Porque é que as mulheres se sentem pressionadas a depilarem-se

CNN , Marianna Cerini
3 set 2022, 20:00
Depilação

Um corpo sem pêlos é um "corpo ideal"... ou um ideal (masculino) de corpo (feminino)?

Digite "Quando é que as mulheres começaram..." no Google e uma das principais sugestões a aparecer para completar a frase é: "Quando é que as mulheres começaram a depilar-se?"

A resposta remonta séculos atrás. Remover pêlos - ou não – há muito que definiu dinâmicas de género, serviu como símbolo de classe e determinou noções de feminilidade e de "corpo ideal".

No entanto, na sua evolução mais recente, manter os pêlos do corpo está a ser abraçado por um número crescente de jovens mulheres, que estão a transformar uma fonte de vergonha para a sociedade e a transformá-la num símbolo de força pessoal.

O crescimento da fluidez de género, o movimento de corpo-positividade e a crescente sentido de inclusão do setor da beleza contribuíram para a nova onda de pêlos hirsutos.

"[Uma mulher ter pêlos] tem sido profundamente estigmatizado - ainda o é - e relacionado com vergonha", disse Heather Widdows, professora de ética global na Universidade de Birmingham do Reino Unido, e autora do livro "Perfect Me": Beauty as an Ethical Ideal” [à letra, “O Eu Perfeito: A Beleza Como um Ideal Ético"], numa entrevista telefónica. "A sua remoção é uma das poucas tradições estéticas que passaram de uma rotina de beleza para uma rotina higiénica".

"Hoje em dia, a maioria das mulheres sente que tem de depilar-se. Como se não tivessem outra opção. Há qualquer coisa de profundamente pesado nisso - embora as perceções estejam a mudar lentamente".

Do antigo Egito para Darwin

Uma jovem mulher em processo de remoção de pêlos no Instituto Beatiderm de Electrólise em Nova Iorque, a 4 de novembro de 1938. Crédito: Keystone-France/Gamma-Keystone/Getty Images

Não ter pêlos não foi estabelecido como um mandato para as mulheres até ao início do século XX.

Antes disso, a remoção de pêlos do corpo era algo que tanto homens como mulheres faziam - desde a Idade da Pedra, depois através do antigo Egito, Grécia e Império Romano - usando conchas do mar, cera de abelha e vários outros depilatórios. Nestas épocas antigas, como escreve Victoria Sherrow na “"Encyclopedia of Hair: A Cultural History" [à letra, "Enciclopédia do Pêlo: Uma História Cultural"], a depilação era vista sobretudo como uma forma de manter o corpo limpo. Os romanos antigos também o associavam a classe social: quanto mais suave era a sua pele, mais pura e superior era.

No Médio Oriente, bem como na Ásia Oriental e Meridional, a depilação com fio era utilizada em todo o rosto. Mas as monocelhas (as duas sobrancelhas unidas, formando apenas uma) eram de facto consideradas sedutoras para ambos os sexos, e eram frequentemente acentuadas com Kohl (um tipo de cosmético utilizado por mulheres no Oriente).

A depilação com linha - que remove pêlos faciais – é há muito um procedimento de beleza tradicional, como se vê nesta fotografia num mercado noturno de Taipé. Um fio fino é dobrado, depois torcido e enrolado sobre áreas de pêlo indesejado, retirando-o ao nível do folículo. Crédito: Yeung Kwan//LightRocket/Getty Images

Na Pérsia, a depilação e o desenho de sobrancelhas era um marcador de idade adulta e do casamento para as mulheres, e estavam principalmente reservados para essa ocasião. Já na China, os pêlos do corpo foram durante muito tempo considerados normais, e ainda hoje as mulheres enfrentam aí muito menos pressão social para fazer depilação.

O mesmo se aplica noutros países da Ásia: embora a depilação se tenha tornado rotina para muitas das jovens mulheres do continente, depilar ou aparar pêlos púbicos, por exemplo, não é tão comum como no Ocidente.

De facto, na Coreia, os pêlos púbicos foram durante muito tempo considerados símbolo de fertilidade e de saúde sexual - tanto que, em meados dos anos 2010, foi noticiado que algumas mulheres coreanas estavam a ser submetidas a transplantes de pêlos púbicos, para adicionar pêlos extra aos seus próprios.

Os europeus nem sempre estiveram obcecados com pele livre de pêlos.

Na Idade Média, esperava-se que as boas mulheres católicas deixassem o seu cabelo crescer como uma demonstração de feminilidade, mesmo se o mantinham escondido em público. O rosto era o único lugar onde o cabelo era considerado inestético: as senhoras do século XIV arrancavam os pêlos da testa para “empurrar” as suas linhas de cabelo para trás e dar à sua cara uma aparência mais oval. Quando a Rainha Isabel I de Inglaterra chegou ao poder em 1558, tornou moda a remoção das sobrancelhas.

No final do século XVIII, a depilação ainda não era considerada essencial pelas mulheres europeias e americanas, embora quando a primeira lâmina de barbear segura para homens foi inventada pelo barbeiro francês Jacques Perret, em 1760, algumas mulheres reportadamente também as usaram.

Só nos finais do século XVIII é que as mulheres dos dois lados do Atlântico começaram a fazer da depilação uma parte integrante das suas rotinas de beleza. A noção moderna de que pêlos do corpo não são femininos pode ser rastreada até ao livro "A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo", de Charles Darwin, de 1871, sustenta o livro de Rebecca Herzig "Plucked: A History of Hair Removal" [à letra, “Arrancados: Uma História da Depilação”].

Em Paris, uma paciente é submetida a uma sessão de depilação utilizando um laser alexandrite. Crédito: BSIP/Universal Images Group/Getty Images

A teoria da seleção natural de Darwin associa o pêlo corporal a "ancestralidade primitiva e um retorno atávico a formas anteriores, 'menos desenvolvidas'", escreveu Herzig, professor de estudos de género e sexualidade no Bates College, do Maine, nos EUA. Pelo contrário, ter menos pêlos corporais, sugeriu o naturalista inglês, era um sinal de estar mais evoluído e sexualmente mais atraente.

À medida que as ideias de Darwin se popularizaram, outros especialistas médicos e científicos do século XIX começaram a ligar a pilosidade à "inversão sexual, patologia da doença, loucura e violência criminosa", continuou Herzig. Curiosamente, essas conotações foram aplicadas principalmente aos pêlos do corpo das mulheres, não dos homens - não só por causa de argumentos da evolução mas também, salientou o autor, da aplicação do "controlo social com base no género" sobre o papel crescente das mulheres na sociedade. Fazer com que as mulheres pensassem que tinham de não ter pêlos para serem consideradas dignas de atenção era uma forma heteronormativa de controlar o seu corpo - e, inerentemente, o seu eu - através da vergonha, explicou Widdows.

Nos alvores do século XIX, a América branca de classe alta e média via cada vez mais a pele lisa como um marcador de feminilidade, e os pêlos do corpo feminino como repugnantes, com a sua remoção a oferecer "uma forma de se separar das pessoas mais rudes, da classe baixa e da imigrante", escreveu Herzig.

Uma 'necessidade' feminina

Nas primeiras décadas do século XX, a mudança da moda - vestidos sem mangas expondo a pele - popularizou ainda mais a depilação corporal nos Estados Unidos.

Em 1915, a Harper's Bazaar foi a primeira revista feminina a dirigir uma campanha dedicada à depilação das axilas ("uma necessidade", como foi descrita). Nesse mesmo ano, a empresa de depilação masculina Gillette lançou a primeira máquina de barbear comercializada especificamente para mulheres, a Milady Décolletée. O seu anúncio dizia: "Uma bela adição à mesa de banho Milady - e que resolve um embaraçoso problema pessoal".

As bainhas mais curtas das décadas de 1930 e 40, e a escassez de meias de nylon durante a Segunda Guerra Mundial, significaram que cada vez mais mulheres americanas começaram também a depilar as pernas. A introdução do biquíni nos EUA em 1946 também levou as empresas de depilação e as consumidoras femininas a concentrarem-se no aparamento e na modelagem das suas regiões inferiores.

A atriz italiana Sophia Loren, com um vestido branco, posando para o fotógrafo em Veneza, em 1955. Crédito: Archivio Cameraphoto Epoche/Getty Images

Nos anos 50, quando a revista Playboy chegou às bancas (a sua primeira edição saiu em 1953), as mulheres depiladas com lingerie definiram um novo padrão de sensualidade. Em 1964, 98% das mulheres americanas com idades entre os 15 e os 44 anos depilavam regularmente as pernas. As tiras de cera e a primeira depilação a laser também começaram a ser usadas nessa altura, embora esta última tenha sido rapidamente abandonada pelos seus efeitos nocivos na pele, antes de ser reintroduzida décadas mais tarde.

"E no entanto, a depilação estava longe de ser tão extrema como é hoje", disse Widdows. "Nos finais dos anos 60 e 70, os ‘arbustos’ não eram de todo invulgares, mesmo na Playboy. Por volta dessa altura também ocorreu a segunda onda de feminismo e a difusão da cultura hippie, ambas rejeitando corpos sem pêlos. Para muitas mulheres, os pêlos do corpo eram o símbolo da sua luta pela igualdade. Isso não era visto como antinatural -- ainda não".

Essa mudança, disse Widdows, começou nas décadas seguintes, com o aumento da popularidade da depilação, da pornografia e da cultura pop cada vez mais explícita. Em 1987, sete irmãs do Brasil (conhecidas como as J Sisters) abriram um salão em Nova Iorque oferecendo a chamada "brasileira" - uma depilação completa da região genital com cera. Celebridades como Gwyneth Paltrow e Naomi Campbell começaram a fazê-lo. As massas seguiram o exemplo.

"A depilação corporal deixou de ser 'esperada' para ser a norma", explicou Widdows. "Não ter pêlos passou a ser visto como a única forma 'natural' e limpa de apresentar o corpo. Só que realmente não é".

Com a publicidade e os média a promoverem ainda mais o ideal de corpos sem pêlos, a ideia de que os pêlos femininos são grosseiros só tem crescido. Por sua vez, os métodos para alcançar a ausência de pêlos tornaram-se mais precisos: nas últimas quatro décadas assistiu-se à ascensão da eletrólise, da luz pulsada e da tecnologia laser mais avançada.

"Qualquer coisa associada ao 'abjecto' - o que expulsamos do nosso mundo cultural para nos definirmos – desperta, quase por definição, repugnância, vergonha e hostilidade", disse Herzig à CNN por e-mail. "Os pêlos visíveis do corpo feminino tendem certamente a ser tratados como abjectos hoje em dia. Vale a pena notar que estas são ideias sobre limpeza, normas sociais contingentes, e não sobre a remoção efetiva de 'sujidade'. A maioria das práticas de depilação tendem a introduzir novas oportunidades de abrasão e infeção".

Abraçando os pêlos

Em 2008, Breanne Fahs, professora de estudos de mulheres e de género na Universidade Estatal do Arizona, nos EUA, estabeleceu para as suas estudantes do sexo feminino um trabalho de crescimento dos seus pêlos corporais e escrever um artigo refletindo sobre a experiência. Mais tarde, Fahs alargou o trabalho e incluiu os homens do curso, a quem foi pedido que depilassem as pernas. O projeto ainda hoje está em curso.

A artista mexicana Frida Kahlo e a sua monocelha. Crédito: Getty Images

"O trabalho destacou a inevitabilidade cultural da depilação feminina", disse Fahs numa entrevista telefónica. "Ao longo dos anos, aqueles que nele participaram partilharam questões bastante consistentes: um profundo sentimento de vergonha, luta com a autoconfiança, até mesmo ostracismo social”.

"Também tem havido casos de heterossexismo e homofobia - esta ideia de que deixar crescer pêlos nas pernas implica automaticamente que se é lésbica, ou que rapá-los significa que se é gay. As mulheres frequentemente não se apercebem do quanto a sociedade, a família e os amigos pesam no que fazemos com o nosso corpo. E quanto do que pensamos ser uma escolha – o "eu escolho depilar-me" - nos tem sido efetivamente transmitido e imposto há gerações".

Mas Fahs também assistiu a sentimentos de empoderamento, rebeldia e raiva serem agitados pelo projeto. "Especialmente nos últimos dois anos, na sequência das eleições [que elegeram Trump nos EUA] e do movimento #MeToo - tem havido uma consciência mais profunda das restrições em torno dos corpos das mulheres, do feminismo, género e sexualidade, e uma vontade de contrariar tudo isto, ou pelo menos de sair da zona de conforto", disse ela.

Não se trata apenas dos estudantes de Fahs.

Uma nova coorte de jovens mulheres está a abraçar a ideia de manter pêlos do corpo, especialmente no Instagram. O fenómeno também entrou em revistas. Na edição de setembro de 2019 da Harper's Bazaar, a atriz Emily Ratajkowski posou com as axilas não depiladas (uma volta completa de 360 graus para a publicação, desde as suas primeiras mensagens anti-pêlos nas axilas). A YouTuber Ingrid Nilsen e a cantora Halsey também exibiram os seus pêlos corporais.

Marcas de depilação feminina recém-lançadas estão também a defender o pêlo feminino, e a encorajar conversas positivas em torno do tema. A lâmina Flamingo, da popular linha de depilação Harry's, enfatiza o direito de escolher se se deve fazer a depilação, com slogans publicitários como "Não há depilação sem representação".

 

A Billie, fundada em 2017, é outra empresa que comunica a ideia de escolha. Em vez de mostrar modelos perfeitamente suaves típicas dos anúncios femininos de depilação, as suas campanhas retratam diversos grupos de mulheres a depilarem-se, a pentearem as suas mechas das axilas ou a deitarem-se na praia em biquínis com diferentes níveis de crescimento de pêlos.

"Durante muito tempo, a publicidade apenas reforçou o tabu em torno do assunto", disse Georgina Gooley, co-fundadora da Billie, numa entrevista telefónica. "Queríamos realmente reconhecer que as mulheres têm pêlos no corpo, mostrá-los, e dizer que fazer a depilação  é uma escolha. Se quiserem manter os vossos pêlos corporais, celebramos isso. E se quiserem removê-los, tudo bem também".

A fotógrafa Ashley Armitage, que trabalhou nas campanhas Billie e retrata artisticamente os pêlos do corpo na sua conta no Instagram, concorda. "Os pêlos do corpo são uma escolha pessoal", escreveu ela num e-mail. "Rapá-los, depilá-los ou cultivá-los são opções válidas, tudo depende do indivíduo".

 

A ideia de que não depilar pode ser uma escolha pode não parecer revolucionária, quando se trata de normalizar os pêlos do corpo. Mas essa ideia pode ser um passo importante no sentido de reenquadrar a questão”.

"Penso que mais mulheres estão a aperceber-se de como os pêlos do corpo estão profundamente ligados ao género e ao poder", disse Fahs. "A natureza emocional do que os pêlos do corpo provocam nas pessoas tem um potencial tremendo como instrumento de ativismo e de mudança social".

 

Imagem de topo: Lady Gaga nos 22º Prémios Anuais de Vídeo MuchMusic em Toronto, no Canadá, a 19 de Junho de 2011. Nota: artigo originalmente publicado na CNN a 3 de março de 2020.

 

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