A Digi iniciou atividade em Portugal a 4 de novembro com preços cerca de quatro vezes abaixo da concorrência. A DECO PROteste bate palmas aos "preços disruptivos", mas alerta os consumidores que numa fase inicial podem existir algumas perturbações nos serviços contratados. Do ponto de vista do mercado, o economista Pedro Brinca garante que o surgimento de uma nova operadora será "bom para o consumidor" e que inevitavelmente Meo, Nos e Vodafone terão de implementar estratégias - como a redução de preços - para mitigarem perdas nas quotas de mercado
Há uma nova operadora de telecomunicações no mercado nacional. A Digi é uma empresa romena, há alguns anos que andava a tentar intrometer-se no meio de Vodafone, Meo e Nos, agora conseguiu e há pelo menos uma certeza: "A diferença de preço é tão significativa que não pode ser ignorada", garante António Alves. O team leader da área de tecnologia da DECO PROteste diz que este era "o pior cenário para os três grandes operadores nacionais: o surgimento de um novo operador com preços disruptivos e que viesse abanar o mercado".
"Bem-vinda a Digi", atira o economista e professor na Nova SBE, Pedro Brinca. O especialista em mercados considera que esta chegada de uma nova operadora "é bom para o consumidor" que agora passa a "ter mais oferta de serviços por um preço mais convidativo": "Em última análise, isto é o que queremos para a Economia".
Em contraponto ao mercado livre em funcionamento, permanece a dúvida sobre se é recomendado mudar de operadora de telecomunicações no imediato e se do ponto de vista técnico a proposta romena será capaz de ombrear com a das três operadoras que têm vindo a dominar o mercado nacional no passado recente. António Alves da DECO explica que esta é uma incerteza que deve ser tida em conta não só por quem vai aderir ao novo serviço, mas também por Nos, Meo e Vodafone, porque "não é pelo facto de haver uma diferença de preço muito significativa, que podemos logo inferir que os serviços da Digi não têm valia técnica ou não são comparáveis com os três grandes operadores".
Que problemas pode encontrar quem for já a correr mudar para a Digi?
Apesar das dúvidas inerentes ao arranque da operadora, Pedro Brinca lembra que o modelo que a Digi trouxe agora para Portugal não é uma novidade, lembrando que esta mesma empresa romena já o implementou noutros países e "parece que tem sido bem-sucedida nessas geografias", aponta.
Já o especialista de tecnologia da DECO PROteste alerta que "ainda não teve oportunidade de fazer um teste ao serviço". Por isso mesmo, constata António Alves, "não se podem ainda pronunciar sobre a qualidade dos serviços que a Digi está a oferecer, nem tampouco existe um feedback de forma mais volumosa por parte dos consumidores". Ainda assim, todo o serviço de telecomunicações assenta e funciona sobre bases comuns e todo o sistema é tão forte quanto o seu elo mais fraco. Portanto, resta a questão: onde poderá falhar a Digi?
1. Sem fibra não há internet fixa e 5G da Digi só em Lisboa, Porto e Algarve
A cobertura dos serviços da Digi poderá mesmo ser o grande fator decisor para os consumidores. António Alves argumenta que, tendo em conta o que foi anunciado, "existem algumas limitações" e uma delas é "óbvia": "Só se consegue aderir ao serviço fixo se existir cobertura de fibra da Digi e a empresa ainda não está presente em vários locais, não têm uma cobertura equiparada à dos três grandes operadores".
Quanto à rede móvel, a Digi "já tem uma cobertura expressiva", garante a DECO, com uma salvaguarda: "Uma das coisas que os consumidores devem ter em atenção é que a cobertura 5G é muito reduzida". O especialista em tecnologia da associação da defesa do consumidor constata que, tendo em conta os mapas de cobertura divulgados no site da Digi, a cobertura 5G da Digi apenas "está concentrada em alguns locais da Grande Lisboa, no Porto e em algumas zonas do Algarve".
Mas fora dos maiores centros urbanos quem mudar para a Digi não terá rede no telemóvel? Terá, porque, ao contrário do que acontece com o 5G, a cobertura 4G da Digi "já é mais satisfatória", garante António Alves, que aproveita o tópico da rede móvel para fazer mais um alerta aos futuros clientes sobre "outro detalhe" que pode ter passado despercebido a muitos: "Na parte dos planos móveis da Digi, o preço é aquele e é muito atrativo, mas por cada SMS enviado para fora da rede Digi são cobrados dois cêntimos". "Esta será também uma despesa adicional que os consumidores terão", diz António Alves.
2. Os problemas do crescimento: avalanche de adesões pode trazer mais problemas
"Com os preços que apresentou é normal que a Digi tenha muitas tentativas de adesão nestes primeiros tempos e é também normal que haja muita coisa para afinar", prevê António Alves. Perante isso, o especialista da DECO diz que não ficaria surpreendido se houvesse alguns problemas nesta fase inicial, a começar logo pelos "timmings de instalação dada a quantidade de pedidos que devem já ter". Depois, "o software do serviço de televisão também pode ter de ser aperfeiçoado", mas tudo isto, lembra António Alves, "é normal numa fase inicial" da entrada de operador num novo mercado.
Existe ainda outro possível contratempo se existir uma avalanche de novos utilizadores num curto espaço de tempo: vai a rede infraestrutura da Digi resistir a um overload à semelhança do que aconteceu durante a pandemia em larga escala quando metade do país ficou em teletrabalho? António Alves garante que "tudo depende do que foi projetado pela Digi e de quais eram as expectativas que tinham a nível de adesões". A DECO garante que esta é uma resposta que só pode ser dada com testes - que para já não são possíveis de executar dada a fase embrionária do projeto da Digi -, mas que tudo se resume a uma questão: "Ao que é que a rede deles consegue dar resposta?" Consoante a resposta haverá uma internet mais ou menos rápida, com mais ou menos falhas, à semelhança do que aconteceu precisamente em certos períodos nos dias de confinamento um pouco em todas as operadoras.
3. Não há SIC, CMTV, Sport TV nem DAZN
No caso da televisão e da grelha de canais também "existem limitações que não são nada de insignificante e têm alguma expressão", alerta a DECO. Isto, porque a Digi foi incapaz de firmar acordos de transmissão com alguns dos canais mais vistos no país. Para a DECO, este poderá ser também um fator a ter em conta para parte dos clientes.
Quem aderir à Digi, pelo menos nesta primeira fase, não terá disponível os canais do grupo Impresa - SIC, SIC Notícias, SIC Radical, SIC Mulher -, do grupo Medialivre - CMTV e Now - ou o canal da Federação Portuguesa de Futebol - 11. (Grelha completa)
Para além disto, "os canais premium de desporto também não podem ser contratados", alerta António Alves, lembrando que não estarão na grelha da Digi os canais de desporto da DAZN - antiga Eleven Sports - , nenhum dos canais dos três maiores clubes de futebol nacionais, nem todos os canais da Sport TV. Sendo que esta última dificilmente irá algum dia estar disponível, como explica António Alves: "Temos de falar muito em específico da Sport TV, porque três dos quatro detentores da Sport TV são as três grandes operadores nacionais e muito dificilmente um novo operador que entre no nosso mercado vai conseguir aceder".
O especialista em tecnologia da DECO PROteste lembra que os clientes da Digi não conseguirão ver qualquer jogo das equipas nacionais na televisão (sem ser os jogos da Taça de Portugal que sejam transmitidos pela RTP1) e que a única hipótese que terão para ver futebol de forma legal será, no caso da DAZN, será "subscrever diretamente o serviço numa smartv e ter acesso através da app da própria DAZN".
4. Velocidade contratada e real
A DECO explica que, neste momento, é necessário que o serviço entre em funcionamento para que, posteriormente, se comece a "analisar aquilo que são as velocidades que estão a oferecer em diversos pontos de acesso e comparar com aquilo que estão a prometer ao consumidor, ou seja, uma comparação em velocidade real e a velocidade teórica".
"Se a Digi tiver a sua infraestrutura bem dimensionada e o número de adesões estiver em linha com aquilo que era perspetivado, o que espero é que consiga dar resposta. A fibra ótica também dá mais garantias que outras tecnologias em relação a isso, ou seja, em relação àquilo que é a diferença entre os valores teóricos e os práticos", explica António Alves, lembrando que a diferença entre a velocidade publicitada e a real, em regra-geral, não deverá ser superior a 20%. "Se assim for e atendendo às velocidades que estão a anunciar, não traria qualquer problema de usabilidade aos consumidores", garante.
A reação dos "big players"
No mesmo dia em que a Digi entrou em funcionamento no mercado português - a 4 de novembro -, o presidente executivo da Nos, Miguel Almeida, deu uma entrevista ao Jornal de Negócios, onde alertou que “entrada desse ‘player’ tem consequências terríveis para o país a médio e longo prazo porque vai pôr em causa o investimento sustentável do setor". E não foi o único, porque, quatro dias depois, foi a presidente executiva da Altice Portugal, antiga PT e dona da Meo, Ana Figueiredo, também em entrevista ao Negócios, a considerar que ao comparar a Digi com os atuais concorrentes “não estamos a comparar maçãs com maçãs em algumas matérias" e que, olhando para a oferta da empresa romena, “a única variável” que viu até ao momento foi “o preço”: "Os portugueses falam sempre muito do preço dos pacotes, mas se compararem as funcionalidades e a qualidade de serviço vão ver que poucos países estão acima de nós".
À CNN Portugal, Pedro Brinca, garante que estas são reações "normais", porque com a chegada da Digi a "concorrência percebeu que vai ter de gastar", garantindo que teria ficado surpreendido "se não houvesse uma resposta da parte das principais operadoras no sentido de tentar desacreditar a oferta da Digi".
"À medida que começarem a perder quota de mercado, o que vai acontecer é que vão ter de baixar o preço", antevê o economista, afirmando que acredita que a resposta de Nos, Vodafone e Meo vai passar "por uma combinação de estratégias, em que primeiro vão tentar desacreditar a Digi - vão tentar dizer que é uma marca que não está consolidada no mercado e vão tentar jogar com medo dos consumidores - e depois também poderá haver um ajuste de preço", lembrando que, perante tudo isto e tendo em conta que "neste caso há nada que diga que a concorrência da Digi é desleal", "devia haver mais duas ou três Digis".
"As reações são mais ou menos óbvias", garante António Alves da DECO PROteste, que lembra que Portugal "estava num mercado onde os três grandes operadores tinham ofertas que eram muito alinhadas entre eles" como demonstram as análises e serviços que vem sendo feita pela DECO há vários anos. "Estavam constantemente alinhados não só no preço, mas a composição de ofertas era muito parecida e as atualizações eram feitas da mesma forma e na mesma altura", sublinha, voltando a referir: "Não podemos partir do pressuposto, só porque o preço é mais baixo que os serviços da Digi não têm vantagem técnica ou não são comparáveis com os três grandes operadores".
Como funciona o serviço de TV da Digi. Há uma box? E fidelização?
A DECO PROteste explica que o serviço de TV da Digi tem duas opções: uma box tradicional ou uma app que pode ser instalada numa smart tv. António Alves refere que, apesar do aparelho descodificador ainda não ter sido testado pela DECO, "do que sabemos existe uma box que é relativamente básica a nível das funcionalidades," - referindo-se à própria interface com o utilizador desde os menus, a capacidade de "andar para trás na emissão", parar ou ver conteúdos transmitidos nos últimos sete dias, como acontece no serviço dos concorrentes diretos. E "lançaram uma app, tal como outras operadoras já têm as apps para Android TV, em que se pode instalar diretamente numa Smart TV, que seja compatível, sendo que já têm para Android TV, têm para as da Samsung, o Tizen, e têm para as da LG".
"Portanto, no caso a Digi, oferecem as duas opções, através de uma box, ou através diretamente de uma app, que pode ser acedida com o user e uma password. Mas é algo que queremos testar em breve, queremos testar o serviço TV deles e perceber até que ponto a usabilidade do serviço da Digi se compara com a dos outros", refere António Alves.
Quanto à questão da fidelização, para a DECO PROteste esta é outra das grandes vantagens da Digi quando comparada com as operadoras tradicionais: "A Digi tem a uma fidelização máxima de 3 meses, com preços muito mais acessíveis, e tem ofertas que são modulares, em que o cliente pode, por exemplo, decidir se quero ou não o telefone fixo, que hoje em dia é algo que a grande maioria das pessoas já não usa e que vem sempre nos pacotes".
Tradicionalmente, os pacotes da Nos, Meo e Vodafone vêm com uma "fidelização de 24 meses para terem ofertas competitivas, porque se formos com ofertas com fidelização mais curta ou sem fidelização, o preço é muito mais alto e torna-se completamente incomportável, explica António Alves.
Deve mudar já? O princípio da precaução desaconselha
Nesta fase embrionária da chegada da Digi, o especialista da área de tecnologia da DECO PROteste aconselha o consumidor a seguir "o princípio da precaução". "Se o consumidor puder esperar um pouco e ver qual é que é a evolução também a nível das reclamações, da experiência dos consumidores, é sempre um bom princípio se calhar esperar nas primeiras semanas ou nos primeiros meses e depois, com mais calma, então fazer a transição", sugere.
Isto, porque nos primeiros tempos, lembra, é normal "haja muita coisa por afinar": "Não me surpreenderia muito que houvesse problemas nesta fase inicial, desde logo os timings necessários para a instalação, alguns possíveis problemas que possa haver com as próprias interrupções dos serviços, algum software do serviço de televisão que tenha de ser aperfeiçoado. É normal que na fase inicial existam alguns problemas, inclusive logo na fase de instalação, com a quantidade de pedidos que devem ter nesta fase inicial", explica António Alves.
Como consegue a Digi ter preços quatro vezes mais baratos?
Para além das valias técnicas da Digi e das acusações dos concorrentes, Pedro Brinca defende que exista uma "pergunta de um milhão de euros": "Como é que a Digi consegue fazer preços quatro vezes mais baratos?". O professor da Nova SBE constata que "os preços que têm sido praticados no mercado pelas principais operadoras têm sido sempre estranhamente semelhantes" e teoriza que é aqui que poderá estar a resposta.
"Obviamente que não podemos falar de cartelização, porque cartelização é um crime e é preciso ter evidências fortes para dizer que as principais operadoras entram em operações de concertação de preços, não podemos acusá-las de fazer isso. Mas, começamos a pensar duas vezes sobre a situação quando de repente entra um concorrente que consegue fazer o mesmo produto a quatro vezes o mesmo preço. A pergunta é como é que a Digi entra a fazer quatro vezes o mesmo preço e, antes, é como é que a concorrência entre as principais operadoras não levou para que o preço baixasse? Obviamente que isso levanta dúvidas", explica o economista.
Em tom de fecho e antevendo a fase da desacreditação do "novo player", o economista lembra outra das valências do mercado livre e com concorrência: "Se o serviço da Digi não funcionar, ninguém quererá mudar para lá e, por isso, morrem sozinhos".