É referência da geração de ouro que levou Portugal ao topo da modalidade. A história do miúdo que começou a jogar aos oito anos, que um dia chorou por não conseguir uma medalha, que aos 18 anos emigrou sem saber bem para onde, que perdeu a conta às medalhas ganhas e que chegou ao sétimo lugar do ranking mundial, num desporto global como poucos.
A caminhos dos Jogos Olímpicos, o Maisfutebol traz uma série de conversas com atletas portugueses que estarão em Paris. A delegação nacional tem 73 atletas. Estas são as suas histórias
Marcos Freitas vai estar em Paris nos seus quintos Jogos Olímpicos. «O tempo passa rápido, parece que a primeira vez, em Pequim 2008, foi há poucos anos.» É referência da geração de ouro que mantém Portugal há anos na elite mundial da modalidade. Um percurso inimaginável para o miúdo que começou aos oito anos a praticar ténis de mesa, que um dia chorou por não conseguir uma medalha e que aos 18 anos emigrou para se tornar profissional sem saber bem qual seria o seu destino.
«Se me dissessem nessa altura que ia chegar onde cheguei, não acreditava», sorri. «Mesmo quando tinha 18 anos e já era o melhor jogador da Europa de juniores nunca achei possível alcançar patamares tão altos», diz Marcos Freitas, hoje com 36 anos. «Em Portugal, antes de nós nunca houve alguém que conseguisse chegar sequer ao top 100 mundial. Falávamos do top 100 mundial como inalcançável, porque no ténis de mesa existem milhares de atletas no ranking. Há muitos atletas a jogar no mundo todo, é um desporto muito global.»
Como nasceu uma geração de ouro
Eles chegaram lá. Marcos Freitas, Tiago Apolónia e João Monteiro, hoje com 40 anos e que também faz parte da equipa que estará em Paris, mas como reserva, são os rostos dessa mudança. «Fomos os primeiros a sair de Portugal, fomos os primeiros a quebrar essa barreira do top 100, depois top 50, top 20, eu estive no Top 10. Era tudo uma incógnita, parecia que era impossível. Mas pelos vistos não é.»
Foi uma conjugação de talento, mas não só, diz. «Tínhamos um grande talento, uma grande ambição de tentar chegar mais longe. Por sermos três, se calhar também ajudou a competição entre nós, para ver quem conseguia chegar mais alto, e para nos ajudarmos uns aos outros», observa. «Outra circunstância decisiva foi arriscarmos e sairmos do país. Se tivéssemos continuado a jogar a Liga portuguesa nunca iríamos atingir este nível. Jogamos nas ligas mais fortes do mundo e foi isso que nos deu outra rodagem», observa. «Também é muito importante realçar o apoio familiar que tivemos sempre. Esses foram os ingredientes que ajudaram a conseguir que Portugal tenha cinco presenças olímpicas consecutivas numa modalidade que antes de nós nunca esteve representada nos Jogos Olímpicos.»
Marcos Freitas chegou a atingir o sétimo lugar do ranking mundial. Hoje é 18º e faz parte da equipa que assegurou para Portugal a qualificação direta por equipas nos Jogos Olímpicos - terá como parceiros Tiago Apolónia e João Geraldo -, garantindo de caminho a presença de dois atletas também no torneio de singulares. Passaram os últimos dias antes da partida em estágio na Alemanha, uma oportunidade para reproduzir o ambiente que irão viver em Paris. Foi a partir de Saarbrücken que falou com o Maisfutebol. «Fizemos este estágio porque aqui têm muito boas condições. Têm as mesas em que vamos jogar nos Jogos Olímpicos, a bola, o chão. Temos as condições que vamos ter em Paris», conta, acrescentando que esta foi também a oportunidade de trabalhar ao lado de atletas de outras seleções.
A maratona da qualificação olímpica: «Decidiram complicar»
Para trás ficou uma qualificação «muito difícil», uma longa maratona. «Foram várias etapas, andámos a tentar qualificar-nos durante quase um ano e meio. Começou com o apuramento para o Europeu. Eram quatro jogos e vencemos o grupo. No Europeu, era preciso ficar nos oito primeiros para nos classificarmos para o Mundial. Conseguimos ficar em terceiro. E depois no Mundial tínhamos de ir aos quartos de final também para ter o apuramento para os Jogos Olímpicos. Ficámos em quinto, por isso acabou por correr muito bem», conta.
«Mas bastava falhar a qualificação para o Europeu e já não havia hipótese. Por isso foi uma qualificação um pouco estranha, tendo em conta que há três anos, para Tóquio 2020, foi apenas um torneio de qualificação em que se qualificavam x equipas e estava feito. Desta vez decidiram complicar», continua. «Foi difícil, mas acabou por correr bem. Na qualificação para o Europeu ainda tivemos alguns problemas, eu também estive lesionado, mas conseguimos. O terceiro lugar no Europeu por equipas e um quinto lugar no mundo são dois resultados fantásticos.»
O miúdo que começou a competir com um nome que não era o dele
Marcos Freitas corre mundo há mais de 20 anos, mas as suas raízes ainda estão na Madeira, onde começou a jogar, no Grupo Desportivo do Estreito de Câmara de Lobos. Foi por influência do pai, que jogava nos tempos livres, que decidiu experimentar. Percebeu-se logo que aquele miúdo de oito anos tinha algo de especial, mas havia um problema. Nas primeiras competições, ele não podia correr com o seu nome. Ficou uma história para contar.
«Eu entrei a meio de uma época desportiva. Já tinha acabado o período das inscrições. Só que o treinador achava que eu tinha algum jeito e que estava na altura de participar em torneios. No início da época havia muitos miúdos a inscrever-se, mas muitos deles desistiam. Então, para não esperar mais de meio ano, acabei por jogar com o nome doutro atleta os primeiros torneios oficiais que fiz», ri-se. «O treinador escrevia o nome do atleta no meu braço para não me esquecer.»
Ainda praticou outros desportos, andou no judo e jogou futebol, mas «queria mesmo era jogar ténis de mesa». Também porque sempre gostou mais de desportos individuais. «Quando se ganha sensação é outra, sabemos que fomos nós que fizemos. Quando se perde também é mais duro, acredito. Mas sempre gostei de depender só de mim.»
A medalha mais especial aos… nove anos
Foi já em nome próprio que ganhou a primeira medalha. Tinha nove anos e não a esquece. Tem um lugar especial na sua memória e é dela que fala quando se pergunta qual a melhor recordação que tem da carreira, ele que foi campeão da Europa por equipas com Portugal, que conquistou as grandes Ligas europeias, que venceu Ligas dos Campeões e tem dois quintos lugares nos Jogos Olímpicos, um individual, em 2016, e outro por equipas, em 2012.
«Nunca me esqueço do dia em que ganhei a primeira medalha. Era um torneio regional na Madeira. Não era fácil ganhar medalhas, porque eu jogava sempre com miúdos mais velhos, com mais experiência. Fiquei várias vezes ali à porta das medalhas, que normalmente eram para os quatro primeiros», recorda. «Nesse torneio voltei a perder nos quartos de final. Então comecei a chorar, a dizer aos meus pais que me queria ir embora. Só que nesse torneio, não sei porquê, davam medalhas aos oito primeiros. Afinal, tinha ganho medalha e não sabia. Quando descobri que tinha uma medalha fiquei muito feliz.»
O «vício» de jogar ténis de mesa e de ganhar
Jogar ténis de mesa e ganhar tornou-se, diz, «um vício». «Gostei cada vez mais e fui ficando. Depois de conseguir a primeira medalha já não havia hipótese. Quando comecei a jogar torneios, acabou quase por ser um vício. Querer melhorar, querer ganhar a primeira medalha e depois querer ganhar o primeiro título regional e depois o primeiro título nacional e depois representar a seleção. Foi essa ambição que fez com que continuasse.»
Foi um talento precoce. Aos 11 anos já representava as seleções nacionais. «A primeira vez foi na seleção dos mini-cadetes, num torneio ibérico. Jogámos em Badajoz. Foi a primeira vez que saí de Portugal para jogar ténis de mesa. Foi ali mesmo ao lado, quase nem conta», ri-se. «Ganhei logo o torneio. Na altura a Espanha tinha uma seleção bem melhor do que a portuguesa. Lembro-me de ganhar logo o torneio e de ficar muito feliz. E a partir daí foi sempre foi sempre a subir. Com 15 anos já ia à seleção de seniores, era um miúdo já a jogar com jogadores de trintas.»
Emigrar aos 18 anos, sem saber onde ficava o clube
Aos 18 anos, foi campeão da Europa de juniores. E então abriu-se um horizonte que ele nunca imaginara. Foi abordado para jogar na Alemanha, para fazer carreira a jogar ténis de mesa. «Era uma coisa que nenhum de nós conhecia, não se sabia que havia condições para se viver do ténis de mesa, para sermos profissionais. Mas quando venci o Campeonato da Europa recebi várias propostas da Bundesliga, da primeira divisão alemã. E fiquei muito surpreendido.»
Os pais torceram o nariz. Mas acabaram por aceder, com uma condição, a de se inscrever na universidade, no curso de radiologia. «Decidimos arriscar ir à experiência um ano, deixar os estudos. Mas paguei as propinas durante um ano, sem lá ir. A universidade podia esperar, o desporto não podia esperar. Então foi nessa condição, e eu lembro-me de prometer aos meus pais ‘Ok, vou um ano se não correr bem volto, jogo em Portugal, estudo e tenho uma vida normal.»
Era tudo novo. «Antes de nós, o melhor atleta português tinha sido talvez 250 ou 300 do ranking mundial. Ninguém tinha contactos com os presidentes dos clubes, com os treinadores, ninguém conhecia ninguém. Em Portugal estávamos isolados, não havia interesse nenhum dessas ligas. Eu viajei para a Alemanha e sabia o nome do clube, conhecia os jogadores, porque já eram internacionais, mas não sabia mais nada. Não sabia quem era o treinador, não sabia em que zona ficava na Alemanha. Fui para lá, basicamente às cegas. Não sabia onde é que ia ficar a dormir.» Era 2005 e eram também, lembra, outros tempos: «Não era como agora, que vamos ao Google Maps e metemos a morada e sabemos onde é que vamos ficar.»
«Podia ter corrido mal e hoje era radiologista»
O contacto tinha sido feito através de uma marca alemã que patrocinava Marcos Freitas, que o ajudou na integração. «Fui à confiança, mas podia correr mal. Eu podia começar a época mal, perder quatro ou cinco jogos seguidos, perder confiança, o treinador metia-me no banco e um ano depois voltava para Portugal e era radiologista hoje», sorri. «Podia ter acontecido, não era impossível.»
Correu bem. «Logo no primeiro ano acabei quase 50/50 a nível de vitórias e derrotas. Quiseram logo fazer novo contrato para mais três anos e foi aí que percebi que conseguia fazer carreira e que tinha e que talento e valor suficiente para jogar nestas Ligas mais fortes.»
Jogou em dois clubes na Alemanha, depois também foi para França, onde manteve uma longa ligação ao Pontoise, o clube a que voltou agora. «Foi onde evoluí mais. Quando chegue ao Pontoise penso que estava por volta do número 60 do ranking mundial, e cheguei a ser número 7. Ganhámos diversos títulos da Liga francesa, Liga dos Campeões também novamente», recorda. Também esteve na Áustria e na Rússia. A passagem de quatro anos pelo Fakel-Gazprom foi interrompida em 2022, por causa da invasão russa da Ucrânia.
O fim da «super equipa» na Rússia, com a invasão da Ucrânia
«Tive de analisar muito bem a situação. Aquilo aconteceu para surpresa de toda a gente. Felizmente não estava na Rússia, estava em Portugal. Tinha que voltar lá e acabei por já não ir, porque achámos que não havia condições para continuar a jogar lá», diz, a lamentar o fim de uma «grande equipa»: «Chegámos a ganhar a Liga dos Campeões também, era um clube que tinha apostado imenso no ténis de mesa. Foi uma pena a esse respeito, a nível do clube e das pessoas, de que gostava imenso. Foi um balde de água fria para todos. Éramos uma super equipa, tínhamos atletas que já foram número 1 do mundo. Aprendi imenso com eles. Dávamo-nos todos muito bem, mas quando aconteceu a invasão à Ucrânia, a equipa simplesmente desapareceu. Ainda existe, mas joga só competições domésticas. Os grandes jogadores estrangeiros que faziam parte da equipa acabaram todos por sair. Foi por isso também que eu voltei a França.»
Quantas medalhas ganhou? «Não faço ideia»
Voltou para ser de novo campeão francês pelo Pontoise. «Já se tinham passado oito anos desde a última vez que este clube tinha sido ser campeão. Foi quando eu joguei também lá antes», conta.
A ligação ao Pontoise também permite a Marcos Freitas viver em Portugal. No Porto, perto do centro de treino de alto rendimento, em Gaia. «Estou com a seleção nacional, treinamos todos juntos em Portugal. Vou a França só fazer os jogos e volto a Portugal para preparar as provas internacionais», conta, admitindo que é «muito bom» poder fazer essa gestão do tempo.
As medalhas que ganhou, essas, continuam na Madeira, em casa dos pais. Ele não sabe quantas são, perdeu-lhes a conta. «Não faço mesmo ideia. Se for a contar com títulos nacionais e regionais, tenho lá para casa seguramente mais de 100. Está tudo guardado a casa do meu pai. Tenho também comigo algumas mais recentes no Porto, mas tenho muita mais na Madeira, porque costumo levar para lá e para ficar lá tudo guardado.»
Tentar «igualar ou melhorar» o quinto lugar, a meta para Paris
Para os Jogos Olímpicos de Paris, Marcos Freitas não faz contas a medalhas. Mas esse é, claro, um sonho. «O objetivo é sempre chegar o mais longe possível. O ténis de mesa não é uma prova de um dia. Vou participar na prova individual e na prova de equipas. Cada prova é uma semana, por isso são 14 dias, todos os dias a jogar com adversários muito fortes», diz, lembrando que também depende do sorteio. «Eu tenho um quinto lugar individual e um quinto lugar em equipas, que não é medalha, mas é um diploma olímpico. Adorava conseguir igualar ou melhorar esse resultado. Agora, não costumo pensar tão à frente. Mas já cheguei muito longe em muitas outras provas. É isso que acredito que é possível também fazer nesta.»
Por equipas, Marco Freitas acredita que Portugal pode ir longe. E cumprir também um objetivo de sempre. «Nas equipas é um quadro só de 16. Nós somos a oitava melhor seleção, por isso temos a responsabilidade de chegar aos quartos de final. Tenho a certeza que vai ser difícil, mas somos uma boa seleção, experiente. E se conseguirmos ganhar o primeiro jogo, chegar aos quartos de final, tudo é possível. Depende dos nossos adversários, depende do nosso nível que vamos apresentar no dia, depende muita coisa, mas é tudo em aberto. Já estivemos muito perto de ganhar uma medalha em 2012, foi realmente um jogo muito equilibrado contra a Coreia. Perdemos, mas continua a ser o nosso sonho, chegar alto e chegar aos últimos dias de prova.»
Era, diz, um prémio justo para a geração que levou o ténis de mesa português ao topo do mundo. «Sem dúvida. Nós temos títulos e muitas medalhas na Europa, a nível de Mundiais ficámos à porta das medalhas três ou quatro vezes. Estamos sempre tão perto de conseguir uma medalha mundial, mas ainda não conseguimos, quiçá vá ser agora nos Jogos Olímpicos. Vamos preparar da melhor maneira, vamos dar o nosso melhor e vamos esperar pelo sorteio.»
O prémio que a sua geração merecia e claque portuguesa em Paris
Essa geração, acredita, já desbravou um caminho que mais portugueses podem explorar. Há potencial nos atletas mais jovens, diz Marcos Freitas, embora não em grande número. «Nas camadas jovens temos poucos talentos, mas bons. Não temos um leque de 10 jogadores, temos mesmo só três ou quatro e temos de fazer todo o possível para que esses atletas consigam evoluir. Principalmente nos masculinos, vejo alguns atletas jovens que, se fizerem um bom trabalho, acho que conseguem no futuro também fazer carreira e ter bons resultados.»
Quanto ao seu próprio futuro, diz que ainda não pensou muito nisto. «Estou bem, estou confiante, vou ser o 12º melhor jogador nos Jogos Olímpicos, por isso penso que continuo a ter bom nível. Estou motivado, agora daqui a quatro anos não sei», diz. «Se continuar a ter um bom nível e conseguir ajudar a seleção, se estiver motivado e se estiver bem de saúde, sem grandes lesões, é óbvio que adoraria estar novamente nos Jogos Olímpicos em Los Angeles, a representar Portugal. Agora também sei pela minha experiência que quatro anos é muito tempo. Para já é dar o máximo nestes Jogos Olímpicos. Vou com muita experiência, tentar desfrutar ao máximo. E depois logo vejo como corre a vida.»
Os Jogos de Paris serão, continua, especiais. Mesmo para ele, na quinta presença olímpica. «É óbvio que não me deixo deslumbrar como na primeira vez, em 2008. Já vou com outra atitude. Estar junto não só da comitiva portuguesa, mas também dos atletas de todos os outros países, para quem vai a primeira vez é um choque. A aldeia olímpica é realmente especial. Mas para mim o mais importante são mesmo os resultados.»
E além disso o ténis de mesa português deve ter claque nas bancadas, conta. «Eu jogo muito perto de Paris, nos arredores de Paris. Temos sempre portugueses que nos vêm ver e eles disseram que iam estar nos Jogos Olímpicos a apoiar-me. É muito difícil comprar bilhetes para os Jogos e não sei se vão conseguir os bilhetes para a sessão em que eu vou jogar. Mas acredito que vai haver portugueses no pavilhão a apoiar.»