Amélia tentou pôr fim a uma dívida de nove mil euros. Sete anos mais tarde obrigaram-na a pagar 30 mil: "Não tínhamos dinheiro para sobreviver"

27 dez 2024, 07:00
asa

Reformada recorreu a uma instituição de crédito porque não tinha condições para pagar uma dívida antiga do marido, mas acabou por ser apanhada de surpresa com uma penhora "eterna"

No dia em que recebeu a carta em casa, Amélia Leão e o marido encontravam-se numa situação “muito complicada”. Numa questão de meses, no pequeno apartamento onde viviam em Carnaxide, os dois tinham a seu cuidado o pai, que tinha sofrido um AVC que o deixou parcialmente paralisado, a mãe, que estava a recuperar muito lentamente de um enfarte, e o cunhado, diagnosticado com esquizofrenia. Amélia rasgou o envelope e pediu ao marido que se sentasse. “Temos de honrar o compromisso, não podemos deixar de pagar”, disse-lhe.

Na conversa, conta Amélia, recordaram como uma dívida de 9 mil euros num cartão de crédito do marido, assinado nos anos 90, os levou a pedir um crédito pessoal na Unicre para a amortizar. Em 2010, comprometeram-se a pagar prestações de cerca de 250 euros, mas com o pesar da renda e das despesas médicas da família, estavam em sério risco de incumprimento. Assim, em outubro de 2012, quando receberam a carta, meteram-se os dois no carro e deslocaram-se até à sede da empresa de crédito a quem deviam dinheiro. Quando chegaram ao grande prédio espelhado na Avenida António Augusto Aguiar, em Lisboa, foram recebidos por funcionários e depois por advogados. 

Quando deram por si, conta Amélia Leão, estavam os dois numa sala com um documento à sua frente pronto para ser assinado. Em letras gordas, lia-se “declaração de dívida e plano de pagamentos” e o seu conteúdo levou a mulher, hoje com 72 anos, a guardar aquelas duas páginas religiosamente. Nas folhas, lia-se que o casal se comprometia a liquidar em 12 prestações mensais o valor de 2.064 euros e que os restantes 7.967,77 euros seriam pagos em “acordo posterior”. “Contámos a verdade toda, que estávamos com muitas dificuldades, mas que queríamos ver um fim a isto”. 

Amélia e o marido concluíram os pagamentos e nunca mais ouviram nada da instituição de crédito. Sete anos depois, já o casal, ambos funcionários das Finanças, se tinham reformado quando, “de repente”, receberam uma nova carta no correio. Mas desta vez não era da Unicre, era do Tribunal de Oeiras. A dívida de 8 mil euros transformou-se em 30 mil euros através de uma taxa de juro de mais de 27% e um terço da pensão de Amélia e do marido iria ser penhorada. “Foi doloroso, deixámos de contar com mais de mil euros por mês”, explica à CNN Portugal. “Não conseguimos sequer contestar, porque não estávamos abrangidos pelo apoio judiciário e não tínhamos como pagar a um advogado”. “Não tínhamos dinheiro para sobreviver”.

Economistas preocupados com aumento do crédito ao consumo

O caso de Amélia surge numa altura em que o número de portugueses que recorrem ao crédito ao consumo tem sido o mais elevado dos últimos seis anos. Entre janeiro e agosto, segundo dados do Banco de Portugal, as famílias endividaram-se em mais de 5,5 mil milhões de euros - um aumento de 8,7% comparativamente com o mesmo período do ano passado. Para o economista Nuno Rico, especialista em Produtos Bancários na DECO PROTeste, os números são preocupantes. "Devido ao aumento do custo de vida e dos juros do crédito à habitação, os consumidores começam cada vez mais a recorrer a este tipo de créditos para fazer face a despesas inesperadas, como escolares, férias ou avarias no carro”. 

Com este aumento exponencial nos últimos anos, o especialista alerta que há uma cada vez maior facilidade por parte das instituições de crédito em fornecer muito dinheiro muito rapidamente aos bolsos das famílias. "Hoje em dia, é extremamente fácil contratar crédito ao consumo através de aplicações bancárias ou home banking, o que, aliado à baixa literacia financeira, pode levar a decisões pouco conscientes”. Neste momento, no país, os cartões de crédito são o principal fator de sobreendividamento, seguidos pelos créditos ao consumo. Isso “preocupa-nos muito, especialmente por causa do aumento dos montantes nos últimos dois anos”. 

Amélia lê uma das cartas que enviou ao Banco de Portugal a explicar a sua situação / D.R

Embora o crédito ao consumo ofereça liquidez imediata, acarreta compromissos de pagamento com taxas de juros elevadas, muitas vezes superiores a 10%, e prazos curtos, o que resulta em prestações significativas”. Aliás, sublinha, "nos créditos ao consumo, as taxas de juros superam facilmente os 10%, sendo que, em cartões de crédito, podem atingir 16 ou 17%”. 

Na mesma linha, Vítor Madeira, economista e analista da XTB, nota que o crédito ao consumo em todas as suas vertentes aumentou 15,3% em termos homólogos desde outubro de 2024. “As pessoas estão a utilizar no presente um consumo que as vai incapacitar no futuro”, refere, acrescentando que num contexto de taxas de juro elevadas os riscos acrescem significativamente. 

O economista vinca ainda que em muitos casos as pessoas endividam-se com prestações que contemplam o montante mínimo o que, “facilmente”, pode levar a que quem contrate esse tipo de créditos acabe com uma “dívida para sempre”. “Vejamos, se uma pessoa contratar um empréstimo de mil euros e todos os meses pagar 85 euros, por causa dos juros, não está a abater a dívida”, exemplifica.

“Eu nem sei como é que aguentei”, conta Amélia. Em 2016, quando lhe começou a ser penhorada a pensão tinha uma certeza: “esta dívida será eterna, eu vou morrer antes de conseguir pagar”. A reformada conta que a família ficou de “pés e mãos atadas” e que entrou em espiral. “Meses depois de sabermos que tínhamos de pagar aqueles 30 mil euros, o meu pai morreu”. “Dias depois, o meu marido foi diagnosticado com um cancro no esófago e, logo a seguir, a minha mãe faleceu”. “Eu fui ao fundo, ficou tudo para mim, tive de ser eu a pagar tudo". 

"Atitude predatória" e "uma dívida eterna"

Na farmácia, explica, a conta excedia os 700 euros todos os meses. “Além disso, tínhamos que sustentar o meu cunhado em alimentação e roupa. “Tivemos de fazer escolhas”, acrescenta. “Prescindimos do carro e passámos a fazer tudo a pé, incluindo quando levava o meu marido ao hospital”. “O dinheiro era absorvido em tudo isso, nos médicos, nos medicamentos, nas consultas, na alimentação. Não tínhamos ajuda de ninguém”. 

Quando o marido morreu, em 2020, Amélia recorda-se de escrever várias cartas ao juiz e ao Banco de Portugal a explicar como não foi informada da dimensão da dívida que a atingiu. “Eu bem tentei que compreendessem a minha situação, mas não consegui”, afirma. “Era uma dívida eterna”. A CNN Portugal contactou a Unicre, que se recusou a prestar esclarecimentos, apontando para o facto de o processo executivo ainda estar em curso. 

No processo, é alegado que a taxa de juro contratual aplicada era aquela que se encontrava em vigor à data e que nunca foi contestada pelos clientes. Já sobre o facto de Amélia ter sido apanhada de surpresa com o valor de 30 mil euros, a instituição indicou ao tribunal que foi a reformada quem “não contactou” a Unicre, acabando a mesma por não responder a uma interpelação feita em 2016, no mesmo ano em que foi instaurado o processo - sete anos depois do acordo de pagamento ter sido assinado.

Amélia só se conseguiu livrar da dívida este ano, 35 anos depois da primeira prestação. “Tive ajuda de amigos, mas paguei tudo”. “Senti-me leve pela primeira vez em anos, mas continuo a sentir-me injustiçada”, afirma, acrescentando que a Unicre teve consigo uma “atitude predatória com o objetivo de lhe tirar o máximo dinheiro possível”. “Imagine como é que eu vivi, sem ajuda provavelmente nunca iria ver o fim da dívida”.

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