"O dinheiro é tão fácil". Como o vício do crédito está a crescer em tempos de inflação galopante

17 jan 2023, 07:00
Dinheiro (Getty Images)

Créditos para a compra de automóveis foram dos poucos que desceram. Em contrapartida há mais gente a apostar em créditos pessoais ou cartões de crédito

“Maria” queria comprar uma mala de 400 euros, mas não tinha dinheiro. Comprava na mesma. E comprava viagens ou outras “futilidades”, como nos conta a própria. Como é que pagava estas despesas? Através do recurso ao crédito. Uns contratos atrás dos outros. “Maria” é apenas um caso entre os muitos portugueses que recorrem ao crédito para fazer face a despesas que de outra forma não conseguiriam suportar. E recorrem a mais crédito para pagar as dívidas antigas.

A concessão de crédito pessoal é, aliás, uma realidade que, de acordo com os dados do Banco de Portugal, aumentou no ano passado. Os portugueses pediram mais créditos pessoais e cartões de crédito do que em 2021. E num ano em que a inflação disparou para valores que não se viam há várias décadas, o valor total dos créditos contratualizados mostra que os portugueses estão a pedir mais dinheiro para consumo.

O que se verifica é que existe um aumento considerável no valor do crédito pessoal concedido, que subiu 16,5% de 2021 para 2022, sendo que ainda falta o mês de dezembro ser contabilizado. Um cenário que se repete nos contratos de cartões de crédito. Feitas as contas foi atribuído um valor de quase sete mil milhões de euros até novembro em todo o tipo de créditos, número acima dos 6,5 mil milhões de euros concedidos em todo o ano de 2021, e que significa uma subida de 6%, sendo certo que também aqui faltam os dados de dezembro.

Valor dos créditos atribuídos em 2021 e 2022*
Tipo de crédito 2021 2022 Variação
Crédito pessoal 2,9 mil milhões de euros 3,3 mil milhões de euros 16,5%
Cartões de crédito mil milhões de euros 1,1 mil milhões de euros 6,4%
Total 6,5 mil milhões de euros 6,9 mil milhões de euros 6,4%

*valores de dezembro de 2022 não contabilizados

Uma espiral de dívida

O problema de "Maria" não começou com a inflação no ano passado, mas foi aí que se agravou de forma drástica. Em 2019 pediu o primeiro crédito pessoal, ao mesmo tempo que começou a contratualizar cartões de crédito em diferentes instituições. Tudo porque a sua vida se "alterou", mas, ainda assim, "quis manter o nível" da mesma.

"Tive acesso a créditos pessoais e cartões de crédito e entrei numa espiral de créditos fáceis. A dada altura dei conta que não conseguia fazer face a todas as prestações e ao endividamento", conta à CNN Portugal, admitindo que já fazia créditos para pagar outros que tinha pendentes, numa espiral que chegou aos 40 mil euros acumulados em quatro cartões de crédito e três créditos pessoais.

A situação "acelerou" em 2022, nomeadamente pela diminuição do nível de vida. "O ordenado mantém-se, mas os preços subiram", refere, sublinhando que teve "um problema com o qual não contava". Voltou a recorrer a créditos, numa altura em que a sua fonte de rendimento e as ajudas de familiares e amigos já não chegavam para fazer face às despesas, que chegavam a ser de 1.800 euros mensais só para crédito.

"Em cima disso um crédito à habitação. Mesmo com um rendimento mensal mais ou menos razoável não era comportável. Não tinha esse rendimento", explica, confessando que esperava para levantar um crédito para conseguir pagar outro.

Os números do Banco de Portugal sobre o aumento do crédito pessoal indiciam que o comportamento dos consumidores está a mudar. Os maiores responsáveis pelos aumentos de crédito são pedidos de cartão de crédito e mais pedidos de créditos pessoais, seja para educação, saúde ou outro tipo de despesas. E perante estes sinais, os especialistas que falaram com a CNN Portugal confirmam que estes dados podem querer indicar uma maior falta de capacidade dos consumidores para lidar com a inflação e o consequente aumento dos preços.

"Pode ser visto como um sinal de abrandamento da economia doméstica", aponta Catarina Castro, diretora-executiva da financeira Blue CP.

Já o diretor-executivo da Associação Portuguesa de Empresas de Gestão e Recuperação de Créditos, António Gaspar, entende que esta é uma realidade provável, assinalando o "mau procedimento de muitos consumidores, que se financiam através de cartões de crédito ou mais empréstimos".

A inflação parece, ainda assim, não estar a fazer, pelo menos para já, com que mais portugueses entrem em incumprimento. O valor de empréstimos vencidos (crédito malparado) até tem vindo a baixar em 2022, depois de ter caído de 4,5% para 3,5% entre janeiro e novembro. No entanto, e de acordo com o Banco de Portugal, de agosto para setembro do último ano voltou a registar-se uma subida nesta taxa, a primeira em quase ano e meio, o que pode ser um sinal de que vêm aí, como se espera, tempos difíceis.

"O dinheiro é tão fácil"

"Maria" critica a abordagem de algumas das empresas com quem contratualizou créditos. Diz que houve casos em que teve de pedir, mas noutros foram as próprias credoras a "acenarem" com créditos "fáceis". Cartões cujo plafond começava em sete mil euros, mas que no mês seguinte duplicava. "Maria" reconhece a sua parte da culpa, mas critica a falta de rigor de algumas destas empresas, para onde "basta mandar o ordenado" para que se liberte um crédito.

"Não pedem mapas de responsabilidades, não cruzam outros créditos que possa ter", acrescenta, dizendo que pensava sempre 'não vou avançar', mas que acabava por fazê-lo.

E embora pareça difícil chegar a este ponto, "Maria" refere que é "fácil". Tão "fácil" como gastar o dinheiro que não se tem. "Não era uma questão de sobrevivência, mas de querer manter um nível de vida para o qual não tinha capacidade. Tinha essa consciência, mas dizia 'depois resolve-se". E não se resolvia.

"Comprei coisas como malas, óculos caríssimos, viagens... foi acesso a dinheiro fácil e querer manter uma ilusão", afirma, explicando que começa num bem de 400 euros, mas que depois dispara. "Num dos cartões comecei com três mil euros e no fim do ano já tinha 14 mil euros para pagar".

A "reeducação"

A "Maria" valeu-lhe a ajuda financeira que obteve, nomeadamente junto do Doutor Finanças, com quem ainda trabalha para conseguir pagar a dívida, agora "bem encaminhada". Dos 1.800 euros mensais paga agora 600 euros, depois de ter feito um crédito consolidado em que juntou todas as despesas. A garantia que deu a quem a ajuda é de que não vai a "mais lado nenhum". Acabaram-se as férias com dinheiro que não tem ou as compras "inúteis".

É um processo de "reeducação", como nos diz "Maria", lembrando que precisou de ajuda, de alguém que soubesse lidar com a situação. "Temos de ter alguém que nos diga não, que nos ensine estas coisas", sublinha, garantindo que sempre teve uma consciência: os créditos contratualizados estavam todos assegurados, pelo que, caso perdesse o emprego, fosse por doença ou despedimento, tinha a dívida assegurada. "Felizmente" nunca chegou a esse ponto.

Ainda antes do Doutor Finanças tentou uma alternativa mais óbvia: o seu banco. Só que, quando lá chegou, e numa altura de aperto, a gestora estava de férias.

Mas há mais associações que podem ajudar os consumidores a fazerem face aos problemas financeiros. Em Cascais, o Gabinete Dívida Zero destina-se a ajudar pessoas a lidarem com as suas dívidas, oferecendo um serviço totalmente gratuito e que pode ser consultado via online ou presencial. E trabalho não tem faltado. Em 2022 atendeu 220 famílias, 105 das quais pela primeira vez. Um número maior face ao que acontecia antes.

Mais endividamento à vista (e alguns conselhos)

Para Ana Bravo um agravamento da dívida dos portugueses é "inevitável", sobretudo pela subida das taxas de juro que já fizeram disparar os créditos à habitação de várias pessoas, prometendo uma escalada dos preços que continuará pelos próximos meses.

Por isso, para a especialista em economia doméstica, autora do livro "ABC da Poupança", é importante que as pessoas "não se metam em créditos que não podem pagar", uma vez que também a inflação fez subir o custo de vida, trazendo preços de bens essenciais para valores bem acima do praticado há um ano.

Mas esse cenário de maior cautela é algo que Ana Bravo teme que possa não acontecer. A economista lembra que "os portugueses estão muito longe de serem financeiramente literados". Com efeito, e mesmo que o nível de entendimento esteja a subir, o mais recente relatório do Banco Central Europeu coloca Portugal em último lugar entre os 19 países da zona euro em termos de literacia financeira.

"Não temos uma forma previdente de conduzir a nossa vida, o que está relacionado com a nossa falta de literacia", explica Ana Bravo, apontando que, tal como "Maria", muitas pessoas "compram o que aparece à frente" sem terem a certeza se podem suportar o custo.

É que, além da dívida em si, a contração deste tipo de créditos é também um "inibidor" para mais empréstimos. O mesmo é dizer que alguém que deve dinheiro e não tenha casa própria não conseguirá realizar um contrato de empréstimo para crédito à habitação. "Estes endividamentos são uma autoestrada para o incumprimento, e estamos a voltar a isso", afirma Ana Bravo, que conhece vários casos de pessoas com "coleções de créditos que nem sabiam que tinham" e que veem a sua situação mudar de um momento para o outro. A estas pessoas a economista deixa um conselho: o melhor é não ter mesmo cartão de crédito ou um plafond disponível. Caso o tenham, o mais ajuizado é "liquidar rapidamente".

A DECO elaborou um conjunto de medidas que pode seguir para acautelar a sua situação, e que incluem formas de lidar com o crédito à habitação (1), o crédito ao consumo (2) e cartões de crédito (3).

  1. Simule diversos montantes para vários prazos de pagamento no maior número possível de bancos. Quanto mais longo for o prazo, mais caro ficará o empréstimo, mas pagará uma prestação mais baixa; informe-se sobre todas as despesas, como comissões e seguros; acautele uma eventual subida das taxas de juro: some entre 1% e 4% à taxa anunciada e verifique se consegue suportar a prestação.
  2. Compare várias simulações de diferentes instituições de crédito e opte pela que apresentar a menor TAEG; se pretende comprar carro e não se importar de prescindir da sua propriedade imediata, opte pelo leasing. Trata-se da modalidade de financiamento mais barata para quem não tem um imóvel ou uma aplicação financeira para dar como garantia; existem finalidades de crédito com taxas de juro menores. Se a finalidade do crédito for educação, saúde, energias renováveis ou crédito automóvel, a TAEG será inferior; cuidado com as ofertas de crédito fácil que proliferam na internet através das redes sociais. Muitas delas são burlas.
  3. Pague as despesas na totalidade, recorrendo ao período de crédito sem juros (entre 20 e 50 dias). Se tiver de utilizar o crédito, verifique as condições da conta-ordenado e se existem alternativas mais baratas. Antes de optar por um cartão de crédito, analise não só a primeira anuidade, mas também as anuidades dos anos seguintes; não utilize o cartão de crédito para pagar outros créditos nem para as despesas de primeira necessidade, como supermercado. Esse tipo de utilização pode tornar-se numa bola de neve.

Se estiver numa situação de endividamento ou com dificuldades em gerir o orçamento pode contactar várias organizações que prestam apoio gratuito. Além do Gabinete Dívida Zero, também associações como a APOIARE, a DECO ou até o website Doutor Finanças podem ajudar a tomar a melhor opção numa altura mais difícil.

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