Diogo José Teixeira da Silva não precisava de gabarolice

3 jul, 17:04
Diogo Jota

E tinha aquela coisa rara de fazer parecer fácil o que para os outros é milagre. Esta é a crónica da pessoa que Diogo José Teixeira da Silva foi: a morte dele não é só uma tragédia desportiva — é humana, é íntima

Não há maneira certa de dizer a morte mas há mortes que se dizem com mais custo.

A notícia chegou numa quinta-feira de julho. “Diogo Jota morreu.” Assim. Três palavras. Curvas, fechadas no peito. Palavras secas, graves, duras. Como quem desliga a luz no meio do jogo.

Diogo Jota chamava-se na verdade Diogo José Teixeira da Silva. Mas desde miúdo que lhe chamavam “Jota” — porque o nome era comprido demais, porque a bola não precisava de cerimónias. Jota era desses jogadores que nunca se impunham pela pose. Nunca quis ser escultura — foi sempre movimento. Jogava com a pressa dos que sabem que o lugar não está garantido. E talvez por isso nos custe tanto aceitar que o jogo acabou. Sem pré-aviso. Sem cartão amarelo. Sem substituição.

E nós à espera que alguém dissesse que não. Que afinal Jota estava bem. Não estava.

Foi o fim de um corpo que ainda sabia marcar golos. Um corpo afinado com o timing e a coragem. Um corpo que sabia fazer diagonais curtas e fugir ao fora-de-jogo como quem engana o destino.

Tão grande silêncio

Mas antes do silêncio houve números. Não frios, não mecânicos — números que escorrem suor e tempo. Números que agora ajudam a contar o que já não se pode repetir.

Era, dizia-se, “o avançado dos detalhes”. E talvez isso explique porque fazia tanto com tão pouco. Não precisava de espaço, só de um erro. Não precisava de gabarolice, só de um segundo.

Aos 18 anos estreou-se na Primeira Liga. Aos 19 foi para o Atlético de Madrid. Não ficou em Espanha — foi emprestado ao FC Porto, onde brilhou sob o comando de Nuno Espírito Santo. Seguiu para o Wolverhampton, primeiro por empréstimo, depois em definitivo. Em Inglaterra encontrou casa, golo e ritmo. Quando, em 2020, o Liverpool o contratou por mais de 40 milhões de euros, poucos duvidaram da justiça da aposta.

Com Klopp tornou-se homem. Não que antes não o fosse. Mas ali, entre Salah, Mané e Firmino, encontrou o seu lugar — não apenas como avançado versátil, mas como intérprete sensível de um jogo que pede instinto e leitura. Marcou golos decisivos, fez assistências improváveis, correu como correm os que ainda se lembram do que é jogar por amor. E era isso que se via em Jota: um futebolista com fome e com alma. Alguém que não se dava a poses, mas a presenças.

Na Seleção Nacional, a camisola 21 vestia-o como uma segunda pele. Estreou-se em 2019 e somou internacionalizações sem ruído. Nunca foi o mais mediático — mas era daqueles que jogavam para os outros brilharem. Nos bastidores do balneário diz-se que era dos mais respeitados. Em campo dos mais fiáveis. Nos golos dos mais frios. E no sorriso dos mais generosos.

Não era exuberante mas era eficaz. Não era estrela mas era farol. E tinha aquela coisa rara de fazer parecer fácil o que para os outros é milagre.

Diogo Jota morreu aos 28 anos. A idade em que muitos começam a perceber que o corpo já não responde da mesma forma. A idade em que se deixa de sprintar para passar a gerir. Mas Jota ainda sprintava. Ainda jogava com o corpo todo. Ainda queria mais.

Não se reformou do jogo. Foi o jogo que o perdeu.

E nós, todos os que o vimos jogar, perdemos também um pouco da alegria de ver um jogador que parecia sempre a meio de qualquer coisa — uma jogada, uma recuperação, uma arrancada, uma surpresa.

Agora resta-nos o que resta sempre nestes casos. Vídeos. Golos. Fotografias de vida com legendas de morte. Declarações em que se diz que era “um dos bons”, “um dos nossos”, “um dos que deixarão saudade”. E deixam. Claro que deixam.

Mas há saudades que doem mais quando se sabe que ainda havia tanto por fazer. Jota não era um fim — era uma vírgula. E nós não estávamos prontos para o ponto final.

Como se escreve sobre a morte de alguém que parecia sempre estar a começar? Como se conta uma história que termina a meio de um sprint? Como se arruma a ausência de um futebolista que fazia tudo parecer tão cheio? Talvez não se arrume. Talvez fique assim — em suspenso, como uma bola a roçar o poste, como um golo que quase foi.

Há jogadores que se impõem pelos números. Outros pelos gestos. Diogo Jota era dos segundos. O que fica não são apenas os 65 golos pelo Liverpool ou os 14 pela Seleção. O que fica é o modo como corria sem vaidade, como jogava sem medo, como sorriu sempre que pôde. A naturalidade com que parecia amar o jogo, como se ainda estivesse a jogar no bairro.

Disse uma vez: “O meu objetivo é ser útil”. Isso talvez diga tudo.

Nos próximos dias haverá minutos de silêncio. Provavelmente os jogadores hão de entrar em campo com o nome dele nas costas. E no centro de treinos do Liverpool talvez ninguém quererá tocar numa bola. Mas talvez seja preciso tocá-la. Por ele. Como ele fazia — sem barulho, sem prometer demais mas com uma precisão que cortava a respiração. Jogar por ele. Lembrá-lo jogando.

A morte de Jota não é só uma tragédia desportiva. É humana. É íntima. Toca em qualquer um que um dia sonhou marcar um golo e correr para os braços de quem ama. Toca-nos porque ele era um dos nossos — dos que ainda sabem o que custa e o que vale a bola.

E agora resta-nos o silêncio. A seguir ao golo, à corrida, ao aplauso. O silêncio. Mas não um silêncio vazio — um silêncio que carrega o som de tudo o que ele foi. E isso ninguém apaga.

"É fácil de gostar"

Há momentos na vida que nos contam uma história maior do que as palavras. 

Diogo Jota sorri quando recorda a sua juventude, fê-lo numa entrevista ao Athletic: “Ainda pagava para jogar futebol quando tinha 16 anos”. O homem que hoje era uma das peças-chave do Liverpool não começou com os holofotes acesos nem num palco de gigantes.

Na realidade, foi em Gondomar que tudo começou. “Até aos 16 anos jogava por diversão, num clube onde éramos quase uma família. Jogámos juntos durante nove anos e fizemos coisas boas no nosso nível." A partir daí, um percurso de subidas e tropeções mas com uma certeza: desistir nunca foi opção.

Quando a maioria dos miúdos da sua geração já assinava contratos profissionais aos 14 ou 15 anos, Jota ainda pagava para jogar — um detalhe que diz muito sobre a sua resiliência e humildade. Essa bagagem moldou um jogador dinâmico, agressivo e com uma frieza a finalizar que conquistou Anfield Road e os adeptos do Liverpool. E não só. Pep Lijnders, um antigo adjunto de Jürgen Klopp, apelidou-o “monstro da pressão”. O próprio Jürgen Klopp disse isto apenas: é “fácil de gostar”.

O percurso do avançado não foi linear. Passou pelo modesto Paços de Ferreira, onde se estreou aos 17 anos e marcou 18 golos em 47 jogos — longe das grandes academias do FC Porto, Benfica ou Sporting, onde não conseguiu fixar-se. Em 2016 mudou-se para o Atlético de Madrid, clube que na época anterior tinha sido finalista da Champions. Mas, apesar da pré-época sob Diego Simeone, nunca fez um jogo oficial e acabou por ser emprestado ao FC Porto e depois ao Wolves, que viria a comprar o seu passe por menos de 15 milhões de euros.

Jota falava do Atlético à The Athletic. Sem arrependimentos: “Foi uma oportunidade enorme e aprendi muito, mesmo não tendo corrido como esperava. Tudo o que vivemos é uma experiência para crescer”. E esse crescimento levou-o até Liverpool, onde chegou num setembro com uma mensagem clara: “Podem contar comigo porque agora sou um dos vossos”.

A integração foi rápida e decisiva, ajudada pelo próprio Klopp e pela influência dos capitães e colegas, muitos deles brasileiros, que lhe abriram as portas. “No futebol e na vida tens de estar aberto para te adaptares o mais rapidamente possível” — confessou, rapidamente adaptado.

Antes do silêncio houve os números 

Números que escorrem suor e tempo. Números que agora ajudam a contar o que já não se pode repetir.

Diogo Jota jogou 447 jogos como profissional. Marcou 150 golos. São estatísticas que parecem limpas mas que carregam pancadas, lesões, madrugadas e câmaras de recuperação. Enquanto profissional jogou em quatro clubes - que lhe moldaram os pés e o olhar: começou no Paços de Ferreira, onde aos 17 anos se fez notar com quatro golos em 12 jogos; foi cedo para o Atlético de Madrid mas o destino, inquieto, empurrou-o para o FC Porto por empréstimo, onde fez 38 jogos e 9 golos num ano em que a exigência era brutal e o lugar nunca garantido.

Depois o Wolverhampton. Foi ali, entre relvados duros e estádios pequenos do Championship, que Jota encontrou o palco ideal para fazer do improviso uma rotina. Em três épocas completas vestiu a camisola dos Wolves 131 vezes e marcou 44 golos. Ficou-lhes na memória como o avançado que nunca deixava de perseguir a jogada — mesmo quando ela parecia já perdida.

Foi isso que levou Klopp a telefonar. Em 2020, o Liverpool pagou mais de 40 milhões de euros por um jogador que não fazia barulho mas que já era ouvido. Em Anfield jogou 182 partidas. Marcou 65 golos. Fez 26 assistências. Correu por dentro, por fora, pelo meio. Jogou entre os génios e nunca se perdeu.

Na temporada 2021‑22 foi um dos rostos do melhor Liverpool da era moderna: 15 golos só na liga. Antes disso, 9 na época de estreia. Depois,7. Depois, 10. E na última, a de 2024‑25, ainda fez 6 golos e 3 assistências em 26 jogos, muitos deles a partir do banco, outros tantos em recuperação de lesão. Mas sempre lá. Sempre com a intensidade de quem sabe que o lugar nunca se deve só ao talento.

Jogava com ambos os pés. Sabia onde meter o corpo, quando travar, quando acelerar. 

Na Seleção Nacional estreou-se em 2019. Jogou 49 vezes. Marcou 14 golos. O primeiro foi à Croácia. O último contra Espanha. Pelo meio participou na conquista da Liga das Nações de 2019 e voltou a erguer o troféu em 2025, poucas semanas antes de morrer. 

Tinha ainda muito por escrever com as Quinas ao peito, mas o que escreveu já basta para caber num qualquer álbum da nossa memória.

Números sim. Mas não números de catálogo. Números com batida, como um coração que nunca quis jogar pelo seguro.

Vozes. Tremores

Cristiano Ronaldo foi dos primeiros a dizer. Ou antes, a tentar dizer porque há perdas que não se verbalizam. “Não faz sentido. Ainda agora estávamos juntos na Seleção, ainda agora te tinhas casado”, escreveu o capitão. E depois, em tom que oscila entre o grito e a rendição: “À tua família, à tua mulher e aos teus filhos envio os meus sentimentos e desejo-lhes toda a força do mundo. Sei que estarás sempre com eles. Descansem em paz, Diogo e André. Vamos todos sentir a vossa falta.”

Fernando Santos, o treinador que lhe deu uma camisola das Quinas e a confiança de titular, confessou o desamparo: “É um choque tremendo, uma tragédia que não se consegue qualificar… 28 anos, três crianças, uma vida que se perde de forma tão dramática”. Fernando Santos ancora-se agora na fé: “Rezo para que tenham força suficiente para conseguirem ultrapassar este momento tão doloroso e pedir que o Diogo descanse em paz”.

Mourinho, do outro lado da Europa, usou palavras que ferem: “Grande tragédia e injustiça imensa”. Imensa porque é esse o tamanho do vazio. Imensa porque “era tão jovem e tinha tanta vida pela frente”. José Mourinho, que viu milhares de jogadores crescerem e passarem, escreveu sem metáforas. “Envio os meus mais profundos sentimentos a todos os familiares e amigos.”

Pepe, com quem Jota dividiu balneário e silêncios na Seleção, chorou por dentro e por fora: “Uma perda dolorosa que nos empobrece como colegas, amigos e amantes do futebol”.

Rúben Neves, que partilhou com Jota os dias intensos no Wolverhampton e o orgulho das Quinas, escolheu o português para não quebrar por dentro: “Dizem que só perdemos as pessoas quando as esquecemos. Eu nunca te esquecerei!” Porque há lutos que são também promessas.

Jamie Carragher, figura-mural no coração do Liverpool, deixou cair o escudo de ex-jogador. “Notícia devastadora… os meus pensamentos estão com toda a família e amigos, especialmente com a sua mulher Rute e os três filhos.” Steven Gerrard, outra lenda red, também expressou a sua dor: “Notícia devastadora… os meus pensamentos estão com toda a família e amigos”.

Pedro Proença, presidente da Federação Portuguesa de Futebol, falou com a solenidade que a ocasião exigia. Mas não foi o burocrata. Foi o homem. “A Federação Portuguesa de Futebol e todo o futebol português estão completamente devastados com a morte de Diogo Jota e do seu irmão André Silva.” Acrescentou depois: “Diogo era uma extraordinária pessoa, respeitado por todos os colegas e adversários, alguém com uma alegria contagiante… Perdemos dois campeões. Iremos honrar o seu legado todos os dias”.

Jürgen Klopp, que o treinou, que o puxou, que o entendeu, não se conteve: “Este é um momento em que estou em dificuldades… Deve haver um propósito maior! Mas eu não o consigo ver!” A seguir, a descarga emocional: “Estou de coração partido ao saber da morte do Diogo e da do seu irmão André. O Diogo não era apenas um jogador fantástico, era também um grande amigo, um marido e pai amoroso e cuidadoso! Vamos sentir muito a tua falta! Todas as minhas orações, pensamentos e força para a Rute, os filhos, a família, os amigos e todos os que os amavam! Descansa em paz – com amor”.

Luís Montenegro, primeiro-ministro de Portugal, usou a palavra “trágico” — não por convenção mas porque tudo nesta morte o é: “É uma notícia inesperada e trágica. Apresento as minhas sentidas condolências à família. É um dia triste para o futebol e para o desporto nacional e internacional”.

Marcelo Rebelo de Sousa foi firme e sentido. “O Presidente da República lamenta profundamente a morte trágica e prematura do jogador de futebol Diogo Jota e do seu irmão, André Silva. O Presidente da República apresenta as mais sentidas condolências à sua família, amigos e colegas de profissão, por uma perda que a todos os portugueses consternou.” 

Darwin Núñez, companheiro no Liverpool e homem que celebrou com Jota e que por vezes o substituiu, deixou um tributo seco e verdadeiro, em castelhano: “No existen palabras de consuelo para tanto dolor”. Nós traduzimos o restante: "Sempre te vou recordar com o teu sorriso, como um bom companheiro dentro e fora do campo. Envio toda a minha força à tua família. Onde quer que estejas tenho a certeza de que estarás sempre com eles, especialmente com a tua mulher e os teus três filhos. 💔 Descansem em paz, Diogo e André”.

O Manchester City, rival doméstico e palco de tantos duelos, publicou uma imagem simbólica que juntava as camisolas 20 de Diogo Jota e Bernardo Silva, acompanhada de uma mensagem de profundo pesar pelas duas vidas perdidas — um gesto que emocionou e uniu o futebol inglês.

Não se trata apenas de homenagens. São vozes partidas. Fragmentos de um país, de um balneário, de um estádio inteiro que tenta organizar o luto em frases quando tudo por dentro se desorganiza.

O tempo parou. E o futebol português, como Ronaldo disse, ainda há dias estava com Jota. Ainda agora.

E já não está.

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