«Para desarmar eu estava sempre pronto, para construir é que era um problema»

22 fev 2023, 09:14
Freitas (Fotos Arquivo Pessoal)

Destinos encontra Freitas, o defesa a quem chamaram 115, pronto-socorro na defesa do Belenenses, primeiro, e depois do FC Porto. Aos 75 anos, mantém a memória e o sentido de humor, a desfiar histórias daquele tempo e de uma vida cheia

DESTINOS é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias das décadas de 80, 90 e 00s, marcantes no nosso futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis.

Fernando José António Freitas Alexandrino. Freitas, o defesa a quem chamaram 115, o número de emergência na altura, porque ele ia a todas e arranjava sempre maneira de afastar o perigo. Foi pronto-socorro ao longo de nove épocas no Belenenses, onde foi vice-campeão nacional em 1973, e depois no FC Porto. Vestiu por sete temporadas a camisola azul e branca, integrou a equipa que em 1978 quebrou o longo jejum de vitórias no campeonato nacional e que também deu que falar na Europa. Nas memórias, a goleada ao Manchester United nas Antas, em 1977, ou o triunfo em Milão, que vem bem ao caso agora que o FC Porto visita o Inter, porque foi a primeira vitória azul e branca em Itália. Foi internacional, fez nove jogos pela seleção nacional, e conta como chegou a fazer parte de uma seleção do resto do mundo, a jogar ao lado de Cruyff no Maracanã.

Saiu de Angola para estudar em Lisboa e para treinar no Belenenses, «acrescentado» a um grupo de vários jogadores. Mas só foi uma vez à escola, porque pegou logo de estaca no Restelo. Aos 75 anos, Freitas mantém a memória e o sentido de humor, a desfiar histórias daquele tempo e de uma vida de muitas aventuras. Recorda treinadores e companheiros, conta como foi António Oliveira a falar-lhe do interesse do FC Porto, em pleno jogo, e como decidiu ir, porque era lá que estava a namorada. Ri-se a recordar como evitava olhar para os companheiros de equipa, não fossem passar-lhe a bola. Fala sobre o projeto que criou com os três filhos, a Escola de Futebol 115, com algumas mágoas pelo meio. E espanta-se por ver como ainda hoje o reconhecem nas ruas do Porto – o número 4 que não hesitava em atirar a bola para a bancada ainda vive na memória de muitos adeptos.

Como começou o seu percurso em Angola e como chegou a Portugal?

Cheguei a Portugal porque havia um sócio que era do Belenenses e mandou vir uns três jogadores que estavam lá em Angola para fazer testes. E somaram um quarto elemento que era eu. E também vim embrulhado, à boleia. Conclusão: fiquei eu e o resto foi tudo embora.

Os outros não vingaram?

Não.

Onde jogava em Angola?

No Lusitano Sport Clube.

E como foi a adaptação ao Belenenses?

Foi um bocado complicada, porque a família ficou lá e eu com a idade que tinha, tinha muitas saudades. A vida que eu levava em Angola era diferente. Aliás, quando eu vim a primeira ideia era que viesse para estudar. Mas só cheguei a ir à escola uma vez. Depois comecei a ser convocado. Daí nasceu um grande problema: como é que eu ia avisar os meus pais que não estava a estudar, que estava a jogar futebol. Foi complicado.

Como é que isso se resolveu?

Lá perceberam a situação. E graças a Deus tive um caminho bom.

O que estava a estudar?

Ia continuar o curso geral de comércio.

E ganhou logo lugar no Belenenses, não foi?

Foi, foi.

Do que se lembra daqueles anos no Belenenses? Tinham grandes equipas, não era?

Sim, havia colegas com grande categoria. Consegui arranjar lá o meu padrinho de casamento, que é o falecido senhor Mário Wilson. Ele jogava sempre. E depois tive como treinador também o Joaquim Meirim… E tive outro que metia medo, que era o senhor Manuel Oliveira.

Metia medo porquê?

Metia medo porque era muito ríspido. Uma vez fui ao cinema à noite. Eu não sabia as regras dos horários. Encontrou-me às 11 horas e ameaçou-me logo: ‘Amanhã vais-te embora para Angola’. Eu não estava habituado àquilo, tremia por todos os lados.

Depois não houve problema?

Não, depois não houve problema. São coisas que depois acabamos por aprender e esse é o caminho certo.

Estava a falar também do Joaquim Meirim…

O Meirim… Eu estive quase a morrer afogado na piscina por causa dele. Ele mandou-me atravessar a piscina e eu, naquele entusiasmo, mergulhei. Ia de um lado o Quinito e do outro outro jogador, já não me lembro quem, para me agarrarem se eu fosse ao fundo. Só que eu fui ao fundo e eles fugiram, sabe? (Risos) E fiquei lá aos gritos. Eu não sei nadar. Vi-me mesmo aflito.

Depois foram lá buscá-lo?

Atiraram-me uma boia. Eu agarrei-me com uma força que quase furava a boia com os dedos para me safar. Isto foi em São Pedro de Moel. Estávamos em estágio.

Também guarda boas recordações do Quinito?

O Quinito é espetacular. Nós passávamos o dia todo a rir. Era só brincadeiras. Uns a fazerem partidas aos outros e lá levávamos a vida a rir.

Também jogou no Belenenses com o Mourinho Félix, o pai do José Mourinho, não foi?

Sim, o pai do Mourinho. Este Mourinho andava lá de calções, pequenino.

O José Mourinho andava lá nos treinos?

Sim, o pai era o nosso guarda-redes. E ele ia com o pai, de calções…

O seu Belenenses foi vice-campeão nacional em 1972/73…

Foi. Tínhamos uma equipa muito boa. Tínhamos o Paco González, um paraguaio, que era espetacular. Tivemos resultados espetaculares. Viemos aqui às Antas ganhar 4-0 ao Porto.

O Freitas marcou um golo nessa época ao Barreirense na última jornada, não foi?

Marquei e o Belenenses conseguiu ir à Taça UEFA. Foi o único golo que marquei até hoje. (Risos)

Como foi o golo?

Houve um canto e um ressalto e eu apareci lá de cabeça e marquei o golo.

E como aconteceu a transferência para o FC Porto? Disse numa entrevista à RTP que foi o António Oliveira que lhe falou nisso durante um jogo, como foi isso?

Foi, foi num jogo no Restelo. Ele passou o jogo todo a falar comigo. E eu: ‘Ó Oliveira, estás aí com essa conversa toda para me distrair.’ E ele: ‘Não, no fim está o presidente à tua espera em Linda a Velha para falar contigo.’ Naquela altura o Pinto da Costa era diretor, não era presidente. E foi verdade. Acabou o jogo, fui lá e ele estava lá à espera. Estavam à espera dos dois lados. Em Alvalade estavam à minha espera também, na Porta 10A. Eu tinha a namorada que era do Porto e pensei: ‘Vou já para o FC Porto, juntar o útil ao agradável.’

O Sporting também queria contratá-lo?

Também. Estava lá na Porta 10A, à espera.

Na mesma altura?

Sim, na mesma altura. Às vezes fico a pensar como é que… Eu não tenho técnica nenhuma. Mas não sei o que é que eles viam em mim. Também estive para ir para o Sporting Gijón, para Espanha. Fomos a um torneio em Espanha e fui considerado o melhor jogador do torneio. Fui 12 vezes à seleção de Portugal. Fui à seleção do resto do mundo no Brasil, jogar com Cruyff e companhia.

Como é que aconteceu isso de ser convocado para a seleção do resto do mundo?

Surgiu o convite e lá fui. Estava ainda no Belenenses. Fui eu e o João Cardoso, que também era do Belenenses. Só sei que era só craques. Foram dois jogos e joguei os dois no Maracanã, cheinho. Eu dificilmente ia a suplente.

E como apareceu a alcunha 115? Foi ainda no Belenenses?

Foi. Eu ia a todas. Qualquer falha de algum colega já estava eu tipo pronto-socorro. E daí a Escola de Futebol 115 que criei. Foram os meus filhos que lhe chamaram assim.

Estava a dizer que ia a todas as bolas, e aliviava… Mas não era um jogador de muita técnica, pois não?

Não, não! Eu não inventava. Na seleção do resto do mundo tinha lá um central como grande nome, não me lembro quem era, metia-me aflição. Ele saía a jogar dentro da nossa área. Eu pensava: ‘Este homem deve estar maluco.’ Eu nem olhava para os outros jogadores para não me passarem a bola.

Não olhava para não lhe passarem a bola?

Pois. No Belenenses o treinador, que era o Scopelli, até dizia aos outros para não me passarem a bola.

Porquê?

Não tinha confiança. Para desarmar, eu estava sempre pronto. Agora para construir é que era um problema. (Risos)

Então e como foi a mudança para o FC Porto? Foi uma diferença muito grande?

A diferença foi grande. Também encontrei aqui craques, Cubillas e companhia, e encontrei o senhor Pedroto, que não dava hipótese…

Então?

Horários de chegada para o treino, se passasse meio minuto ele dizia logo que a oficina estava fechada, já não entrava ninguém… Mas eu tenho uma maneira de estar que consigo levar atrás de mim quase todo o pessoal. Com a minha alegria, as minhas brincadeiras… Eu estou sempre a brincar. Até em casa. A esposa fica sempre zangada comigo porque estou sempre na brincadeira. É o meu feitio.

Assim mantém-se jovem...

Mas é verdade. É o que eu digo sempre: brincadeiras e treinar crianças. Maravilha. Treinar já aquelas ratazanas mais velhas é complicado. Agora crianças, gosto. Brinco com eles, sempre na palhaçada, e vão evoluindo.

No Porto fez parte da equipa que quebrou aquele jejum de 19 anos…

Fomos campeões e bicampeões. O Porto só foi campeão depois de eu chegar… (Risos)

Como é que viveram aquele título ao fim de tanto tempo?

Foi uma alegria enorme. Para o clube e para mim, então…

Também conseguiram grandes proezas na Europa. Em 1977 ganharam 4-0 ao Manchester United….

Sim. Depois lá foi um problema… O Seninho é que nos safou.

Lá o Manchester United venceu por 5-2. Foi um sufoco?

Um sufoco e também só faltou eles cruzarem e o árbitro aparecer lá de cabeça e meter a bola na baliza. Isto da arbitragem não é de agora, é de há muito tempo…

Depois em 1979 foram ganhar a Milão, foi a primeira vez que o FC Porto ganhou em Itália. Como foi esse jogo com o Milan?

Ganhámos com um golo do Duda. O Milan tinha muito nome. E nós fomos lá e ganhámos. Ninguém estava à espera. Fomos confiantes e ganhámos. Também jogámos bem. Só me lembro que o estádio era uma coisa enorme. E aquilo tudo contra nós, foi uma loucura.

Depois a seguir jogaram com o Real Madrid, lembra-se?

Jogámos com o Real Madrid e fomos eliminados com um livre contra. Estávamos a fazer a barreira e ele não esperou, tocou logo para o lado e siga.

Nas Antas tinham ganho ao Real Madrid com dois golos do Fernando Gomes, não foi?

Exatamente.

Como recorda o Fernando Gomes?

Não gosto muito de falar… Ele é padrinho de casamento do meu filho. Éramos uma família.

Como foi depois a sua saída do FC Porto?

Eu tive uma lesão muito grave. Tive várias lesões, parti o nariz, parti o maxilar, parti a perna, tíbia e perónio. Chegou uma altura em que eu estava lesionado, ainda tinha mais um ano de contrato e o senhor Pedroto disse: ‘Ó Freitas, tens mais um ano. Se quiseres sair, podes sair.’ Ao falar assim era a mesma coisa que dizer para sair. Fui passar férias a Portimão e o Portimonense quis que ficasse lá. Fiquei. Telefonei para o senhor Pedroto, para o Porto, a dizer ‘Já assinei aqui, já não vou’. O Portimonense estava na I Divisão, e o FC Porto ficou chateado. Mas por coincidência no primeiro ou segundo jogo ganhámos 1-0 ao FC Porto. Até fui ao controlo anti-doping e tudo. (Risos)

Teve um ambiente difícil?

Não… Aqui no Porto toda a gente gosta de mim. Às vezes fico admirado, passam pessoas e dizem: ‘Olha o Freitas!’ Como é que eles ainda me conhecem? Tantos anos passados ainda se lembram.

Ainda trabalhou no FC Porto depois de terminar a carreira, não foi?

Sim, sim. Estive nas camadas jovens a treinar. Fui sempre campeão. Depois passei para a prospeção. Alguns valores que apareceram também tiveram a minha contribuição.

Quem?

Olhe, o André Pinto, o Ukra, o Fábio Espinho… Foram vários.

Depois ainda treinou o Sp. Espinho?

Sim. Fui treinar o Espinho nas últimas oito jornadas. Ganhei sete jogos e empatei um. Agora toda a gente fala dos três defesas centrais. Fui eu que lancei isso lá no Espinho. E deu resultado. Não é só chegar ali e pôr os três centrais e está a andar. A pessoa tem que conhecer os jogadores e adaptá-los, ver se dá ou não dá. Foi uma ideia que eu tive. Tinha laterais que praticamente eram extremos e decidi fazer isso. Eu tenho muitas ideias que se fosse pedir direitos de autor… Então em escolinhas, com o futebol das escolas, muitas coisas copiadas. Agora aparecem aí, criei a escola tal, qualquer um vai treinar miúdos. Estão a pôr os miúdos em competição muito cedo. A competição pode queimar logo o miúdo. Perde 15-0 e não quer ir mais. Chega a casa e o pai bate-lhe porque perdeu. O miúdo já nasce com qualquer coisa, mas depois temos de acompanhá-lo, não é metê-lo logo na fogueira. E muitos têm ficado para trás assim. Agora aparece tudo com empresários. É muito cedo. E depois quem fica queimado é o jogador.

Há quanto tempo criou a escola?

Há uns 20 anos.

E quantos miúdos tem?

Olhe… Sabe qual é o horário que a Câmara da Maia nos deu? Das 10 à meia-noite. Como é que eu vou pôr um miúdo de sete anos ou isso a treinar das 10 à meia-noite? Tínhamos 70 miúdos, até futebol feminino tínhamos e tivemos de acabar. Não há espaço para nós, não sei porquê.

Mas continua com a escola?

Sim. Agora temos sub-23 e os seniores. Ainda agora ganhámos neste fim de semana tanto nos seniores como nos sub-23. A nossa preocupação, a nossa luta aqui, é aguentarmos os jogadores. Porque vêm todos os clubes buscar-nos jogadores. Aqui é a fábrica. Vêm buscar-nos os jogadores, mas Deus é grande, saem três e entram 30. Aparecem logo.

Ainda dá os treinos e vai para o banco?

Dou eu e os meus filhos. É só família.

Já o ouvi também dizer que na sua escola recebe todos, mesmo que não tenham dinheiro para pagar mensalidade. É assim?

Exatamente. O miúdo não tem condições para pagar, também tem direito de jogar à bola. Há pais que não têm condições. E os meninos dos doutores e engenheiros que nem sabem dar um pontapé na bola estão lá a divertir-se. E o coitadinho, o filho do trolhazito ou quê, não joga. Porque estão a pedir 30 ou 50 euros por mês. Não se faz. Eu até já disse na Associação que gostava que me chamassem para um colóquio e falar. Para falar o que tenho de falar.

E tem um livro para publicar, não é?

Está aqui ao meu lado. O livro está interrompido porque cada vez acontecem mais coisas, depois tenho de voltar atrás para encaixar. O livro é sobre tudo, coisas que me aconteceram, a queda do avião…

Como foi esse acidente de avião? Foi em Angola, não foi?

Sim. O avião ia aterrar, afocinhou… Foi sorte. Depois tivemos de andar 10 quilómetros a pé no meio do mato. Depois lá chegámos a Cabinda. Eu estava a treinar o Futebol Clube de Cabinda. Tínhamos um jogo e o adversário não queria adiar.

Que balanço é que faz da sua carreira, olhando para trás?

Espantosa.

O que é que deixa mais saudades da carreira de jogador?

É o hábito, aquela rotina que tínhamos. Por exemplo, mesmo agora, se há uma semana que não temos jogos, eu e os filhos já sentimos que falta qualquer coisa.

É um bichinho para sempre…

É para sempre, é verdade. E depois é a família toda, a minha mulher também vai. Onde eu estou está a minha mulher. Onde a minha mulher está, estou eu. Há 53 anos.

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