Começou ao lado de Romário, foi herói no Sporting e transformou-se no ginásio

5 mai 2022, 09:23
Rodrigo Tiuí

O Maisfutebol parte ao encontro de Rodrigo Tiuí, avançado brasileiro a quem bastou meia hora para ficar na história leonina. Uma conversa que passa por Romário, Edmundo, Renato Gaúcho, Ruud Gullit e outras histórias imperdíveis.

DESTINOS é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias de décadas passadas e marcantes no nosso futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINOS.

Rodrigo Tiuí ficará para sempre marcado na história do Sporting. O avançado contratado ao Fluminense marcou apenas por três vezes em cerca de ano e meio em Alvalade, mas dois desses golos foram numa final da Taça frente ao FC Porto: entrou no prolongamento e decidiu o jogo. Até marcou num pontapé de bicicleta.

O brasileiro conta que nem estava para entrar, mas Vukcevic amuou por não ter sido titular, demorou muito tempo a calçar as chuteiras e Paulo Bento irritou-se. Trocou de substituição e lançou Tiuí para o dia mais feliz da sua vida. Os sérvio-montenegrinos daquele plantel trazem, aliás, várias memórias (e muitas gargalhadas) ao avançado.

De resto, Tiuí recorda a estreia ao lado de Romário e fala do estatuto especial que o Baixinho já tinha na altura, num plantel do qual também fazia parte Edmundo, que era treinado por Renato Gaúcho e que por vezes parecia um grupo de crianças. Pelo caminho, há ainda tempo para lembrar os tempos passado na Chechénia ao lado de... Ruud Gullit.

O Tiuí desapareceu da vista dos adeptos, onde anda agora?

Eu moro em Bauru, no interior de São Paulo. Nasci em Taboão da Serra, mas joguei no Noroeste, gostei muito da cidade de Bauru e quando acabei a carreira vim para aqui com a minha família. Estou a começar a mexer com jogadores, vou virar agente. A minha vida continua no meio do futebol e vou lançar essa empresa de agenciamento aqui no interior de São Paulo.

E aí há muitos craques para trazer para Portugal?

Sim, claro. No Brasil surgem bons jogadores novos todos os meses. Não é todos os anos, é todos os meses. É claro que a escola europeia é muito melhor, por isso os jogadores saem daqui muito cedo para serem lapidados na Europa. Às vezes com 15 ou 16 anos são negociados para o futebol europeu, o que nos obriga a trabalhar com uma faixa etária muito curta.

No seu tempo era diferente, como é que começou no futebol?

Eu comecei num clube do Nordeste com 13 anos: o Matsubara. Mas foi uma passagem muito rápida, fiquei apenas um ano. Depois um olheiro viu-me jogar, gostou e levou-me para o Fluminense, onde acabei a minha formação e comecei a carreira de jogador profissional. Fiquei na academia do Fluminense e praticamente fui criado lá.

Nessa altura jogou com o Carlos Alberto, não foi?

Sim, exatamente, o Carlos Alberto que venceu a Liga dos Campeões com o FC Porto. Cresci juntamente com ele. Aliás, sempre fomos muito próximos, eu conhecia a família dele, dormia em casa dele, era um grande companheiro. Um rapaz muito brincalhão. Dentro de campo não, era agressivo, muito físico, mas fora de campo era extrovertido e estava sempre na brincadeira. O Carlos Alberto é um ano mais velho do que eu, mas tem um irmão que também jogava no Fluminense que é um ano mais novo. Então andávamos sempre os três. A família dele era como se fosse a minha família e divertíamo-nos muito.

Depois estreou-se na equipa principal do Fluminense com o Romário.

É verdade. Era uma grande equipa: Romário, Edmundo, Roger, que jogou no Benfica. Era uma baita de uma equipaça. Para mim foi um pouquinho difícil, era um menino ao lado desses grandes nomes. Mas acabei por jogar bastante. Eles eram mais velhos, muitas vezes estavam lesionados e então entrava eu. Praticamente havia sempre algum lesionado e surgiam oportunidades para mim.

E como foi para um miúdo de 18 anos partilhar o balneário com o Romário?

Eu tinha crescido a ver o Romário na televisão, tinha vibrado com a conquista do Mundial em 94, para mim era como se fosse um Cristiano Ronaldo hoje em dia, entende? Foi um sentimento que é muito difícil explicar: chegar à primeira equipa, concretizar um sonho e ter um herói perto de nós, um herói que só conhecia da televisão, é absolutamente inesquecível. Em campo sentia uma obrigação muito, muito grande de o ajudar. Ele já estava em final de carreira e continuava a marcar muitos golos. Então eu trabalhava muito para ele.

Como era a vossa relação no balneário?

O Romário falava muito pouco com os colegas. Quando ele soltava um ‘oi’, nós percebíamos logo que naquele dia ele estava feliz. Se dissesse ‘bom dia’ já estava bom. Muitas vezes ele chegava, treinava e ia embora sem dizer uma palavra. Só que o Romário tinha sempre muita gente à volta dele, por isso tínhamos de entender. Tinha sido um menino muito pobre, que conseguiu dar a volta por cima e tinha essa personalidade muito fechada. Falava muito com o Renato Gaúcho, às vezes com o Edmundo e era isso.

Mas o Romário, por exemplo, tomava banho com vocês no balneário ou fazia estágios com a equipa?

Às vezes era dispensado dessas coisas. Nós treinávamos de manhã e a seguir íamos para estágio, mas o Romário tinha os negócios dele, tinha algumas coisas para resolver, então ele comparecia na concentração mais à noite. Dormia lá e no dia seguinte ia para o jogo.

Lembra-se de alguma história curiosa desses tempos?

O que recordo melhor é que o Romário e o Edmundo já eram adultos, só que tinham uma relação que parecia de adolescentes. Num momento um estava chateado com outro, no momento seguinte o outro estava chateado. Sempre foram amigos, mas tinham esse tipo de relação e era engraçado. Eu, que era o adolescente, não entendia. Deitava as mãos à cabeça e pensava: um deles está sempre chateado, não entendo. Mas eles no fundo gostavam um do outro. Quando não se gosta, nós brigamos e afastamo-nos. Eles brigavam, mas andavam sempre juntos.

Os dois tiveram sempre uma personalidade muito forte e até explosiva.

Sim, os dois eram líderes e tinham vaidade nisso. Discutiam muito pela braçadeira de capitão. ‘Ai o Romário chegou e vai querer a minha braçadeira’. Era engraçado, parecia uma novela.

E o Romário tinha aquele feitio difícil para trabalhar de que se falava?

Não, não era bem assim. O Romário sempre conheceu o corpo dele e as limitações que tinha naquela idade. Ele não faltava a um treino, por exemplo, apenas diminuía a carga. Às vezes nós tínhamos treino físico, ele fazia só trabalho de finalização. Ele conhecia as limitações dele, sabia que tinha de descansar dos jogos e os treinadores que o contratavam sabiam que tinham que montar um esquema para ele. Por isso foi o melhor marcador do Brasileirão com 40 anos. Sempre foi um jogador que treinou menos, mas não faltava aos treinos. As pessoas diziam ‘ah, ele não faz trabalho físico’. Mas finalizava cinquenta vezes no treino. Quando chegava ao jogo, ia lá e fazia os golos.

O Rodrigo Tiuí estreou-se no Fluminense e brilhou no Santos, não foi?

Quando saí do Fluminense fui jogar no Noroeste, aqui de Bauru. Fizemos uma época excelente, fomos às meias-finais da Taça do Brasil e despertei o interesse dos clubes grandes de São Paulo. Que era a minha intenção quando saí do Fluminense, dar o salto para um clube de São Paulo.

Porquê de São Paulo?

Porque tinha mais visibilidade. Se eu não tivesse ido para o Santos e feito a campanha boa que fiz na Libertadores, nunca iria para o Sporting. O Sporting viu-me porque estava a jogar a Libertadores. Se tivesse ficado no Fluminense, provavelmente não iria para o Sporting. Na época os europeus não levavam jogadores do Rio de Janeiro, que tinham fama de treinar pouco.

Foi no Santos que foi apelidado pela primeira vez de Tiuí Henry?

Eu usava muito a velocidade e os adeptos do Santos começaram a chamar-me de Tiuí Henry. Depois a alcunha pegou e mesmo em Portugal havia gente que me chamava isso. Mas no Sporting foi tudo incrível. Os adeptos eram muito educados, muitos carismáticos, gostei de tudo no Sporting. Não tenho dúvidas que saí do Brasil para o clube certo.

Apesar de não ter sido campeão.

Ganhámos apenas a Taça de Portugal, mas ainda hoje os adeptos me adoram. Já há algum tempo que não vou a Lisboa, mas em breve estarei aí para passar uns dias e rever os muitos amigos.

A sua passagem pelo Sporting fica muito marcada por aquela final da Taça em que entra para a história?

Sem dúvida. Essa final ficou marcada e ainda hoje toda a gente fala dela. Foi o melhor jogo da minha vida, apesar de ter jogado pouco tempo. Mas foi o jogo que mais marcou a minha carreira e a minha vida. O Paulo Bento deu-me aquela oportunidade mesmo no final, eu fiz dois golos e quase fazia três. Quando ele me chamou no prolongamento, eu entrei a acreditar muito que ia ser o meu dia. Nada acontece por acaso.

Nesse jogo estava com fé que alguma coisa ia acontecer?

Na realidade quem ia entrar era o Vukcevic. Só que ele ficou chateado por ir jogar pouco tempo e demorou muito, acho que nem tinha as chuteiras nos pés. O Paulo Bento ficou furioso e chamou-me. Eu queria era jogar, estava prontíssimo. Entrei e deu tudo certo. Acho que estava marcado.

Ainda bem que o Vukcevic estava sem chuteiras...

É, ele estava nervoso, não queria jogar só vinte minutos. Então quando o Paulo Bento me chamou, a minha reação foi: ‘Opa, eu estou pronto’. Entrei e, caramba, calhou dar tudo certo. Foi a minha noite. Por um acaso, foi a minha noite.

Ainda se lembra da festa?

Claro, ficou marcada. Desde irmos receber as medalhas, a festa dos jogadores no autocarro, foi tudo fantástico. Foi o momento mais feliz da minha vida. Naquela noite fui muito apaparicado, mas eu sempre fui muito tímido e acabei por curtir mais depois com a minha família.

O ano a seguir não correu tão bem e acaba por sair do Sporting...

Foi um ano em que chegou o Postiga, internacional português, e ainda aumentou mais o nível do ataque do Sporting. Mesmo eu tendo sido o herói da Taça, o Paulo Bento deu-me menos oportunidades. Fiquei sem entender, mas o futebol é assim. Não estava a jogar, o nível do meu futebol estava a cair e então foi melhor sair. O Sporting tinha Liedson, Derlei, Postiga, Yannick, era um ataque muito forte e quando assim é, custa menos, não é?

Nessa altura não ficou chateado por pensar que aqueles dois golos estavam a valer de pouco?

Aqueles dois golos nunca vão ser apagados da história. Só que eram passado, eu tinha que escrever uma nova história e quando não se joga, não dá para fazer história. Eu nem sequer era convocado. Se pelo menos fosse ao banco, a qualquer momento podia entrar e fazer as coisas acontecer. Assim era mais complicado e voltar ao Brasil era a melhor solução.

Como era a sua relação com o Paulo Bento?

O Paulo Bento era um treinador razoável. Esteve no Sporting, esteve na seleção de Portugal, chegou a treinar o Cruzeiro, mas os jogadores no Brasil são muito difíceis, os dirigentes são difíceis, é tudo muito complicado. Acima de tudo fiquei-lhe grato por me ter colocado naquele jogo. Vou respeitá-lo sempre por isso.

Surpreendeu-o que no ano a seguir o João Moutinho, que era o capitão, tenha saído para o FC Porto?

Não era uma coisa esperada. Mas a verdade é que às vezes às vezes o jogador é muito grato ao clube e o clube é muito ingrato com o jogador. O João Moutinho queria uma grande equipa da Europa e percebeu que o melhor clube para dar o salto para uma grande equipa era o FC Porto. Era o clube que fazia mais negócios com os grandes da Europa, tinha sempre grandes jogadores e estava em evidência nas competições europeias. Acho que não foi uma decisão errada, só que o adepto fanático, que ama o Sporting, vai crucificar o jogador. Isso acontece muito aqui no Brasil. Aconteceu há pouco tempo com o Pedro, que saiu do Fluminense e agora está no Flamengo.

Com Derlei, Liedson, Rochemback, Anderson Polga, Pedro Silva, sentia-se em casa?

O Rochemback chegou mais tarde, mas gostava muito dele. Foi dos jogadores de quem fiquei mais próximo. Ele convidava-nos muito para ir a casa dele. Mas sim, parecia que estava no Brasil.

E depois tinha aquela aqueles que era o mais difícil de entender: um russo e três sérvios...

O russo [Izmailov] era muito gente boa, muito tranquilo. Não falávamos, mas dávamo-nos bem. Os sérvios [Stojkovic, Vukcevic e Purovic] eram um pouco mais complicados.

Porquê?

Eles eram mesmo muito doidos, meu Deus do céu. Disseram-me que até capotaram um carro em Lisboa. Eu não estava a acreditar: como é possível capotar um carro dentro da cidade de Lisboa?!

Depois regressa ao Brasil e volta a emigrar para ir jogar no Terek Grozny da Rússia.

Foi uma má decisão que eu tomei. Era um clube com muito dinheiro, mas que estava a começar a engatinhar, não tinha um nível profissional, nem sequer tinha uma academia de futebol.

E como foi viver na Chechénia?

Foi difícil. Não estava habituado àquilo. Tínhamos de andar sempre com cuidado, era perigoso sair à rua. A população andava armada, eles viviam e treinavam com guerra, que era uma coisa que eu não entendia. Por isso estava um pouco assustado. Nós não morávamos em Grozny, mas íamos lá jogar e quando íamos de carro era complicado, passávamos por muitos postos de controlo, estávamos sempre a ser parados por gente armada, enfim. Mas dizíamos que jogávamos no clube e deixavam-nos passar.

Em compensação foi treinado por uma por uma grande estrela como é o Ruud Gullit.

Ele gostava muito de mim. Gostava muito do meu futebol, do jeito que eu desenvolvia o jogo, que era mais técnico e fazia a diferença em relação ao futebol mais físico dos russos. O Gullit já tinha trabalhado com outros brasileiros, por isso entendia português e falava um pouco. Isso facilitava muito as coisas. Era um bom treinador, que tinha sido um grande jogador e entendia de futebol, só que aquele clube não tinha ferramentas para fazer melhor.

Mais tarde ainda foi jogar no Japão. Como é que isso aconteceu?

Foi outra aventura assim meio exótica. Eu tenho um irmão que vive há trinta anos no Japão, jogou lá e agora é treinador adjunto de uma equipa. Uma vez fui lá visitá-lo, as pessoas souberam que eu também era jogador, convidaram-me para treinar e gostaram de mim. Foi o Ruy Ramos, que conhecia o meu irmão e treinava o Gifu, da segunda divisão. Ele gostou e assinei contrato.

Para terminar esta conversa, tem passado tempo no ginásio, não é?.

Sim, estou muito mais forte. Treino todos os dias no ginásio e estou em grande forma. Quando parei de jogar precisava de me exercitar, porque nessa altura corpo apanha um susto. Pensei que tinha de substituir aquela coisa de fazer exercício todos os dias e ganhei gosto pelo ginásio. Hoje não consigo passar um dia sem ir lá.

 

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