«Gostava de ter ido noutras condições para o FC Porto»

9 nov 2022, 09:26
Andres Madrid (Foto AP)

«Destinos» encontra Andrés Madrid, o antigo médio argentino que se destacou no Sp. Braga, foi «dragão» durante meia época e se tornou treinador por acaso. Uma conversa com muitas histórias que começa na Argentina, onde ainda se cruzou com Maradona, essa «religião»

DESTINOS é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias das décadas de 80, 90 e 00s, marcantes no nosso futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. 

Andrés Madrid chegou a Portugal no final de 2004, por uma coincidência feliz. A Liga ganhava um médio que se destacou desde logo pela qualidade e pela visão de jogo. Esteve sete anos ligado ao Sp. Braga, pelo meio passou meia época no FC Porto, em 2008/09, onde fez nove jogos e terminou como campeão nacional e com uma Taça de Portugal no palmarés.

Apesar de uma carreira limitada por lesões - «o meu corpo é muito fraquinho», diz - foi um dos rostos da ascensão do Sp. Braga a um patamar superior, mas a relação com o clube não foi sempre pacífica e terminou em rutura, como conta nesta conversa com o Maisfutebol.

Decidiu muito cedo que ficaria a viver em Portugal e é num português adoçado por aquele tom cantado argentino que recua aos tempos de juventude no seu país de origem, ele que jogou nas seleções jovens e ainda se cruzou com Maradona, essa «religião». Mas que tinha outro ídolo.

Nunca pensou ser treinador, isso aconteceu por acaso. E ao fim de duas semanas já estava a defrontar o Benfica. O Vianense deu luta, nesse jogo de Taça que terminou 2-1, com Jardel a dar a vitória às águias em cima do apito final.

Aos 41 anos, orienta o Âncora Praia na primeira divisão distrital de Viana do Castelo e diz que não traça objetivos para o futuro, enquanto explica que é a vez de ser ele a acompanhar a mulher na sua vida profissional. Mas não deixa de estar ligado ao jogo: «O stress do futebol dá-me tranquilidade.»

Como começou o seu percurso no futebol?

É uma viagem longa… Eu tinha um irmão um ano mais velho e começámos a jogar no bairro, no Regatas. Jogávamos os dois na frente e começou a espalhar-se que nós jogávamos bem. Vinham ver-nos treinadores de equipas do futebol nacional para irmos para as equipas deles. Passados uns seis meses, um ano, já estávamos a jogar no Argentino Juniors, que naquela altura participava na primeira Liga e tinha divisões de formação. Depois fomos para o Platense por meio de uma transferência de um jogador que estava na primeira Liga. O Platense ficou com direito de escolher quatro ou cinco jogadores da formação e acabámos por ir para o Platense. Com 16 ou 17 anos, em 1998, fui convocado para os seniores. Joguei durante seis meses e fui comprado por uma equipa de I Divisão, o Gimnasia del Plata. Tinha quatro anos de contrato. Estava a acabar o último ano de contrato, num ano em que estive aleijado e não tive possibilidade de jogar muito e não tinha grande vista sobre o que ia fazer da carreira. Entretanto num dos últimos jogos calhou jogar contra o River, penso eu. Eu estava na reserva, mas havia uns médios que estavam suspensos, outros lesionados, e assim de repente no dia da concentração disseram-me que ia ser titular, porque havia um jogador que não se sentia bem, ou algo assim. Já não me recordo bem. Nesse jogo por acaso estava o Rui Águas, mandado pelo Sp. Braga, pelo Jesualdo Ferreira, para ver um jogador da equipa contrária. O jogo correu-me bem e no final do jogo o meu empresário disse-me para ir ao centro de Buenos Aires ter com o mister Rui Águas. E pronto, de um dia para o outro já estava a viajar para Portugal. A 27 de dezembro estava a viajar para Portugal.

Foi mesmo assim imediato?

Foi, foi. Nunca imaginei. O vídeo chegou ao Jesualdo e logo nessa noite disseram que queriam que eu fosse para lá. Ainda por cima estava em final de contrato, era barato, baratinho… (Risos)

O que é que o Rui Águas lhe disse?

Na altura fomos comunicando entre espanhol, português e inglês. Disse que tinha gostado e tal, que era um médio polivalente, que dava jeito à equipa. Eu era um jogador relativamente novo, com 22, 23 anos, que fazia várias posições. Ainda por cima tinha representado a seleção argentina dos sub-17 aos sub-20.  E pronto, era barato. A verdade é essa também, não tinham que pagar nada. E pronto, assim cheguei a Portugal.

Começou no Argentino Juniors? Foi também o clube onde começou o Maradona, não foi?

Sim. Começaram lá muitos. O Redondo, o Cambiasso… Muitos.

Quem eram os seus ídolos em miúdo?

Na minha posição era o Redondo, sempre gostei muito do Redondo. Mas todos temos a nossa religião com o Maradona. Não há nada que supere o Diego.

Conheceu o Maradona, alguma vez esteve com ele?

Conheci-o numa festa, um jantar. Mas estive quase a jogar com ele, na altura em que ele estava a despedir-se. Eu estava no Platense, no primeiro ano em que comecei como sénior. No último jogo, acho que era o último jogo, jogávamos contra o Boca. Ele lesionou-se no aquecimento, uma coisa assim. Eu estava no banco e não tive possibilidade de jogar contra ele. Foi quase, foi quase…

O que é que sabia sobre Portugal e o futebol português quando veio?

Sabia as informações básicas dos jogadores que passaram por aqui: Caniggia, ‘Chiquito’ Bossio, o Beto Acosta. Quando estava na Argentina joguei contra o Beto Acosta também, nos últimos anos dele. Sabia mais ou menos as histórias deles, mas sinceramente de Braga não conhecia nada. Consegui informar-me onde ficava mais ou menos, que era no norte de Portugal, mas pronto, era só isso.

E como foi a adaptação a Braga?

Foi muito fácil. Na primeira semana em que cheguei o Luís Loureiro foi vendido para a Rússia e comecei a jogar. Numa posição diferente da que jogava na Argentina, mas comecei a jogar e as coisas correram bem. Jogando e correndo bem é meio caminho andado para nos adaptarmos facilmente.

Em que posição jogava na Argentina?

Jogava um bocadinho mais à frente, atrás do ponta de lança. Quando cheguei aqui o Jesualdo disse-me que ia jogar a seis e que ia treinar para isso. E pronto, logo na semana em que cheguei joguei no dérbi em Guimarães.

Causou logo boa impressão em Portugal…

Felizmente correu bem. Também tinha bons jogadores ao lado, um treinador experiente e um Braga que vinha em crescimento. Com o Jesualdo, contratou uma data de jogadores para tentar levar o Braga a outro patamar. E passado uns anos conseguimos levar o Braga a um patamar diferente.

Esses foram os anos que fizeram a diferença para o Sp. Braga subir de patamar?

Eu acho que foi muito constante. Na altura em que eu cheguei eles tinham começado há seis meses e nos restantes anos foi sempre muito regular, sem loucuras, sem grande velocidade no crescimento, mas foi sempre muito compacto. Acho que isso foi a chave para que hoje em dia o Braga seja a marca que é.

Chegou a meio da época. Essa e as duas temporadas seguintes foram o seu melhor período em Braga, não foram?

Sim. Foi enquanto não havia lesões. Lamentavelmente o meu corpo é muito fraquinho, os tendões… Nunca fiz cirurgias, só fiz uma ao tornozelo, quando estava na Argentina. Mas a nível de tendões, é muito fraco. Qualquer lesão que tinha agravava-se automaticamente. Tinha dores, tomava medicamentos e tal, mas não me deixavam estar tranquilo. Fazia um ou dois jogos e recaía… Treinava um bocado mais, três ou quatro dias, e não conseguia recuperar. É a vida.

Como aconteceu a saída para o FC Porto por empréstimo?

Eu tive duas situações para sair do país. Acabou por não se concretizar e na altura ficou assim uma relação um bocado quebrada com o presidente do Braga. Estava naquela fase em que não sabia se o clube me queria, parecia que só me queria para fazer dinheiro. Não estava a contar e de um dia para o outro cheguei às oito da manhã ao clube e levaram-me ao Porto para uma reunião. Cheguei lá e não percebia nada do que se passava. Ninguém me tinha informado. Tinham o contrato pronto e fui para lá.

Estava o contrato pronto quando lá chegou?

Estava. Na altura foi o Carlos Freitas, que estava no Braga, que fez o negócio. Chegaram a um acordo com o Braga e o Porto e fui para lá.

E como foi jogar no FC Porto?

Foi uma experiência muito gira. Gostava de ter ido noutras condições, porque só me permitiram ir por empréstimo e depois meteram valores absurdos. Não pude continuar. Mas foi uma etapa muito gira, deu-me possibilidade de ser campeão nacional e de estar noutro patamar. Gostava de ter continuado, mas já tinha a idade que tinha… Na altura em que podia ser vendido não fui vendido e depois naquela altura já tinha 28, 29 anos, já não justificava os valores que o Braga pedia.

Como é que foi recebido no balneário do FC Porto?

Era fantástico. Metade do plantel era argentino… (Risos) Tinha muitos sul-americanos. Foi muito fácil. Ainda por cima eu já conheço o Lucho há muitos anos, desde que éramos miúdos. Somos da mesma idade e conhecíamo-nos, eramos rivais. Estivemos na seleção sub-20 da Argentina e já tinha relação com ele.

Cresceram a jogar um contra o outro?

Eramos da mesma divisão e fomos sempre rivais. Ele estava no Huracán e eu no Platense. Coincidimos na seleção e já nos conhecíamos bem.

Como foi o seu percurso nas seleções argentinas?

Comecei nos sub-17, sub-18, depois sub-20. Não era frequente na seleção, mas todos os anos acabava por ir a um ou outro jogo.

Vivia de forma especial as chamadas à seleção?

Sim. E depois também tive contacto com a seleção A. Na altura fazíamos muito sparring, que é quando os jogadores vão fazer número enquanto não chegam os jogadores da Europa. Chamavam alguns de nós para irmos lá e tive contacto com a velha guarda da seleção. Ayala, Verón, Sorin, Batistuta, Crespo… Eles eram jogadores da seleção A que iam treinar para os jogos que tinham de competições, de qualificação, e nós eramos os miúdos que «enchíamos» os treinos enquanto eles não chegavam.

É uma boa experiência para jovens jogadores, não é?

 É fantástico. Treinar com jogadores assim, fantástico. Foi na altura do Marcelo Bielsa. Dava sempre para aprender qualquer coisa.

Voltando ao FC Porto. O Lucho foi então um padrinho perfeito, ficou logo integrado?

Foi, foi. E depois tive sempre muito boa relação com os portugueses também. Quando eu cheguei não havia argentinos aqui, nem sul-americanos. Então fui obrigado a aprender português ou inglês. Tive que adaptar-me e tive muito boa relação, ainda tenho, com os portugueses. Também me dava muito bem com os jogadores portugueses que estavam no Porto.

Quando foi como chegou ao FC Porto? Havia alguma receção especial aos jogadores que chegavam?

Não. Quando eu cheguei foram jogos uns atrás dos outros. Não tínhamos tempo nem para descansar, era basicamente viagens e hotel. Não havia tempo para nada. Nesse ano fomos campeões nacionais e depois ganhámos a Taça de Portugal.

Com o Jesualdo Ferreira, com quem já tinha trabalhado em Braga…

Sim

Depois do FC Porto voltou a Braga e a época seguinte é aquela em que chegam ao segundo lugar…

Sim, com o Domingos Paciência.

Mas o Andrés já jogou menos.

Sim. Comecei a jogar os jogos europeus, na altura da classificação para a Champions. Entretanto tive ali uma desavença com a direção, porque tive outra vez possibilidade de sair e não me deixaram. Pronto. Acabou por complicar um bocado a minha estadia em Braga outra vez.

Mas ainda ficou para a época seguinte…

Sim, no ano em que o Braga acabou por chegar à final da Liga Europa.

Nessa época, 2010/11, deixou de jogar em dezembro e não voltou. Teve a ver com essa desavença?

Sim. Eu anteriormente tive outras situações para sair. Era o momento para o clube fazer dinheiro comigo e eu ter um contrato melhor. Acabaram por ser várias situações em que não me foi permitido, porque precisavam que eu ficasse lá. E acabou por prejudicar-me de certa forma. Entretanto, quando chegou essa fase eu já estava sem paciência, era muito conflito. E pronto, eles decidiram que eu tinha de treinar sozinho no Axa na altura de finalizar o contrato. Queriam que eu já não fizesse parte do plantel. Acabei por treinar sozinho durante seis meses.

Essas divergências tiveram sempre a ver com a questão de não haver acordo para o Andrés sair?

Eles tinham noção de que pelo valor que podiam pagar era difícil encontrar um jogador como eu, já com experiência. Mas ao mesmo tempo pensavam que eu era um craque que tinha de ser vendido por determinada quantidade de dinheiro. Eu fartei-me de dizer que era mais um jogador e pedir que percebessem que havia uma certa idade para ganhar dinheiro comigo. Eles nunca conseguiram perceber essa questão e acabámos por nunca nos entendermos.

Depois fez ainda mais uma época no Nacional e teve uma passagem por Angola. Como foi isso?

Foi uma aventura. As lesões já não me permitiam, os clubes da Europa não se arriscavam comigo, porque já tinha uma idade difícil para o futebol e sabiam do meu historial de lesões. E pronto, foi a oportunidade que tive de continuar a jogar como profissional. Fui com muitos portugueses, mesmo o staff era português. O treinador era o Henrique Calisto. Fomos para lá e foi uma experiência…

Terminou a carreira no Vianense na mesma época em que começou como treinador...

Eu já não queria jogar mais. Estive no Libolo em 2013 e comecei como treinador em 2016. Não queria jogar mais futebol. Estava aqui em Viana, a minha mulher tem uma empresa aqui, e joguei um ou dois jogos pelo Vianense. Entretanto, o treinador saiu e a direção perguntou-me se queria assumir o comando técnico do clube. Eu nunca pensei ser treinador, se bem que muitos treinadores me tenham dito que podia seguir essa carreira. Mas nunca levei a sério.

Nunca tinha pensado ser treinador?

Não, sinceramente não. Entretanto convidaram-me, falei com o plantel e perguntei se queriam que ficasse como treinador deles. Eles disseram que sim e pronto. Mal aceitei, fizemos uma eliminatória da Taça de Portugal e a seguir calhámos com o Benfica. Para começar de mansinho… (Risos)

Foi uma estreia de fogo. Mas complicaram a vida ao Benfica, não foi?

Sim, marcámos um golo e o Benfica só ganhou aos 92 minutos. Foi uma experiência fantástica.

Como é que preparou esse jogo?

Na altura liguei a ex-treinadores meus, a amigos do futebol, e tinha falado também com o Luís Freitas Lobo, que é um grande amigo meu. Tentei falar com eles, analisar o que se podia fazer, dentro das condições que eu tinha, para tentar um resultado que fosse bom para os jogadores e para o clube.

Tentou informar-se sobre a melhor forma de abordar o jogo?

Eu tinha conhecimento enquanto jogador. Mas não é fácil. Hoje em dia já tenho cursos e tal, é diferente. Mas no início não é fácil ter que lidar com isso, e foi passadas duas semanas de chegar… Basicamente informei-me sobre questões como se tinha que fechar mais pelas linhas e deixá-los pelo meio, se tinha que deixar um central entre linhas e tentar roubar cada bola que entre no meio e tentar sair em transições para não ter que correr 40 metros todo o tempo… Foi mais ou menos por aí. Acabou por correr bem, tentámos jogar da melhor forma possível e conseguimos fazer um bom jogo.

A partir daí fez cursos de treinador?

Exatamente. E acabei por gostar mais disto do que de ser jogador.

Porquê?

É muito mais complexo. São muitas dinâmicas que temos de perceber. E nestas divisões inferiores dá muito mais trabalho do que as pessoas pensam. Temos de pensar em tudo. Temos de ser médicos, confidentes, roupeiros, motoristas, temos de perceber de tudo um pouco.

Qual é a sua ambição como treinador?

Não tenho aspirações concretas. Estou num momento da minha vida em que dou mais prioridade à família, ao negócio que tenho com a minha mulher, que é de decoração de eventos, quintas, casamentos. Ocupa muito tempo, e fins de semana também. É complicado, mas agora é a minha vez de a acompanhar a ela. Mas estar ligado ao futebol dá-me tranquilidade. O stress dá-me tranquilidade. É difícil de explicar, mas o stress do futebol deixa-me satisfeito emocionalmente.

Quando é que decidiu que ficava a viver em Portugal e não voltava para a Argentina?

Eu cheguei em 2004 e penso que foi em 2005.

Foi logo?

Foi. Às vezes digo que muitos portugueses não têm noção do paraíso em que estão. Aqui têm tudo do bom e do melhor, se tentarmos ver com os olhos que temos que ver. Acho que é um povo fantástico, tem tudo.

Já se sente português também?

O documento diz luso-argentino. Por isso… As minhas filhas são portuguesas também, é tudo português.

Voltando à sua carreira. Consegue isolar um momento mais especial?

Assim de repente… A primeira classificação do Sp. Braga na Champions, foi algo muito bom, muito intenso. E no FC Porto, se calhar em pouco tempo aprendi coisas que não aprendi em sete anos no Braga.

Que tipo de coisas?

A intensidade com que se vivem os momentos que se têm de viver. Determinados jogos, que no Braga também se jogavam para ganhar, claro, mas no Porto era aquela coisa de não poder perder. Não podes perder pontos. Esse clique de ser ganhador, de jogar sempre para a vitória, foi um aspeto que eu gostei muito de viver. E que me ajudou agora também enquanto treinador a saber diferenciar as coisas. Eu passei também pelo outro lado e tentei transmitir isso aos meus jogadores, em todas as equipas em que estive. Não é uma pressão má como eles a sentem. É uma pressão diferente. Tu entras já com uma pressão boa. É mais fácil de explicar a quem jogou. É a pressão de estares preparado para aquilo e que só te alimenta a força de que precisas para conseguir. Entendendo esse ponto, acaba por fazer muita diferença na cabeça dos jogadores.

Houve algum treinador que o tenha marcado mais?

Todos me ensinaram alguma coisa. Mas tenho especial carinho pelo mister Jesualdo, que foi quem me trouxe para aqui e para o FC Porto, e com quem estive mais tempo. Acabou por ensinar-me muito sobre o futebol e a vida também.

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