DESTINO: 90s. Glenn Helder chegou à Luz em 1996, tentou suicidar-se em 1998, foi preso e diagnosticado com problemas psiquiátricos em 2007. 11 anos depois, é um homem de bem com a vida.
DESTINO: 90's é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias dessa década marcante do futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINO: 90's.
GLENN HELDER: Benfica (1996/1997)
O telefone toca e do outro lado surge Glenn Helder. Lembram-se dele? Foi um dos três holandeses a jogar no Benfica da década de 90. Pierre van Hooijdonk e Gaston Taument foram os outros, todos internacionais pela seleção laranja.
O Maisfutebol escolhe Helder por três motivos: primeiro, o Benfica está entre dois jogos contra o Ajax e seria sempre interessante escutar um homem que jogou no gigante de Amesterdão; depois, porque Glenn Helder completou 50 anos no passado dia 28 de outubro; finalmente, porque a vida de Helder entre 1997 e 2007 foi conduzida por um argumento de terror.
«É de Portugal? Olá, olá», atira Helder, bem disposto, novamente de bem com a vida, como faz questão de dizer. «Estou ótimo, fui novamente pai há poucos dias e vivo para a minha família.»
A conversa é prometedora. Temos muitas perguntas para colocar ao antigo jogador do Benfica, membro do plantel da época 1996/97. Curiosamente, Glenn fala, fala, fala, certamente habituado às abordagens de jornalistas nos últimos anos.
«Dou muitas palestras, tento inspirar as pessoas. Estive no lado negro da vida, sabe? Costumo dizer: ‘joguei no Arsenal, no Benfica e no Casino. Nos dois primeiros ganhei muito, no terceiro perdi tudo’.»
O único clássico Benfica-FC Porto de Glenn Helder (imagens RTP):
E Helder ri-se. O passado parece, em definitivo, resolvido. Vamos em frente com a conversa?
Como é que um jogador passa do Arsenal, da seleção da Holanda e do Benfica – tudo entre 1994 e 1997 – a uma tentativa de suicídio, felizmente falhada, em 1998?
«Não me leve a mal, isto não é falta de respeito por ninguém. Sabe que eu sofri muito, nem sempre por culpa própria. Perdi tudo nas apostas e num divórcio horrível. E ajudei muita gente, aproveitaram-se de mim, desbaratei dinheiro», desabafa Glenn Helder, num inglês imaculado. O que vem aí?
«Tive de me defender e, hoje em dia, só dou entrevistas a troco de um determinado valor monetário. É uma forma de me preservar. Palestras, exibições de bateria, entrevistas, tudo tem de ser pago. Gosto muito do Benfica e de Portugal, mas não posso responder a mais perguntas.»
A entrevista fica, naturalmente, por aqui. Glenn, sempre com extrema educação, apenas responde a mais uma questão: é baterista desde quando?
«O meu pai tinha uma banda de jazz. A música sempre fez parte da minha vida. Quando comecei a sair do futebol, ele chamou-me para acompanhá-lo na banda. A bateria salvou-me. O ritmo, o suor, o esforço, mas também o prazer da percussão foram uma verdadeira purga. Hoje dou concertos em nome próprio, normalmente em sets de DJ, de música eletrónica.»
Fim de conversa. Não há tempo para mais. «Olhe, fale com o Taument. Ele está no Feyenoord, nas camadas jovens. O problema é que é muito reservado. Se puder, veja a forma como ele reage depois de marcar um golo no Mundial de 94. Está tudo louco à volta dele e o Taument nem reage. Boa sorte!»
[n.d.r. Gaston Taument aceitou falar connosco. Mas apenas pessoalmente, olhos nos olhos. É pena Roterdão ficar tão longe]
Este Destino: 90s é publicado, apesar da exigência feita por Glenn Helder, porque esta é de facto uma história rara. Uma história que tem de ser contada, mesmo sem o discurso direto do protagonista.
Vamos a ela.
Glenn Helder nasce em Leiden, a 35 quilómetros de Roterdão e representa três clubes nos escalões de formação: Orange Groen, OVS e Ajax. Com 20 anos, o esquerdino assina pelo Sparta Roterdão e faz quatro boas temporadas neste clube, antes de rumar ao Vitesse.
Em janeiro de 1995, aos 26 anos, assina pelo Arsenal. É, de resto, a última contratação de George Graham, antes deste treinador ser demitido uma semana depois.
Custa três milhões aos gunners e recebe rapidamente uma alcunha: Lionel Richie de Highbury – os caracóis e o bigodinho a isso obrigavam.
Nesse ano de 1995, Glenn Helder é um dos mais promissores futebolistas da Holanda. Soma quatro internacionalizações e faz o passe para o golo de Kluivert, contra a Rep. Irlanda, que coloca a Laranja Mecânica no Euro96.
49 jogos e um golo depois, o Arsenal decide emprestar Glenn Helder. O salário alto afasta muitos dos pretendentes, mas o Benfica chega-se à frente e assume-o na totalidade.
Assim, no fim de setembro de 1996, Helder chega ao Estádio da Luzm desmoralizado por ter sido riscado do Europeu. Vertical, rápido, capaz de fazer os lugares de lateral e extremo, o holandês entusiasma as gentes do Benfica. Mas por pouco tempo.
Uma lesão grave adia a estreia até ao dia 22 de dezembro. Faz toda a segunda parte num 0-0 contra o Marítimo e agarra a titularidade. Despede-se a 24 de março de 1997, com 28 minutos na Reboleira, e mais um empate de águia ao peito.
12 jogos/1 golo, poucos mais de 700 minutos no Benfica. Nem honra, muito menos glória. E já um grave problema provocado com a obsessão por apostas e vida noturna.
Dezembro de 1998. Glenn Helder pede ao médico do NAC Breda, onde procura reabilitar a outrora prometedora carreira, analgésicos para combater as constantes dores no tornozelo esquerdo.
À revista Vrij, Helder conta o resto. «Conduzi até um parque de estacionamento, quase deserto. Peguei no frasco dos medicamentos e engoli-os. Todos. Perdi os sentidos e acordei já no hospital. Fui salvo a tempo por alguém que passou no local e me viu.»
Na verdade, os problemas de Helder começam anos antes. No Arsenal. O balneário tem Tony Adams (alcoólico), Paul Merson (viciado em drogas e apostas) e Ian Wright, um dos reis da noite londrina.
«Descontrolei-me. Comprei um BMW topo de gama, dei dinheiro a amigos do alheio e o Ian mostrou-me tudo o resto. Onde podia divertir-me. 50 por cento do meu drama foi provocado pelas apostas e os outros 50 pela minha incapacidade de dizer não.»
A esta vida errante somou-se um processo de divórcio catastrófico. Em 1999, Glenn Helder está na miséria. Sem dinheiro, sem vontade de jogar futebol, sem família.
No documentário C’est La Vie, Glenn fala dessa separação dolorosa. «Descobri que a minha mulher me traía. E agora? Tive de sair de casa e deixar o meu filho. E o meu filho tem de conviver com o homem por quem fui trocado. C’est La Vie.»
Até 2007, os escândalos sucedem-se. Glenn chega a dormir na rua. Nesse ano, o ex-Benfica é detido por posse ilegal de arma e submete-se a uma avaliação psiquiátrica no Instituto De Waag, na cidade de Haarlem.
«Personalidade narcisista e psicótica.» O diagnóstico é duro e obriga Glenn Helder a render-se.
Aceita a ajuda médica, volta à sua bateria, regressa pouco a pouco a uma vida normal. O futebol holandês também o ajuda na reabilitação. Bom comunicador, Glenn passa a fazer comentários para rádios e televisões, aceita subir a palcos para fazer stand up comedy e faz aparições nos relvados com equipas de antigas estrelas.
É esta a vida atual de Glenn Helder. Cada cêntimo é gerido ao milímetro, cada declaração pública é principescamente paga.
«Hei, eu gosto de Portugal e para vós faço um preço bom. Pense nisso e diga-me alguma coisa, pode perguntar-me o que quiser falo de tudo.»
O trailer do documentário C'est La Vie:
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