Dispositivo essencial para diabéticos está em rutura de stock há meses. Há quem percorra mais de 100 quilómetros para o encontrar. Infarmed admite procura fora das indicações médicas.
Comprar um sensor de glicose FreeStyle Libre 2 Plus tornou-se uma autêntica corrida contra o tempo. De norte a sul do país, milhares de diabéticos enfrentam uma escassez prolongada do dispositivo da Abbott, comparticipado pelo Estado e essencial para monitorizar os níveis de açúcar no sangue sem picadas constantes.
“Há mais de meio ano que vivemos uma crise no acesso a estes dispositivos”, confirmou João Filipe Raposo, endocrinologista e diretor clínico da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal.
O Exclusivo da TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal) percorreu o país, de Vila Real a Faro, e encontrou farmácias sem uma única unidade disponível e listas de espera que se prolongam por semanas.
Em Felgueiras, Carlos Bernardo, diabético há 11 anos, enfrenta dilemas familiares: “Se a minha mãe precisar, prefiro ficar sem o sensor, com todos os inconvenientes que depois me pode causar.”
Em Viseu, Marco Moreira, de 60 anos, passa horas ao telefone à procura de uma farmácia com stock. “Isto causa-me uma ansiedade terrível. Chego a fazer dezenas de quilómetros, de concelho em concelho.” O último sensor que comprou foi em Ponte de Lima, a mais de 100 quilómetros de casa.
A escassez repete-se em Lisboa, Évora e Faro. “Chegam 60 sensores por mês e esgotam de imediato”, relata uma farmacêutica algarvia. “Já nem estamos a aceitar novas reservas”, acrescenta.
Segundo o Infarmed, o problema está relacionado com o aumento da procura, “eventualmente relacionado com utilizações não contempladas” nas indicações médicas.
João Raposo reconhece que há atletas de alto rendimento a utilizar o sensor, mas sublinhou: “Esses casos, à partida, não terão acesso a sensores comparticipados.” Ainda assim, admite que existe uma procura paralela a pressionar o sistema - desde quem pratica desporto com regularidade até quem apenas quer acompanhar o efeito da alimentação nos níveis de glicose.
Ema Paulino, presidente da Associação Nacional das Farmácias (ANF), revela: “Chegámos a receber prescrições de médicos veterinários para estes sensores”. E há aqui um dado relevante: no site do fabricante pode ler-se que o dispositivo não foi testado nem aprovado para uso em animais.
A ANF diz ainda que há falhas na distribuição. Isto porque “o laboratório determinou que iria enviar para todas as farmácias uma quantidade por si definida, que tem a ver com o histórico de pedidos que as farmácias tinham feito em relação a estes sensores. E, ao longo do ano, distribui esta quantidade de forma fixa pelas farmácias.” A presidente da ANF pede por isso uma mudança: “o histórico nunca se irá alterar enquanto não houver flexibilidade em termos de quantidade de dispositivos que nos chega às farmácias. E muitas farmácias já identificaram aqui desequilíbrios em relação às quantidades que necessitavam anteriormente e às quantidades que necessitam hoje em dia”.
O Infarmed garante que “não existe nenhum limite legal ou contratual que impeça a empresa de disponibilizar mais sensores no mercado” e lembra que a Abbott “tem obrigação de assegurar o fornecimento adequado e contínuo”.
A farmacêutica não respondeu às perguntas do Exclusivo, limitando-se a um comunicado genérico: “A empresa assegura o fornecimento dos sistemas FreeStyle Libre às farmácias em quantidades adequadas para as pessoas com diabetes, de acordo com as indicações aprovadas pelas autoridades competentes. Todas as farmácias são devidamente abastecidas.” Assegura ainda que os produtos Libre estão aprovados apenas para pessoas com diabetes, não sendo apoiada a utilização off-label.
De acordo com o Infarmed, são colocados mensalmente cerca de 100 mil sensores nas farmácias portuguesas. Com 35 a 40 mil pessoas com diabetes tipo 1, cada uma necessitando de dois sensores por mês, o abastecimento deveria ser suficiente - e ainda sobrariam cerca de 20 mil unidades para outros casos de insulino-dependência.
Em agosto, entrou em vigor uma portaria que restringe a prescrição destes sensores a cinco especialidades médicas: endocrinologia, nutrição, medicina interna, pediatria e medicina geral e familiar.
“Esperamos que a nova legislação traga algum equilíbrio”, diz Ema Paulino.
João Raposo é mais cauteloso: “Palpita-me que o impacto será reduzido. Só 10% das prescrições vinham de fora dessas especialidades. Claro que 10% é 10%, mas não resolve o problema de fundo.”
Enquanto isso, nas farmácias, as listas de espera continuam caóticas. E para muitos diabéticos, a falta de sensores é mais do que um contratempo, é um risco diário.
“Para quem é diabético, é caótico”, resume uma farmacêutica de Coimbra. “Andar à procura por todo o lado não tem lógica nenhuma.”