Do onze do Benfica a montar peças para automóveis

9 jul 2020, 09:24

Desde que acabou de jogar, em 2014, Rui Baião já fez de tudo um pouco: arquivo, gestão de correio e reposição em supermercados até chegar ao Parque Industrial da Autoeuropa. Sem nunca esquecer o futebol.

«Depois do Adeus» é uma rubrica dedicada à vida de ex-jogadores após o final das carreiras. O que acontece quando penduram as chuteiras? Como sobrevivem os que não ficam ligados ao futebol? Críticas e sugestões para o email vhalvarenga@mediacapital.pt.

Rui Baião chegou ao mais alto nível com 20 anos. Fez a estreia pelo Benfica de Toni frente ao Marítimo (3-0), na reta final do campeonato 2000/01 e, na penúltima jornada, assinou o único golo dos encarnados na receção ao Salgueiros (1-1). Estava a viver um sonho.

Em miúdo, com oito/nove anos, viu uma estrela cadente e desejou jogar no Estádio da Luz pelo Benfica. Uma década mais tarde, isso aconteceu e Rui Baião foi mais que uma promessa ocasional. Estreou-se logo como titular, fez seis jogos até final da época e outros dez na temporada seguinte.

O médio ofensivo queria mais. Não suportou ficar na sombra de jogadores como Zahovic, numa fase muito conturbada no clube encarnado, rescindiu e foi para o Varzim. Seguiram-se Estrela da Amadora, Gil Vicente, Kerkyra (Grécia) e Portimonense. Em 2007, ficou sem jogar. Ganhou peso, chegou aos 100 quilos e pensou em desistir. Aos 27 anos.

O Olhanense, pelas mãos de Isidoro Sousa e Jorge Costa, deu-lhe nova oportunidade. Rui Baião reinventou-se e voltou a ser feliz. Foi campeão da II Liga, jogou novamente na Liga, passou ainda pelo Fátima e terminou a carreira no Pinhalnovense, aos 33 anos, na sequência de um susto. Durante um jogo, voltou a sentir arritmias cardíacas e decidiu parar de vez.

Desde 2014, a antiga promessa do Benfica já fez de tudo um pouco. Começou por fazer arquivo, depois gestão de correio, passou pela reposição em supermercados e trabalha há mais de três anos na Benteler, empresa que produz componentes automóveis para a Autoeuropa.

Rui Baião, atualmente com 39 anos, relata uma vida dura e confessa que gostava de voltar ao futebol. Até lá, continua a trabalhar.

Maisfutebol – Rui, quanto tempo demorou até começar a trabalhar, após o fim da carreira como jogador?
Rui Baião - Felizmente, não tive de esperar muito. Através de uma amiga da minha mulher, surgiu a oportunidade de ir trabalhar para a Esegur num arquivo em Palmela, um mês e meio depois de terminar a carreira. Como estava numa fase de luto, pelo fim da carreira, decidi agarrar a oportunidade e gostei imenso da experiência. Era assistente administrativo na Esegur, que tem uma base de clientes que enviam documentação para ser guardada. Aquilo era enorme, havia sítios em que tínhamos de trabalhar de lanterna.

Essa transição para o mercado de trabalho foi complicada?
Para mim, não. Um jogador de uma primeira Liga consegue ter um ordenado bom e, quando estamos habituados a um estilo de vida e somos obrigado a retroceder, há pessoas que não conseguem lidar bem com isso. Mas eu nunca tive problemas com isso, porque tive sempre uma mulher ao meu lado que me manteve os pés no chão. Mesmo quando estava na melhor fase da carreira e quando ela sentia que eu já estava a levantar muito voo, ela puxava-me novamente para a terra. Graças a Deus, tenho a felicidade de ter uma mulher assim ao meu lado há 20 anos.


 

Que outros empregos foi tendo ao longo dos últimos anos?
O primeiro trabalho foi no arquivo de Palmela da Esegur, tudo na base de trabalho temporário, depois trabalhei na Tranquilidade em Lisboa, no tratamento de correio, e gostei muito de lá estar. Voltei entretanto ao arquivo de Palmela e mais tarde trabalhei como repositor no Continente e no E. Leclerc. Trabalhava das 5h00 às 10h00 no Continente e das 10h15 às 14h00 no E.Leclerc. Foi o trabalho de que menos gostei, sobretudo pela forma como tratam as pessoas, nomeadamente os superiores hierárquicos. Entretanto entrei para o emprego em que estou atualmente, há mais de três anos.

Em que consiste esse trabalho?
Trabalho no Parque Industrial da Autoeuropa, em Palmela, na Benteler. Produzimos a parte de dentro do para-choques, a que vai sofrer o impacto, a peça onde vai ser montado o tablier e a coluna de direção para os dois modelos produzidos na Autoeuropa. Aquilo é como montar um puzzle. Depois da peça estar montada, ainda passa pelo soldador. Temos ainda o controlo da Qualidade, porque a nossa empresa tem de dar garantia de 30 anos sobre as peças. É uma responsabilidade muito grande.

Passa os dias a montar sempre as mesmas peças?
Não. Vamos trocando de estação diariamente, vamos rodando, para não estarmos a fazer sempre os mesmos movimentos. Já tenho muitas dores nos pulsos de estar sempre a fazer os mesmos movimentos, há vários colegas meus que têm doença profissional por causa disso.

É um trabalho exigente?
Chego a casa exausto. Na linha do T-Roc, por exemplo, hoje fiz 340 peças. Temos duas pausas e meia-hora para almoçar, é trabalhar, respirar, trabalhar, aspirar o almoço, trabalhar, respirar e continuar sempre a abrir. Tudo em três turnos, manhã (07h00-15h30), tarde (15h30-00h00) e noite (00h00-07h00). A minha vida tem sido isto, não dá para muito mais porque chego cansado do trabalho.

 

E o futebol, onde fica no meio de tudo isso?
Neste momento só trabalho, mas claro que gostaria de voltar ao futebol, se houver oportunidade e se for algo objetivo. Quando voltar, é com a certeza que não irei sair mais de lá. Posso voltar como treinador, diretor, olheiro, até como comentador. Até por isso, criei recentemente uma página aberta a todos onde vou comentar vários temas do futebol.

Falando então de futebol, o que recorda dos bons momentos no Benfica?
Acho que nunca contei isto a ninguém: dizem que quando vemos uma estrela cadente, podemos pedir um desejo. Eu tinha oito ou nove anos, estava com uns amigos meus na rua, vi uma estrela cadente a passar e pedi um desejo: jogar um dia na Luz pelo Benfica. Isto porque tinha ido a uma visita ao Estádio da Luz e tinha ficado fascinado com aquilo.

E aconteceu mesmo.
Sim, e nunca mais esquecerei esse dia. Quando entrei pela primeira vez num jogo, contra o Marítimo, subi aquele mítico túnel, entrei em campo…é uma sensação indescritível. Senti um arrepio enorme, ao ver o público a gritar, a vibrar... Tinha concretizado ali o meu sonho, um sonho de menino tornado realidade.

Sentiu sempre que tinha uma qualidade técnica acima da média?
Sinceramente, sim. Sempre senti que tinha mais capacidades e qualidades que todos os meus colegas. Era uma pessoa muito exigente comigo e com os meus colegas, mas nunca fui jogador para me colocar em bicos de pés. Um dos meus grandes defeitos foi nunca ter tido um grande equilíbrio emocional. Deixava-me afetar muito pelas minhas emoções.

Qual foi o melhor dia que viveu no Benfica?
Penso que terá sido o dia do primeiro jogo, o jogo de estreia, entrei como titular e estava nervoso, mas passados os minutos iniciais em que o coração bateu muito depressa, as coisas correram muito bem. Vencemos o Marítimo na Luz por 3-0 e tive duas oportunidades muito boas para marcar.

E o pior?
Foi o dia em que tomei a decisão de sair do Benfica. Saí com 21 anos, era inexperiente, imaturo e ingénuo. O Benfica vivia uma fase desportiva e financeira completamente horrível, não tinha organização, projeto e o meu espaço dentro da equipa também não estava como eu queria. Saí para jogar mais, para me valorizar, mas mais tarde vim a perceber que foi o maior erro da minha carreira.

Passou a jogar sobretudo com o aspeto financeiro em mente?
Aquilo que posso dizer é que o maior objetivo não era tirar prazer do que estava a fazer, mas sim melhorar as minhas condições financeiras. Quando perdemos o gosto pelo que estamos a fazer…quem não tem prazer no que está a fazer, dificilmente terá sucesso.

Nunca conseguiu esquecer a saída do Benfica?
O Benfica é o clube do meu coração, desde miúdo que queria lá jogar e a saída também não correu bem, Quando rescindimos, eu e os meus colegas (Pepa e Jorge Ribeiro) começámos a ser ligados ao FC Porto. Em relação ao FC Porto, nunca tive nada assinado, nada acordado, eles tinham apenas um entendimento com o Varzim em que tinham uma preferência sobre nós. Isso foi mal visto também porque, antes de nós termos saído, muitos jogadores tinham saído do Benfica para o FC Porto, uns diretamente, outros através de outros clubes.

Quais foram as principais razões para a sua saída?
Nessa fase, no Benfica, o estatuto era mais importante que o valor dos jogadores. Na altura em que eu lá estava, eram os Zahovics, os Drulovics…Isso roía-me por dentro. O Zahovic foi um grande jogador mas, quando foi para o Benfica, já foi numa fase descendente da carreira, não tinha o contributo que teve no V. Guimarães e no FC Porto. Eu tinha a consciência que eu era melhor e que estava melhor, mostrava isso só que quem jogava sempre era ele. Isso enraivecia-me, sentia que era injusto jogar alguém só porque que tinha mais estatuto, mais nome que eu. Foi algo em que fui melhorando ao longo da carreira, até porque depois aconteceu o contrário comigo.

O contrário?
Sim. No Estrela da Amadora, por exemplo, comecei a época com uma pubalgia, jogava medicado e com dores. A certa altura, fui falar com o mister Miguel Quaresma, atual adjunto do Jorge Jesus, que gostava muito de mim. Sacrifiquei-me durante muitos meses, fui dizer-lhe que não conseguia dar mais, que estava cheio de dores. Mas ele disse que preferia ver-me a jogar a 40% ou 50% do que ter de meter outro na equipa. Gostei de ouvir, mas também sei que havia colegas na minha posição que estavam melhor que eu, até porque eu praticamente não treinava a semana toda. Arrastei até não poder mais e depois descobri que tinha uma hérnia inguinal. Fui operado em fevereiro e decidi recuperar-me bem até final da época.

Em 2007/08, após duas épocas no Portimonense, ficou sem jogar. Porquê?
Estive dois anos em Portimão, adorei a cidade, uma cidade fantástica, as coisas correram bem em termos desportivos mas no fim da segunda época, aconteceu um problema comigo e com um colega meu. Falei com o meu empresário, Paulo Barbosa, e fui treinar ao Hearts da Escócia durante uma semana. Adorei aquilo e a semana de treino correu-me muito bem, tanto que me chamaram para a pré-época. Fomos fazer a pré-época para a Alemanha, o Hearts era treinado por um russo (Anatoliy Korobochk ), que precisava de tradutor para os escoceses o perceberem. As coisas na pré-época não me correram tão bem e acabei por não ficar lá. Fiquei muito triste, porque adorei mesmo aquilo.

O que aconteceu depois?
Veio ao de cima toda a imagem que ficou sempre agarrada a mim, de um jogador problemático, irreverente, que tinha tanto de talentoso como de arranjar problemas. A relação com o meu empresário deteriorou-se, entrei em contacto com alguns treinadores que conhecia e amavelmente diziam que tinham o plantel cheio. A certa altura, deixei de tentar.

Afastou-se do futebol?
Durante uns meses, sim. Comecei a estudar à noite, desliguei-me do futebol, deixei de praticar praticamente desporto e cheguei aos 100 quilos. A certa altura, decidi reagir. Mudei a minha mentalidade como jogador, porque já tinha cometido muitos erros ao longo da carreira e ao mínimo erro que cometesse, as pessoas iriam dizer que eu não tinha mudado. Nunca mais dei azo a que me apontassem a dedo.

Foi fácil ter uma oportunidade no Olhanense?
Nem por isso, porque eu tinha-me portado muito mal com as pessoas no Olhanense no final do primeiro ano no Portimonense. Ofereceram-me um contrato, eu pedi mais e eles aceitaram. Mostraram-me um apartamento, não gostei nada daquilo, arranjaram-me outro melhor em Faro. Fizeram tudo e eu acabei por renovar com o Portimonense.

Então, como é que foi recebido mais tarde?
Falei com o Diamantino Miranda, que era o treinador, ele queria-me mas acabou por sair no fim da época para voltar ao Benfica. Decidi ligar ao presidente, mas foi mesmo o último telefonema. Se me recusassem, acabava a carreira. O presidente Isidoro Sousa surpreendeu-me, disse que o passado não interessava, que gostava do meu valor como jogador, mas que ia depender do novo treinador.

Quem seria esse novo treinador?
Dias mais tarde, ele contou-me que o novo treinador ia ser o Jorge Costa e comecei-me a rir porque me lembrei dos jogos que tinha feito contra o FC Porto, em que o Jorge Costa mandava vir com toda a gente. Eu não gostava de me ficar e respondia na mesma moeda. Achei que ele ia lembrar-se disso, mas o Jorge Costa quis que eu fosse para o Olhanense.

Continuava com os 100 quilos, certo?
Exato. Quando cheguei lá, no dia da apresentação, ficaram na dúvida se era mesmo eu. Estava mesmo bastante gordo, tinha duplo queixo e uma barriga tão grande que nem a maior camisola de treino me servia. Tive de perder 20 quilos, foi um processo moroso e bastante complicado. A equipa técnica foi fantástica comigo, começando pelo Jorge Costa. Para emagrecer, uma pessoa tem de passar fome e eu passei muita fome (risos). Voltei ao meu peso ideal, 82 quilos.

Acabou por ajudar o Olhanense a regressar à Liga.
Isso mesmo. Continuei a trabalhar para voltar a jogar, a certa altura o Jorge Costa veio falar comigo, de forma muito frontal, dizer-me que seria difícil entrar no onze como médio ofensivo mas que eu podia ser muito bom como médio defensivo, se eu quisesse. Disse logo que sim.

Voltou a ser feliz?
Passei ali duas épocas fantásticas, sobretudo a primeira. Subimos, fomos campeões e nunca esquecerei esse dia. Foi uma festa desde Gondomar, onde jogámos, até Olhão. Chegámos de madrugada e estavam milhares de pessoas à nossa espera. Foi um dos marcos mais importantes da minha carreira, por tudo o que tinha passado. Mando daqui um grande abraço para o senhor Isodoro Sousa. É preciso ter um grande coração, depois do que eu me ter portado mal com eles, para me dar uma nova oportunidade para ser feliz.



Esteve depois dois anos e meio no Pinhalnovense. Porquê o ponto final?
Senti-me mal durante um jogo. Já me tinha sentido assim uma vez no Olhanense, mas na altura fui fazer todos os exames, acusaram algumas coisas mas disseram-me que não era nada de preocupante. Depois dos casos do Fehér, do Bruno Baião...Voltei a sentir arritmias no final de um jogo do Pinhalnovense em Montemor. Disse ao treinador que não me estava a sentir bem, ele achou que eu estava a gozar, mas eu saí logo do campo. Fui fazer os exames e registaram novamente arritmias. Fui a um cardiologista, disse-me que o que eu tinha não me proibia de jogar futebol, mas que o desporto de alta competição levava o corpo ao extremo físico e que eu poderia voltar a sentir aquilo. A partir daí, percebi que tinha de parar.

Foi uma forma triste de acabar a carreira de jogador?
Não queria terminar a carreira dessa forma, já tinha decidido que ia acabar aos 35 anos, ia jogar mais ano e meio. Nas últimas duas épocas no Pinhalnovense, para além de ser jogador, também estava como treinador na formação, primeiro nos iniciados e depois nos juvenis. Estava a gostar bastante, mas tudo acabou naquela altura.

Que balanço faz do seu percurso?
Tenho a consciência que podia ter tido uma carreira ao mais alto nível, as coisas não correram nesse sentido, mas também é verdade que há muitos jogadores que gostariam de ter feito o percurso que eu fiz. Independentemente do que podia ter sido, tenho muito orgulho naquilo que fiz.Tenho muito orgulho naquilo que consegui fazer e naquilo que me tornei.

 

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