmo conduzir a uma cura.

“Não se percebe porque é que tiramos um tratamento que pode modificar a história natural da doença e evitar complicações crónicas que são dramáticas”, acrescenta Marília Cravo.

Uma doente com cerca de 40 anos que, na sequência de complicações de uma DII, acabou por desenvolver um cancro no intestino delgado, considerado “raríssimo”, e que, neste caso, estava 100% relacionado, assegura a médica, que ressalva que este não se trata de um caso em que tenha havido uma espera pelo tratamento comparticipado, mas que “serve de exemplo de como pode acabar uma DII não tratada”. O cancro acabou por ser encontrado numa fase em que já estava metastizado, e a mulher acabou por não sobreviver.

“Tenho doentes que morreram com a doença de Crohn ou com colite ulcerosa. São doenças que, para além da morbilidade, também têm mortalidade. São quadros graves, às vezes de perfurações intestinais, que podem caminhar para septicemias, e os doentes morrem”, refere Marília Cravo.

Outro perigo é a criação de fístulas, algo que Vera Gomes define como uma espécie de “canal” entre órgãos, e que pode ser muito perigoso caso aconteça no rim ou na bexiga, por exemplo.

A causa da espera

Se, para terem acesso à comparticipação dos tratamentos, os doentes têm de ir ao Serviço Nacional de Saúde, isso implica todo um processo, longo no tempo, e que se complicou com a pandemia.

Obrigatoriamente, e até que a comparticipação seja concedida, existem as seguintes fases: consulta no médico de família, referenciação ao hospital público para uma consulta de gastrenterologia, realização de exames (a colonoscopia no hospital público está com atraso de meses ou de anos), início da terapêutica, avaliação da resposta que consiste novamente na realização de exames.

Parece simples, mas, como notam Marília Cravo e Vera Gomes, muitos doentes não têm acesso a médico de família. Além disso, e com a deslocação destes profissionais para a atividade covid-19, mesmo os doentes que têm médico de família acabam por ver adiada a consulta.

Esperam-se então seis meses para que se verifique se as terapias convencionais resultam, o que exige uma ressonância magnética ou uma colonoscopia, exames que estão a demorar meses para marcação. De resto, segundo a vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, uma colonoscopia com acesso a anestesia pode demorar mesmo dois anos a ser conseguida.

Caso se venha a verificar a necessidade de administração de biológicos, como nos casos dos tais 20% a 30% de pessoas, só então se pode marcar uma consulta da especialidade, que pode demorar mais algum tempo.

Entretanto, e passado todo este moroso processo, a doença foi sendo agravada, até porque o tempo é essencial na gestão das DII.

“As pessoas têm queixas, mas não conseguem uma consulta no SNS”, nota Marília Cravo.

E os dados dão-lhe razão. De acordo com os dados do portal do Ministério da Saúde, um doente considerado normal tem, atualmente, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, um tempo de espera aproximado de 80 dias para conseguir uma consulta. Esse tempo reduz para 36 dias em doentes prioritários, e para 5 dias em doentes muito prioritários.

No Hospital de São João, no Porto, esse período é ainda maior. Um doente normal tem de esperar 154 dias por uma consulta, enquanto um prioritário espera 67 dias. Já para os muito prioritários, a espera é de 37 dias.

Tempo de espera por consulta de gastrenterologia
  Muito Prioritário Prioritário Normal
Hospital de Santa Maria 5 dias 36 dias 80 dias
Hospital de Faro 23 dias 33 dias 44 dias
Hospital de São João 37 dias 67 dias 154 dias
Hospital de Santo António 8 dias 35 dias 103 dias
Hospital de Coimbra Não tem 52 dias 179 dias

De acordo com Marília Cravo, um doente com DII deverá sempre ser considerado como "normal", podendo levar até seis meses, como é o caso do Hospital de São João, para ser atendido. Colocando a probabilidade de este doente vir a precisar de exames e de uma segunda consulta para avaliação dos mesmos, estamos a falar de praticamente um ano só para o início de todo o diagnóstico.

Uma questão constitucional

Na prática, em muitos dos casos, mais do que o custo, os doentes queixam-se da tal “discriminação” de que dizem ser alvo, e que afirmam ser inconstitucional, uma vez que viola o artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa, que prevê que “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover”.

Nesse mesmo artigo vem referido que compete ao Estado “garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição, aos cuidados da medicina, preventiva, curativa e de reabilitação”.

É por isso que, de acordo com a ACCP e a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, perante a impossibilidade de assegurar esse acesso através do Serviço Nacional de Saúde, o Estado deve garantir que o mesmo acontece através de hospitais privados, tal e qual como ocorre para os doentes reumatológicos e dermatológicos.

A resposta do Ministério da Saúde

A CNN Portugal contactou o Ministério da Saúde, que fala na disponibilidade de "um conjunto alargado de medicamentos, com diferentes indicações e perfis de segurança".

A tutela lembra que alguns medicamentos estão presentes nas farmácias comunitárias, sendo financiados a 90%, mas lembra que só são abrangidas "cerca de 80% de todos os pacientes". Os outros 20%, que a ACCP e a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia diz poderem ser 30% não estão incluídos, e esse é o problema.

"Por uma questão de segurança e bem-estar do paciente, os medicamentos que implicam um maior acompanhamento são disponibilizados nos hospitais do SNS, sem custos para os doentes. Esta dispensa é feita ao abrigo de um regime especial de comparticipação, determinado pela Portaria nº 351/2017, que estabelece que a prescrição pode ser realizada apenas por médicos especialistas de gastroenterologia dos estabelecimentos do SNS e que, à semelhança dos outros regimes de comparticipação, a dispensa é sempre realizada nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde", diz o Ministério da Saúde, que se recusou a comentar as acusações de "discriminação" em relação a outras patologias.

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