Destino Paris: Iúri Leitão, o campeão do mundo que não conta medalhas

8 ago, 19:54
Iuri Leitão (Foto Comité Olímpico de Portugal)

Começou na estrada e descobriu a pista quando era adolescente, atraído pela velocidade. No velódromo, soma resultados que o colocaram entre a elite mundial. O percurso do ciclista que cumpriu um sonho com o titulo de Glasgow e outro com o apuramento olímpico, uma estreia para o ciclismo de pista português. E que antecipa com expectativa o que vai viver em Paris, mas evita colocar a fasquia muito alta

ARTIGO PUBLICADO A 10 JULHO, recuperado esta quinta-feira, depois da histórica conquista da medalha de prata no Paris 2024

A caminho dos Jogos Olímpicos de Paris, o Maisfutebol traz uma série de conversas com atletas portugueses já qualificados. A delegação nacional tem 73 atletas. Estas são as suas histórias

Foi a velocidade que o atraiu no ciclismo de pista. Também compete na estrada, mas é no velódromo que Iúri Leitão ganha asas sobre rodas. Chega a Paris como campeão do mundo de omnium, disciplina que junta várias provas. Tem mais de uma dezena de medalhas internacionais e perdeu a conta às que levou para casa em competições nacionais. Chega aos seus primeiros Jogos Olímpicos rodeado de expectativa, mas sem querer elevar demasiado a fasquia.

Será a estreia de Portugal na competição masculina de ciclismo de pista, um apuramento com sabor ainda mais especial depois de falhada por muito pouco a qualificação para Tóquio 2020. «Era o foco de toda a minha a minha preparação até agora. E ver esse sonho realizado é muito bom. Já tínhamos noção de que a qualificação matematicamente estava conseguida, mas nunca quisemos criar demasiadas expectativas, porque sofremos uma grande desilusão há quatro anos e não queríamos passar por isso outra vez. Tivemos sempre os pés bem assentes, fizemos um trabalho muito certinho, conseguimos lugares muito bons e regulares», diz Iúri Leitão, a recordar o momento em que o apuramento finalmente ficou confirmado, em abril. «Fizemos uma pequena celebração, mas sem grande euforia, porque o trabalho tinha de continuar a ser feito. E bom, aqui estamos.»

Um recorde para o ciclismo português: «Temos evoluído muito»

Portugal terá três representantes portugueses no ciclismo de pista. Iuri Leitão vai competir em omnium e vai fazer dupla com Rui Oliveira na vertente de madison. E volta a estar presente Maria Martins, que em Tóquio assegurou a estreia olímpica portuguesa em pista, na competição feminina, e conseguiu logo um 7º lugar em omnium.

Em Paris, Portugal vai estar aliás representado em todas as disciplinas do ciclismo exceto o BMX. Além da pista, estará na estrada, com Nélson Oliveira e Rui Costa, mais Daniela Campos na competição feminina, e no BTT, com Raquel Queirós. É a maior delegação de sempre, a espelhar, diz Iúri Leitão, o bom momento da modalidade. «Isso, para mim, diz que o nosso ciclismo tem evoluído muito. Temos tido cada vez mais atletas de mais modalidades diferentes a evidenciar-se e a crescer, o que se tem visto nos resultados. Vemos agora também no número de presenças olímpicas. Acho que isso reflete muito do trabalho e da nossa evolução como país, como cultura.»

Iúri Leitão fala com o Maisfutebol ao final de mais um dia que, como todos, «anda muito à volta do da bicicleta». Nas semanas que antecedem os Jogos de Paris a rotina não mudou muito. «Temos um método de trabalho que tem dado resultados e não achamos que seja altura de inventar. Tomo um pequeno-almoço adequado ao tempo e intensidade de treino, depois treino ao final da manhã, para apanhar a altura mais quente do dia», descreve. O resto do dia é passado em várias tarefas, por exemplo «a manutenção da bicicleta». Depois há tempo para a recuperação, no dia seguinte recomeça tudo.

A pedalar desde os seis anos, primeiro «sem voto na matéria»

A bicicleta é a sua vida há muito tempo. Desde os seis anos, quando o ciclista natural de Viana do Castelo começou a pedalar. «No início ainda era muito criança, era muito novo para poder ter voto na matéria», sorri. Depois, ganhou-lhe o gosto. «Eu fui levado para o ciclismo por um amigo do meu pai que tinha sido colega de equipa dele quando ele competiu. Entrei para o ciclismo com seis anos, fui crescendo com o desporto na minha vida e fui-me apaixonando cada vez mais. Sempre vivi o ciclismo com muita paixão. Sempre foi aquilo que eu gostaria de ser e parece que foi uma aposta ganha. Tive a sorte de poder fazer disso a minha vida.»

Começou cedo a conseguir bons resultados. Esse sucesso prematuro foi bom, mas agora, olhando para trás, acha que «não é assim tão importante». Uma reflexão que pode ser também um conselho para os mais novos. «Alguns jovens ficam desanimados porque não conseguem ter vitórias. Existem miúdos muito dominadores, muitas vezes também porque crescem muito mais rápido e isso desanima quando somos muito jovens. O sucesso é sempre bom. Mas eu hoje vejo que isso não é tão fundamental assim quando pensamos a longo prazo no que é ser desportista profissional.»

O seu percurso fez-se na estrada, antes de aparecer a pista. A modalidade não tinha tradição em Portugal, mas teve uma evolução notória a partir de 2009, quando foi inaugurado o velódromo nacional em Sangalhos. «A partir daí foi criada a seleção e foi criado um projeto de pista», observa Iuri Leitão. Ele ainda era muito novo, mas começou a interessar-se.

«Nem tinha muita noção do que era a pista»

«Eu nem tinha muita noção do que era a pista. Comecei a acompanhar ciclismo de pista na televisão. A adrenalina que aquilo transmite é muito grande e sempre tive muita vontade de experimentar. A velocidade sempre foi uma coisa que me inspirou. E com o passar dos anos fomos tendo alguns ciclistas a evidenciar-se. Acho que os primeiros grandes resultados que tivemos foi através dos gémeos Oliveira e eles são um pouco mais velhos do que eu, têm mais dois anos.»

É de velocidade que começa por falar quando abordar as principais diferenças entre as duas versões do ciclismo. «Na pista, as provas têm uma velocidade média muito alta. A estrada tem uma componente mais de endurance, de resistência. Claro que também tem uma componente tática e bastante velocidade, mas a pista é mais intensa, são provas muito mais curtas», diz. Além das diferenças óbvias, da bicicleta à aerodinâmica: «Não temos transmissão, temos de escolher um andamento só para levar para a prova toda. Não temos travões, a bicicleta tem um carreto fixo, não podemos parar de dar aos pedais. E claro, depois entra também muita a aerodinâmica, que é muito importante para se poupar energia.»

Há ainda a questão tática, que é particularmente relevante na pista, nota. «Em muitas ocasiões tive bons resultados quando não estava na melhor forma muito porque trabalhámos bem a parte tática. Isso foi das coisas que mais me inspirou e mais difere da estrada», diz, deixando alguns exemplos. «Tem a ver com a forma como abordamos a corrida, como podemos poupar energia, como podemos jogar com a tática dos adversários, às vezes dar a entender que não estamos no melhor momento de forma… Em provas mais longas, que têm vários sprints, tentar por exemplo não nos fazermos logo aos primeiros porque sabemos que na parte final vai haver mais fadiga e aí pode-se fazer mais diferença.»

Entre a pista e a estrada, o compromisso para «entregar resultados nos dois lados»

Experimentou a pista pela primeira vez quando tinha 16 anos, de início como complemento à estrada. «Enquanto a temporada de estrada não começava servia de preparação, porque no Inverno é sempre complicado com a chuva e o frio e dentro da pista as condições são muito melhores. Eu também estava numa equipa que é sediada na cidade onde está o Velódromo e tínhamos a oportunidade de treinar muitas vezes lá.»

Aquilo que «começou por ser uma espécie de hobby» foi crescendo e, quando chegou a oportunidade de se juntar à seleção de pista, não hesitou. «A partir daí evoluí muito, também por causa do suporte que tive por parte do meu treinador», diz.

Neste momento, a pista é o seu principal foco. Embora continue a competir na estrada. No ano passado, por exemplo, o ciclista que representa a Caja Rural venceu a Volta à Grécia. «A estrada é aquilo que eu sempre fiz na vida. Mas com este objetivo dos Jogos Olímpicos a ser cada vez mais real, nos últimos anos foquei-me bastante nisso. Foi conversado com a minha equipa e chegámos a um acordo para poder estar ao serviço da seleção e ao serviço da equipa, entregar resultados nos dois lados. Enfim, tenho de fazer uma gestão do calendário durante o ano. Mas eles também têm sido flexíveis.»

Por enquanto, vai conciliando as duas vertentes, como muitos dos atletas que irá defrontar em Paris. Não sabe até quando o fará. «Ainda não sei exatamente o que quero fazer no futuro. Agora estou focado agora no que tenho para fazer, depois talvez possa focar-me mais na estrada ou talvez continue a dedicar-me à pista.» É uma decisão para mais tarde, tal como o que fará quando terminar a carreira de atleta.

«Eu na verdade não sou o melhor exemplo», sorri, a falar sobre o seu percurso para lá do ciclismo. «Concluí os estudos no 12º ano. Senti que precisaria de mais tempo para me dedicar a 100% ao ciclismo, se quisesse ter sucesso. Também teve de ser conversado com os meus pais, como é lógico. Assumi esse risco e tem dado resultado. Não significa que mais tarde não queira voltar a estudar e possa ter uma licenciatura.»

O título mundial em Glasgow, ou a memória de um dia de nervos

Tem dado muitos resultados. Iúri Leitão foi três vezes campeão europeu de scratch e em 2023 atingiu o topo, quando se tornou em Glasgow campeão do mundo de omnium. Como disse na altura, um resultado «inacreditável» num país com pouco mais de uma década de experiência na modalidade.

«Ser campeão do mundo é um sonho de criança. Eu acompanho o ciclismo na televisão desde sempre e o Campeonato do Mundo sempre foi a prova que que toda a gente quer ganhar. É aquela camisola que toda a gente quer vestir. Acabou por suceder e, lá está, é um objetivo de vida cumprido», diz agora Iuri Leitão, a recordar aquele dia que resume em poucas palavras: «Foi muito intenso.»

«Na verdade, eu não pensei que o fosse conseguir no ano passado, até porque só tive oportunidade de competir no omnium, que é a prova talvez mais difícil a nível individual. Não ia a apontar para uma medalha de ouro, mas sabia que estivesse num bom momento poderia talvez lutar pelo pódio. Depois, nas três primeiras provas fiz primeiro, primeiro e segundo. Nunca pensei ter um domínio assim tão grande no início», recorda.

Paradoxalmente, esse bom arranque trouxe maior tensão. «O omnium são quatro provas, demora ali um dia ou uma tarde inteira. Temos de ter muito foco», continua. «Foi um dia um pouco nervoso, porque lá está, eu não tencionava sequer vencer a primeira prova, porque isso também nos mete um alvo nas costas. Não estava muito satisfeito por estar logo em primeiro, porque queria estar um pouco mais discreto. Foi muito nervoso desde o princípio, depois mantive a liderança até à última prova e foi muito tenso para mim, para todo o staff, para o meu treinador, para os mecânicos. Mas trago muitas boas memórias desse dia.»

Perdeu a conta às medalhas: «Quando chego a casa entrego-as à minha namorada»

É até agora o momento mais feliz de uma carreira que, aos 26 anos, já tem muito que contar. Iúri não consegue manter registo das medalhas que já ganhou. «Se for considerar Campeonato da Europa e Campeonatos do Mundo, não tenho bem noção, talvez umas 13, 15. Em termos de campeonatos nacionais, perdi a conta. Sei que tenho cerca de 10 campeonatos nacionais vencidos, mas já fiz muitos segundos lugares, já fiz alguns terceiros. Acho que a medalha que eu mais tenho é prata, seja em Campeonatos da Europa, seja em Campeonatos nacionais. Já perdi muitas vezes», sorri.

Não é eles que as guarda, mas estão bem entregues. «Quando chego a casa entrego as medalhas à minha namorada. Ela fica responsável por elas. E como nós ainda não temos a nossa casa, estamos a guardá-las para pôr num sítio especial mais tarde. Estão todas juntas, prontas para serem expostas.» Será precisa uma sala inteira? «Já vão ocupar um bom espaço», ri-se.

Da frustração para Tóquio ao que o distingue como atleta

Também houve momentos difíceis neste percurso, o maior deles a qualificação falhada para Tóquio. «Quando eu me juntei à seleção faltavam apenas nove meses para terminar a qualificação. Eu era o júnior da equipa e fui fazendo pontos importantes. Mas tivemos muitos azares no último ano. Eu próprio parti o braço, todos nós tivemos imprevistos que hipotecaram muitos dos bons resultados que podíamos ter feito», recorda. «Ainda assim, conseguimos estar nos Campeonatos do Mundo. Estivemos mesmo muito perto. Terminar o Campeonato do Mundo sabendo que não tínhamos conseguido a qualificação apenas por um lugar foi um balde de água fria muito grande, foi um dia que não esquecemos. Mas para mim, e penso que para os meus colegas de equipa, a partir do momento em que essa prova terminou, o foco estava todo em Paris 2024.»

Iúri Leitão é pragmático quando se pede para falar sobre as suas principais qualidades como atleta. «Sou rápido, isso é o que me evidencia mais. É uma coisa genética que eu consigo trabalhar com muita facilidade, não é uma coisa de mérito», sorri. «Depois, talvez a resiliência em competição. Às vezes, em situações negativas, temos de saber dar a volta às situações. Se nos deixarmos afetar muito e não conseguirmos dar a volta, é a pique pela tabela abaixo. Acho que aquilo que eu sinto que consigo fazer melhor é abstrair-me das partes negativas e focar-me no importante.»

Objetivos para Paris: «Não gosto de pôr as expectativas demasiado acima»

É isso que espera levar para Paris, onde chega com o estatuto de campeão do mundo. mas sem sentir maior pressão por causa disso. «Talvez os adversários me tenham mais em consideração, mas não sinto que traga pressão adicional, até porque eu não parto para os Jogos Olímpicos com essa ambição de vencer ou da medalha», afirma, num discurso ponderado sobre as suas expectativas para Paris.

«Tenho os meus objetivos muito bem definidos. Sabemos que vai ser uma prova completamente diferente do Campeonato do Mundo. Não é só uma competição, é ‘A’ competição, aquela em que toda a gente está no seu melhor. Se conseguir trazer um lugar nos oito primeiros, vou ficar muito contente e com um sentido de objetivo concluído», continua, sem querer pensar noutras metas.

«Eu sei que vai ser completamente diferente das provas que tenho feito, mas não sei como é que vai ser diferente, porque eu nunca lá estive. Não acho que seja certo ambicionar por mais, porque até pode ser que eu não consiga esse lugar nos oito primeiros. É bastante difícil conseguir os oito primeiros, por isso nem me atrevo a pensar em algo mais. Se há coisa de que eu não gosto é de pôr as expectativas demasiado acima daquilo que sei que posso conseguir. Gosto de me focar naquilo que eu posso fazer.»

Vai ser tudo novo e Iúri Leitão quer aproveitar por completo esta estreia olímpica. «Tenho noção de que foi muito difícil lá chegar e aquilo que eu mais quero é desfrutar de ter conseguido e da experiência olímpica. Tenho muita expectativa. Não sei exatamente do quê, não sei o que é que vou encontrar», sorri. «Mas tenho muita expectativa de viver essa experiência e de contar as histórias que de lá vou trazer. Como o contato com os atletas de outros desportos que costumamos ver na televisão, mesmo os portugueses. Conviver com eles no dia a dia acho que vai ser uma coisa muito, muito especial.»

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