Dias da Silva admite não ser possível corrigir todas "as injustiças" aos professores

Agência Lusa , MM
14 fev 2023, 07:52
Secretário-Geral da FNE, João Dias da Silva

Secretário-geral da Federação Nacional da Educação diz que os governos “deixaram acumular uma quantidade enorme de insatisfações” e hoje cada um “traz a sua insatisfação” e é “sindicalista de si próprio”, o que é “mais difícil de gerir"

O secretário-geral da Federação Nacional da Educação (FNE) atribuiu a mobilização dos profissionais do setor à insatisfação que os governos deixaram acumular e admitiu ser impossível corrigir todas “as injustiças” que afetaram os docentes.

Em entrevista à agência Lusa, João Dias da Silva elegeu os concursos de colocação de professores, atualmente em negociação com o Ministério da Educação, como a matéria em que será “mais difícil” reunir consenso.

“É aquela área em que é mais difícil conseguir soluções em que todos se sintam bem, sobretudo porque fomos acumulando ao longo do tempo uma série de injustiças relativas”, justificou, citando como exemplo os professores que em determinado momento conseguiram, ao abrigo das normas vigentes, aceder à categoria de professor titular e, assim, obter “determinados lugares” nas escolas.

“Não é mais possível corrigir aquilo que foram as injustiças relativas daqueles que, não sendo professores titulares, não ocuparam essas vagas”, admitiu, concordando com os docentes que se sentem injustiçados e reconhecendo legitimidade a quem recorreu a uma prerrogativa da lei.

Na opinião de Dias da Silva, a presente mobilização dos profissionais da educação para greves e manifestações em grande escala é mais fruto da insatisfação de muitos anos, em matérias laborais e salariais, do que da introdução de um novo fator na equação do descontentamento, o Sindicato de Todos os Profissionais da Educação (Stop).

“Continuamos a ter o mesmo conceito, as mesmas ferramentas [na ação sindical], que vamos utilizando de forma diferente. A intensidade com que se está a usar agora também é decorrente da verificação daquilo que é a intensidade do desgosto e da insatisfação das pessoas”, considerou.

"Sindicalistas de si próprios"

De acordo com Dias da Silva, as redes sociais possibilitam hoje um maior e mais rápido envolvimento na expressão e congregação desse descontentamento, mas as ferramentas básicas na luta sindical continuam a ser as mesmas: greves, vigílias, manifestações, concentrações, desfiles, cordões humanos.

Os governos, sublinhou, “deixaram acumular uma quantidade enorme de insatisfações” e hoje cada um “traz a sua insatisfação” e é “sindicalista de si próprio”, o que é “mais difícil de gerir", admitiu.

“Se pusermos 50 professores numa sala para cada um dizer o que quer, vamos ter, eventualmente, situações de contradição e de haver propostas que se contradizem. O papel dos sindicatos tem sido o de procurar ver quais são as reivindicações que podem servir a todos e não estabelecer reivindicações que possam colocar professores uns contra os outros. E é isto que tem de se evitar”, defendeu.

Ao e-mail da FNE chegam contactos de professores aposentados a exigirem que seja recalculado o valor da pensão, caso sujam avanços na contagem do tempo de serviço que os sindicatos querem recuperar.

“Os professores que estão a um ano da aposentação, de que forma é que recuperam esse tempo de serviço? Era preciso recalcular todos os salários que deveriam ter recebido e pagar-lhes esses salários que estão em atraso”, exemplificou, para demonstrar a complexidade dos processos. “É um problema que vai gerar mal-estar, porque não vai ser possível dar a todos aquilo que todos acham que tem direito”.

Tiago Brandão Rodrigues, o ministro mais difícil

João Dias da Silva, que em maio deixa a liderança da FNE, num congresso eletivo a realizar em Aveiro, negociou com oito ministros ao longo de duas décadas, mas o mais difícil, admitiu, foi Tiago Brandão Rodrigues.

“Eles difíceis de lidar são todos! Eventualmente, poderia dizer que o mais difícil foi o ministro Tiago Brandão Rodrigues, porque se refugiou na ausência de disponibilidade para conversar”, disse em entrevista à agência Lusa o secretário-geral da Federação Nacional da Educação (FNE), que congrega 10 sindicatos.

Licenciado em filologia românica pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Dias da Silva, assumiu a liderança da FNE em 2004 e defendeu matérias que afetam docentes e não docentes junto de oito titulares no Ministério da Educação: David Justino, Maria do Carmo Seabra, Maria de Lurdes Rodrigues, Isabel Alçada, Nuno Crato, Margarida Mano, Tiago Brandão Rodrigues e João Costa.

“Com qualquer um dos outros ministros, por muito grandes que fossem as diferenças que tínhamos de perspetiva e de soluções, foi sempre possível conversar, dialogar, às vezes aquilo que se diz ´partir pedra´ - nem sempre chegando a resultados -, mas era possível conversar. Tinham disponibilidade para conversar, para ouvir, para contrapor as suas perspetivas. O mais difícil, porque não era possível ter este tipo de relacionamento, de partilha de perspetivas, foi o ministro Tiago Brandão Rodrigues, porque realmente refugiava-se na ausência”, confessou.

Ao avaliar a evolução da carreira docente e os impactos que sofreu nos últimos anos, considerou que até ao início do milénio o percurso foi de afirmação da profissão, “de crescimento e de valorização salarial e de reconhecimento”, o que passou pela criação do Estatuto Carreira Docente (ECD).

“Foi um avanço muito grande, o reconhecimento dos professores nos topos salariais, o trabalho no sentido da determinação das especificações, do perfil do profissional”, sustentou.

"A paixão desapareceu dos programas eleitorais"

A partir dos anos 2000, observou, há uma mudança de rumo, para uma perspetiva mais económica, “mais virada para a avaliação de resultados, mais gestionária”, com “diminuição” do reconhecimento dos professores.

“Não podemos esquecer que antes de terminar o milénio, a educação era a paixão. Hoje em dia, a paixão desapareceu dos programas eleitorais dos partidos. Ainda na última campanha eleitoral, há um ano, a educação esteve praticamente arredada do palco e das preocupações”, referiu Dias da Silva.

As tensões começaram a acumular-se e atingiram o “ponto forte” em 2007, com as alterações ao Estatuto da Carreira Docente e a tentativa de dividir os professores em duas categorias (professor e professor titular e o “crescimento do tempo de trabalho para além do aceitável”, na opinião de Dias da Silva, partilhada pelos restantes sindicatos.

“Houve ali um período em que se começou a sentir que havia outras orientações, que alguns diriam mais neoliberais ou de algum neoliberalismo na gestão dos profissionais da educação e do sistema de ensino”, acrescentou.

Essas orientações levaram, segundo o dirigente, a uma desregulação do tempo de trabalho dos professores, mas refletiram-se também na alteração do regime de aposentação e no alongamento da carreira, consagrado na última revisão do ECD, sob a tutela de Isabel Alçada.

A Troika

Os professores conseguiram acabar com a divisão da carreira em duas categorias, mas somaram-se insatisfações. “O 5.º e o 7.º escalões, as quotas para atribuição de Muito Bom e de Excelente [na avaliação de desempenho]”, enumerou, acrescentando os problemas que afetaram as carreiras da administração pública, como o congelamento na progressão, a redução de salários e o corte de subsídios de férias e de natal.

“Depois tivemos a troika em cima, o crescimento da precariedade, os professores cada vez mais precários, e a ausência de medidas de valorização da carreira”, lamentou.

Em 2018 chegou ao fim do congelamento da carreira, mas “sem a consideração do tempo que esteve congelado”, o que ainda hoje está na base das reivindicações que têm levado milhares de professores às ruas, acompanhados de não docentes, mobilizados para greves e protestos em todo o país.

“Há aqui uma situação que é coincidente com os meus mandatos que é claramente de uma alteração do posicionamento social em relação à profissão docente, ao seu lugar na sociedade, à sua valorização/desvalorização, precariedade e dificuldade em recrutar novos profissionais”, concluiu o secretário-geral da FNE, que passará o testemunho ao sucessor a eleger no congresso agendado para 20 e 21 de maio.

Otimista em relação ao futuro da profissão

Apesar dos dossiers que persistem ano após ano, legislatura após legislatura, João Dias da Silva encara o futuro da educação com otimismo: “Acho que vai ser possível superar estes problemas e que vamos poder ter uma profissão em que as pessoas se revejam e em que dê gosto trabalhar na escola”.

Das lutas que travou à frente da FNE (UGT), muitas em parceria com outras estruturas sindicais, nomeadamente a Federação Nacional dos Professores (Fenprof, CGTP-IN)) e o independente SIPE, assinalou como principais conquistas o fim da divisão dos professores em duas categorias (professor e titular), bem como da Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades (PACC), para professores que já estão na carreira, além da vinculação de milhares de docentes e não docentes.

Por concretizar, entre outras matérias em ciclica negociação com o Governo, ficou a criação de uma carreira específica para os trabalhadores não docentes, também reclamada por sindicatos da CGTP.

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