A Direção-geral de Saúde publicou um guia para influenciadores digitais e anunciantes sobre alimentação infantil. Marta Figueira e Maria João Gregório são as autoras e, em entrevista à CNN Portugal, alertam que mães e famílias estão expostas a demasiados estímulos, sobretudo nas redes sociais, e nem sempre os mais adequados
Marta Figueira é nutricionista do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável da Direção-Geral da Saúde (DGS) e Maria João Gregório é a responsável desse mesmo programa da DGS. São também duas das autoras do “Guia para influenciadores digitais e anunciantes”, sobre boas práticas na comunicação comercial de alimentação infantil.
Em entrevista à CNN Portugal, revelam que um estudo realizado pela DGS mostrou que “as mulheres grávidas e mães de crianças pequenas estão expostas a múltiplos anúncios publicitários a substitutos do leite materno e a alimentos para bebés e crianças pequenas, enquanto utilizam diferentes plataformas sociais no ambiente digital”. O principal objetivo do livro é, por isso, “contribuir para uma comunicação mais responsável pelos influenciadores digitais”.
O tema esteve em destaque no XXIV Congresso de Nutrição e Alimentação, promovido pela Associação Portuguesa de Nutrição, que teve lugar em Braga, na última quinta e sexta-feira, e que reuniu cerca de 1.650 profissionais do país para debater as novidades da área da nutrição.
O que motivou a criação deste guia direcionado especificamente a influenciadores digitais e anunciantes sobre alimentação infantil? Andam a dar-se muitos maus conselhos?
O que motivou a criação deste guia foi principalmente os resultados de um estudo que realizámos que mostrou que as mulheres grávidas e mães de crianças pequenas portuguesas estão expostas a múltiplos anúncios publicitários a substitutos do leite materno e a alimentos para bebés e crianças pequenas, enquanto utilizam diferentes plataformas sociais no ambiente digital. Para além disso, Portugal apresenta uma taxa de apenas 22% para o aleitamento materno exclusivo até aos seis meses, sendo o marketing de substitutos do leite materno e de alimentos para bebés e crianças pequenas apontado como um dos determinantes para esta baixa prevalência, a nível global.
Qual é o objetivo principal do guia?
O guia tem como principal objetivo contribuir para uma comunicação mais responsável pelos influenciadores digitais e sensibilizar para o cumprimento do enquadramento legal em vigor e das recomendações do Código Internacional de Marketing de Substitutos do Leite Materno e da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Qual é, hoje, o impacto real da promoção digital na alimentação infantil em Portugal?
A evidência mostra que a publicidade tem um impacto significativo nas escolhas, preferências e comportamentos alimentares. No meio digital, são utilizadas estratégias ainda mais persuasivas e criativas que potenciam este efeito. No âmbito da publicidade a substitutos do leite materno, por exemplo, as estratégias de marketing têm a capacidade de influenciar o comportamento das jovens mães e famílias, levando por exemplo à introdução precoce de fórmulas infantis.
O guia propõe recomendações ou estabelece limites claros?
O guia apresenta os requisitos legais existentes atualmente em Portugal em matéria de publicidade e comercialização de fórmulas para lactentes, fórmulas de transição, fórmulas para fins medicinais específicos e ainda no âmbito da publicidade de alimentos para bebés e crianças pequenas. Considerando as recomendações do Código Internacional do Marketing dos Substitutos do Leite Materno e da OMS, o guia apresenta ainda um conjunto de recomendações adicionais, no formato de “boas e más práticas”.
A DGS pode impor sanções a quem não seguir as suas recomendações ou cumprir os limites? A quem compete essa fiscalização?
De facto, a fiscalização não compete à Direção-Geral da Saúde. No caso do Decreto de Lei nº62/2017 (que estabelece o regime aplicável à composição, rotulagem e comercialização do leite, dos produtos derivados do leite e aos produtos extraídos do leite), a fiscalização do cumprimento das regras relativas à publicidade destes produtos e a instrução dos respetivos processos de contraordenação compete à Direção-Geral do Consumidor, existindo coimas para o não cumprimento das disposições do Decreto.
Como é que os influenciadores foram envolvidos neste processo? Houve colaboração com criadores de conteúdo durante a elaboração do documento?
A colaboração com os influenciadores digitais ocorreu numa fase posterior, na fase de divulgação do documento. Convidámos um conjunto de influenciadores digitais e profissionais de saúde para um “Brunchstorming”, uma troca de ideias e discussão sobre alimentação infantil, com especial foco no impacto da comunicação digital e da publicidade.
Este guia promove o aleitamento materno. Quer enumerar alguns dos benefícios?
O leite materno é difícil de replicar, porque a sua composição varia ao longo da mamada, ao longo do dia e durante os meses, existindo uma constante adaptação às necessidades da criança.
Quanto aos benefícios do aleitamento materno, são inúmeros, quer para a criança quer para a mãe. Para a criança, está associado a uma redução do risco de doenças crónicas (por exemplo obesidade e diabetes), fortalece o sistema imunitário e por isso é um fator protetor de infeções nas crianças, nomeadamente respiratórias e de diarreia aguda nos primeiros anos de vida.
Para a mãe, amamentar ajuda na recuperação pós-parto, reforça o vínculo afetivo entre mãe e a criança e é também um fator protetor de cancro da mama. De acordo com um estudo da Lancet de 2016, a universalização da amamentação exclusiva até aos seis meses poderá prevenir 20 mil mortes por cancro da mama a cada ano.
Este guia não pode criar uma certa pressão sobre as mães que não amamentam, por decisão própria ou por impedimentos de saúde?
Sabemos que existem muitos fatores que podem contribuir para a decisão de não amamentar, sejam dificuldades fisiológicas, questões de saúde ou mesmo por decisão própria. Não queremos com esta guia criar pressão sobre as mães que não amamentam, mas sim criar consciencialização para o modo como são partilhadas informações nesta matéria, para que as mães e famílias possam tomar decisões bem informadas, com base na orientação de profissionais de saúde e sem sofrerem influência de comunicação comercial e das estratégias de marketing associadas.
Que erros estamos a cometer na introdução alimentar dos nossos filhos e na alimentação das nossas crianças?
Quer na introdução alimentar, quer na alimentação das crianças e adolescentes, um dos principais erros é a introdução precoce, e em excesso, de sal e açúcar. E este problema começa muitas vezes com alimentos aparentemente "inofensivos", que são promovidos como apropriados para bebés ou crianças pequenas, desde cereais, papas, iogurtes infantis ou bolachas.
A solução, para além da regulação da publicidade alimentar, pode passar por rotulagem mais clara, por estratégias de educação alimentar e pela melhoria da oferta alimentar nas instituições onde as crianças pequenas passam uma grande parte do seu dia e realizam várias refeições diárias. Estamos a falar das creches.
Conseguem apontar-me alguns exemplos práticos de uma comunicação menos "saudável" em termos de comunicação digital e de posts de influenciadores digitais? Que perigos podem ter estas publicações?
Por exemplo, fazer promoção de alimentos que não se enquadram no contexto de uma alimentação saudável, que não cumpram os critérios nutricionais definidos pela OMS, ou que apresentem um formato de apresentação ou consumo não adequado para a fase da diversificação alimentar. Na análise que fizemos ao conteúdo partilhado por influenciadoras digitais, 73% dos produtos não cumprem os requisitos de perfil nutricional da OMS. Para além disso, 19% dos produtos alimentares foram promovidos como adequados para uma idade inferior aos seis meses de idade, o que vai contra as recomendações da OMS.
Acreditam que os pais e cuidadores estão suficientemente conscientes da influência que o marketing digital tem sobre as escolhas alimentares dos mais novos?
Embora exista uma preocupação crescente com a alimentação infantil, a natureza disfarçada e persistente da publicidade e estratégias de marketing, especialmente no meio digital, tornam difícil reconhecer a sua verdadeira influência. Neste sentido, acho que é importante reforçarmos a literacia alimentar, a literacia digital e crítica, para que pais e famílias possam fazer escolhas informadas e para que possam ter uma visão mais crítica face ao conteúdo comercial ao qual são expostos.
O guia aborda também a questão do marketing disfarçado (como publicidades não identificadas ou parcerias encobertas)?
A obrigação de identificar de forma clara e inequívoca o conteúdo comercial das publicações feitas na internet e redes sociais está consagrada no Código da Publicidade. Fizemos questão de incluir esta ponto no guia, incluindo também a indicação de que sempre que seja verificado outro tipo de benefício (como parcerias, ofertas ou patrocínios), este deve ser também claramente identificado.
Como é que a DGS espera que este guia seja implementado na prática — há planos para monitorização ou campanhas de sensibilização específicas?
O evento de apresentação do guia, com as influenciadoras digitais e profissionais de saúde que comunicam nesta área, foi muito bem recebido e foi um passo importante para a divulgação deste documento e da sensibilização para a implementação destas recomendações. No futuro pretendemos dar continuidade a estas ações de sensibilização e de promoção da literacia digital e crítica junto de quem comunica e também através de ações dirigidas para a população.
Existe articulação com entidades reguladoras ou plataformas digitais para garantir a eficácia das recomendações do guia?
Este guia foi desenvolvido em parceria com a Direção-Geral do Consumidor, que é a entidade responsável quer pela fiscalização das disposições tanto da lei da publicidade alimentar dirigida a menores, como da legislação em vigor no âmbito da publicidade a substitutos do leite materno e alimentos para bebés e crianças pequenas. Por isso, sim, existe essa articulação e trabalho próximo.
Este é um passo importante em termos de saúde pública. Que outras medidas estruturais estão a ser pensadas para proteger as crianças do marketing alimentar agressivo?
Em Portugal, temos desde 2019 uma lei que introduz restrições à publicidade alimentar a menores de 16 anos de alimentos e bebidas com elevado valor energético, teor de sal, açúcar, ácidos gordos saturados e ácidos gordos transformados. Com a avaliação de impacto desta lei que fizemos no final de 2024, percebemos que o meio digital é onde se verificam mais infrações e também onde é mais difícil de monitorizar e, por isso, esta deve ser uma área onde devemos investir neste momento.
Que mensagem gostariam de deixar a quem comunica sobre alimentação nas redes sociais, especialmente quando o público-alvo inclui crianças ou famílias?
Essencialmente, a importância de estarmos todos comprometidos com uma comunicação responsável nesta área. A comunicação sobre alimentação nas redes sociais, especialmente quando dirigida a crianças ou famílias, deve ser feita com rigor e de forma ética, não devendo induzir em erro ou promover produtos nutricionalmente desadequados. E por isso é essencial serem respeitadas as orientações de saúde pública, de forma a proteger a população da exposição a conteúdo comercial que não favorece escolhas alimentares adequadas.