O diabo esconde-se nos detalhes

24 dez 2022, 16:20

Assisto a jornalistas perguntarem por que razão a comunidade curda é associada a violência, enquanto está a decorrer a manifestação pela morte de três cidadãos curdos em Paris. O salto lógico parece evidente: de vítimas de um ataque armado passam automaticamente a uma comunidade agressiva. A realidade curda é muito mais complexa e não cabe em considerações simplistas como estas: se provocam desacatos é porque são violentos. Aqui recomeça a girar a bola do preconceito que se alimenta de forma autónoma e ganha vida própria. Os curdos reclamam um estado próprio depois de uma divisão do Médio Oriente a regra e esquadro por países europeus, incluindo França. Décadas depois continuam sem pátria reconhecida e esmagados por todas as frentes: Iraque, Síria, Turquia e Irão. Será Mahsa Amini, curda, morta no Irão, violenta como hoje se descreve esta comunidade? Há causas que a comunidade internacional abraça, outras não.

Os curdos de Paris estavam a preparar as cerimónias que assinalariam os 10 anos de um outro ataque. Em janeiro de 2013, outros três curdos foram mortos no mesmo bairro. As autoridades judiciais francesas concluíram que existia um possível envolvimento de serviços de informações turcos, as famílias das vítimas pediram que a investigação continuasse, mas a morte do atirador com um cancro cerebral acabou a ditar o fim do processo. 10 anos depois, deve o Estado francês alguma explicação a estas famílias? A comunidade acredita que o regime de Erdogan está novamente por detrás desta nova tragédia. A fúria que hoje está nas ruas de Paris deve ser olhada à luz de todos estes factos. 

Um dia, em 2016, na ilha de Lesbos, onde estavam muitos curdos à espera de conseguirem asilo na Europa, perguntei a uma funcionária do campo de Moria - o pior campo de refugiados da Europa - qual era a estratégia das autoridades europeias. A resposta foi esclarecedora: “pressionam-nos até que expludam e depois dizem-lhes: ah, tu és assim”.

No norte da Síria, os curdos têm tentado implementar aquilo que poderia ser um protótipo de um Estado curdo, onde há respeito pelos direitos das mulheres e sentido democrático. É contra estas zonas que Erdogan tem dirigido a ofensiva militar, condenada pela União Europeia. A Turquia tem usado o PKK como moeda de troca para entrada da Suécia e Finlândia na NATO. Certo será que este partido é considerado terrorista, quer pela União Europeia, quer pelos Estados Unidos, mas nem todos os curdos são militantes do PKK. O mesmo seria dizer que os dois milhões de palestinianos que estão encurralados na Faixa de Gaza são todos terroristas do Hamas. Aqui há responsabilidades políticas e da comunicação social. Os primeiros, com deveres de acolhimento integração, reforçam o discurso do “nós e eles”, ou seja, colocam uma barreira ideológica à integração. Veja-se as referências de Emmanuel Macron aos refugiados afegãos que, após a tomada do Cabul pelos talibãs, precisavam de proteção internacional; o presidente francês referiu que a Europa tinha de se “proteger” de uma nova vaga migratória. Os segundos, a comunicação social, reproduzem estas ideias sem escrutínio, fazendo eco do senso comum e do preconceito.

França pode ser um exemplo de como, quando tudo falha, tudo se agrava. Muitos refugiados ou requerentes de asilo acabam a viver em guetos na ausência de resposta pública adequada, ficando mais vulneráveis à criminalidade e marginalização. Quem os perceciona nestas bolsas sociais, como a extrema-direita, propaga um sentimento de repulsa e necessidade de expulsão. É um circuito sem fim e que ganha vida própria. Para quebrá-lo é preciso mudar o discurso público de preconceito para com uns e discriminação positiva para com outros. Afinal, se o atirador fosse um jovem curdo não estaríamos todos a discutir o terrorismo islâmico? Na prática, mesmo sendo o atirador francês estamos a debater a imagem violenta associada aos curdos em vez questionar o terrorismo de extrema-direita.

O diabo esconde-se nos detalhes e o preconceito também.

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