Faltam às aulas, isolam-se no quarto e perdem o controlo e a família. Como acabar com a adição digital

19 mar 2022, 21:00
Adição digital (Associated Press)

A dependência das tecnologias, seja videojogos, jogos a dinheiro, redes sociais ou internet, é um problema que não para de crescer. A CNN Portugal falou com vários especialistas sobre a forma como se pode tratar este vício e há casos em que o internamento é a única solução

De olhos postos num ecrã e completamente alienados da realidade que os rodeia, ansiosos pelo próximo jogo, pela próxima publicação, pela próxima aposta, pelo próximo episódio. A adição digital não é uma novidade, mas os casos clínicos começam a ser uma constante.

A procura de tratamento para comportamentos não saudáveis associados ao uso de tecnologias digitais como a internet, as redes sociais e os videojogos tem sido crescente”, revela Eduardo Ramadas da Silva, psicólogo e diretor clínico da VillaRamadas, que adianta que tem havido “um crescimento na procura de tratamento” nos últimos “três a quatro anos”.

A este centro de tratamento, localizado em Alcobaça, chegam sobretudo homens. “A média de idades para os pacientes que tiveram tratamento para a dependência a tecnologias digitais é de cerca de 30 anos, sendo que o paciente mais novo tinha 15 anos, e o mais velho 41 anos. Cerca de 75% dos pacientes eram do sexo masculino”.

A adição de videojogos começa a ser um tema cada vez recorrente nas consultas de Ivone Patrão, que há mais de dez anos estuda o comportamento dos jovens na internet. A autora de livros sobre o uso problemático de internet e dependências online e do Guia: Dependência Online, do Centro Internet Segura, revela que a pandemia veio agravar ainda mais esta relação nem sempre saudável das pessoas, sobretudo das crianças e jovens, com a internet. “Para alguns [jovens] que já estavam com alguma vulnerabilidade psicológica, [a pandemia] foi uma forma de se aprofundarem mais no mundo online, ficaram mais isolados, agravou a dependência”, explica.

A dependência digital é variada e envolve uma panóplia de conteúdos e plataformas, mas no caso das crianças, adolescentes e jovens adultos, é nos videojogos e jogos online que se tornam reféns, muitas vezes ao ponto de se esquecerem de aspetos básicos do dia-a-dia, de se esquecerem que há um dia para lá do ecrã e das quatro paredes do quarto.

Na consulta especializada, as situações mais graves que recebemos são jovens com adição em videojogos que não tomam banho, que não comem, que não estudam e nem vão à escola”, começa por contar Ivone Patrão, psicóloga, docente e investigadora no Instituto Superior de Psicologia Aplicada e coordenadora do projeto Geração Cordão. “Para chegar aqui, quem andou distraído?”, questiona, apressando-se na resposta: “Todos e o próprio. Há sinais e temos de estar atentos”, frisa.

No tratamento de uma adição digital, a chegada ao último nível, ao final do jogo, não acontece de igual forma em todas as pessoas e a iliteracia digital é muitas vezes o maior entrave na procura de ajuda, pela falta de compreensão e pela falta de conhecimento de que se trata de um caso clínico. Mas ter ajuda e acompanhamento é mesmo a forma mais eficaz de travar o vício, dizem os especialistas, que reconhecem que este tipo de adição é dos que mais faz as pessoas hesitar, condicionando o tratamento atempado.

No centro VillaRamadas, que trata adições digitais desde 2004, a adição digital “mais frequente é o jogo patológico (gambling)”, mas Eduardo Ramadas da Silva adianta que “a adição aos videojogos (gaming) também já começa a ter uma representação considerável na nossa população”. E há quem lá chegue com este tipo de adição sem o saber.

“Por vezes, a dependência a estas plataformas não é imediatamente clara, e os pacientes chegam a tratamento sem essa indicação. Não são raros os casos em que, no decorrer da avaliação psicológica, se torna clara a existência desta dependência ou, pelo menos, de comportamentos problemáticos associados ao uso destas tecnologias”, adianta Eduardo Ramadas da Silva.

Para combater o aumento de casos de adição de jogos online, a 1 de setembro de 2021 entrou em vigor na China uma lei que restringe o acesso de menores a jogos online a três horas por semana: uma hora às sextas-feiras, outra aos sábados e a última aos domingos. (Fotografia: Associated Press)

Uma adição igual a tantas outras

O conceito de dependência digital é vasto e inclui videojogos, jogo a dinheiro online, redes sociais, pornogafia online, séries, etc. Em todos eles, e independentemente do conteúdo, em causa está o uso problemático, muitas vezes continuado  e descontrolado, capaz de afastar a pessoa da realidade.

Uma vez que o uso da internet é uma constante e os dispositivos móveis se assumem, quase de forma já aceite pela sociedade, como uma extensão do corpo humano, fazendo muitas vezes até de memória ou de otimização de raciocínio e até mesmo de única companhia, nem sempre é possível perceber quando se está perante uma adição, qual a barreira que se ultrapassou. Apesar disso, a adição digital apresenta características semelhantes a outras adições, uma vez que a pessoa também “deixa de conseguir controlar o seu uso, acabando por gastar muito mais tempo do que tinha originalmente planeado”, e, com isso, “negligenciar outras áreas de vida”, explica o diretor clínico do centro VillaRamadas. 

Tenho casos de pessoas que perderam tudo”, revela Pedro Hubert, psicólogo e técnico de aconselhamento em adições no Instituto de Apoio ao Jogador (IAJ).

O especialista relata a história de “um jovem de 28-29 anos que tinha tido problemas sérios de jogo com apostas desportivas online”. A situação arrastou-se durante algum tempo e “a mulher já tinha dito que se continuasse a jogar e não fizesse o tratamento que se divorciava e tirava a custódia dos filhos, mas ele foi ao casino e contaram à mulher”. O resultado: “perdeu a custódia dos filhos, perdeu o casamento, perdeu o emprego e voltou à casa dos pais”.

Pedro Hubert afirma que este tipo de situações são comuns e que espelham a dificuldade de travar uma adição, sobretudo quando o principal gatilho anda no bolso e acompanha a pessoa ao longo de todo o dia. “O vício do jogo ganhou outra escala com a internet e que os adultos jovens, “por uma série de fatores”, acabam por ser os “mais vulneráveis”.

O nem sempre encantado mundo dos videojogos

Os videojogos são ferramentas de desenvolvimento intelectual e linguístico e um entretenimento interativo e estimulante para as crianças e jovens. Mas esta visão quase romântica dos videojogos apenas faz sentido quando marcam uma presença equilibrada no dia-a-dia e não tiram tempo, nem vontade, para outras atividades. E o problema é que isso nem sempre acontece e o efeito aditivo que os jogos de vídeo têm - muitas vezes à boleia da adrenalina que um novo desafio traz e à endorfina que o momento ajuda a produzir e que faz querer jogar mais e mais - levam a que a pessoa perca noção do tempo que passa em frente a um ecrã. E isto ganha outra escala quando em causa está uma criança ou adolescente ou se junta a facilidade de acesso proporcionada pela internet.

L., chamemos-lhe assim, assume-se como “viciado” em jogos de vídeo online. “É uma questão complicada”, começa por contar à CNN Portugal o jovem de 19 anos, que pediu anonimato. Ao telefone, o estudante explica que tudo “começou com um simples jogo online, uma pessoa sem se aperceber começa a jogar outros tipos de jogo, começa a ir lá todos os dias e sempre que tem um tempo livre. Começa a ser exaustivo”.

Chega a um ponto em que temos uma relação doentia com os jogos, queremos parar e não conseguimos”, revela o jovem, sem querer entrar em pormenores sobre o jogo que o levou a sentir-se viciado e a procurar outros jogos semelhantes para alimentar a vontade constante de jogar. Disse apenas que tudo começou com um “jogo online de estratégia”.

Embora reconheça que nem sempre é fácil distanciar-se do ecrã e da adrenalina do jogo, L. revela que, para já, vai tendo algumas ferramentas internas que o permitem colocar um travão. E, num tom orgulhoso mas contido, confessa nunca ter faltado às aulas para jogar. “Sendo eu uma pessoa de princípios, nunca faltei por causa de jogos, mas já me roubou muitas noites de sono, tem-me ocupado tempo que seria usado noutras coisas”, confessa. “Tem prejudicado nas horas de estudo e de sono”.

Segundo o estudo Riscos Online dos Jovens Portugueses, ainda a decorrer e levado a cabo pela Geração Cordão em parceria com a APAV, 53% dos jovens admitem usar diariamente dispositivos com ecrãs. (Fotografia: Associated Press)

Reconhecer que se tem um problema é, para muitos especialistas, o primeiro e mais importante passo, mas nem sempre é suficiente. Mesmo admitindo que tem um problema, L. admite que a situação não é boa. “Tem-me prejudicado, está um pouco descontrolado”, admite, afirmando que já nem a família consegue ignorar. 

“Moro com a minha família, somos seis, e não vou dizer que nunca tentaram que parasse [de jogar], tentaram bastante e têm ajudado a guiar-me, a não cair completamente no círculo vicioso do vício”.

No entanto, nem mesmo os alertas da família o fazem procurar ajuda. “Nunca pensei em procurar ajuda, sei que tem de vir da minha parte o esforço, é como largar uma droga. Tenho esperança de conseguir resolver por mim mesmo, de conseguir ter força de vontade para fazer outras coisas”. Mas quanto mais tempo passar até procurar ajuda e controlar o vício, pior, advertem os especialistas entrevistados pela CNN Portugal. 

Para Ivone Patrão, “não é bem o tempo online que preocupa, é o equilíbrio”. E aqui, refere-se à capacidade do jovem conseguir passar algum tempo online sem que isso o impeça de fazer e ter outras atividades, tal como acontece com L. Mas refere-se também à incapacidade de alguns pais encontrarem o equilíbrio perfeito entre o mundo digital e real que os filhos vivem.

“Não posso ter um jovem 24 horas online e 24 horas offline, agora se tenho um jovem com atividade desportiva e que joga online, se houver um equilíbrio e o sono, o estudo e alimentação estiverem equilibradas, não há problema”, considera a especialista, frisando que “há muitos jovens que começam no mundo online como um hobby, querem ser gamers, youtubers, mas uma coisa pode levar à outra [a adição] se não houver aquela fórmula de equilíbrio, o mundo online regata-os lá para dentro”.

A prevenção é o primeiro passo para evitar uma situação de adição, apronta-se a dizer Ivone Patrão. “Quantas e quantas crianças receberam presentes digitais no Natal? Quantos delas receberam uma conversa sobre regras para uso de dispositivos? Possivelmente poucas”.

Na sua consulta, conta, chegam os que já estão no “fim de linha, não têm regras” e, por isso, não conseguem controlar nem ter noção do tempo que passam online - algo que nem os próprios pais o conseguem fazer. E impedir o acesso à internet e dispositivos tecnológicos não é uma boa aposta, frisa a psicóloga, o importante, diz, “é introduzir a tecnologia com regras e limites adequados à idade”.

Segundo o relatório Enquadramento Epidemiológico - Uma breve prespetiva da situação atual, do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependêncidas do Ministério da Saúde, “durante a pandemia constatou-se que, na amostra estudada, perto de um quarto dos participantes passaram a jogar mais online, sobretudo jovens adultos do sexo masculino, estudantes e com uma perceção mais agravada no seu nível de stress”. O mesmo relatório indica ainda que “quanto à representação que os jovens têm sobre a dificuldade em abandonar a prática intensiva do jogo online verifica-se que cerca de metade considera que é difícil/muito difícil”.

Reabilitação: um OFF digital para um ON real

“Já tivemos sucesso a seis meses e a um ano, mas temos de ver se há comorbidade associadas, por vezes temos de avaliar psicológica e recorrer a psiquiatria, a um recurso pontual de fármacos para estabilizar humor e comportamentos impulsivos”, explica Ivone Patrão.

Apesar de ser uma adição como tantas outras, o facto de estar à mercê de ferramentas e tecnologias que fazem parte do dia-a-dia e até da atividade escolar e profissional, como os computadores e a internet, o tratamento nem sempre pode passar pela retirada dos gatilhos de vício do estilo de vida da pessoa. Há todo um trabalho de compreensão e comportamento que deve ser feito.

O tratamento em ambulatório (feito em consulta) é muitas vezes suficiente, sendo que a duração e a frequência das sessões depende de caso para caso e do estado em que a pessoa chega à consulta. A terapia cognitivo-comportamental, em que é feito um trabalho conjunto entre o paciente e o terapeuta para a compreensão dos pensamentos, emoções e comportamento, oferecendo ferramentas de apoio para mudanças no estilo de vida e na promoção do bem-estar emocional, é muitas vezes o tratamento padrão. Mas é também preciso aumentar a literacia digital, não só da pessoa com adição, mas também de quem convive com ela diariamente, sobretudo quando em causa estão crianças.

Em consulta, Ivone Patrão tem uma ‘regra’ junto dos mais novos: “não fazemos abstinência”. E explica: “temos de os preparar para o mundo do trabalho é o digital, seria um contrasenso”.

“O que fazemos é a gestão de risco e minimização de danos, analisar caso a caso e perceber onde pode haver uma negociação e cedência. Não vamos tirar a tecnologia, mas ajudar na negociação de horas, no tempo de uso, no conteúdo e no equilíbrio entre mundo offline e online”, explica a psicóloga, frisando que há também uma aposta na literacia digital dos pais. “Uma das formas de intervenção é colocar os pais a conhecer o mundo online dos jovens”, diz, até porque a tomada de posições extremas - como proibir o uso de tecnologia -, apesar de ser a primeira aposta dos pais, nem sempre é a jogada mais acertada. 

Há situações em que os pais querem fazer uma retirada da tecnologia abrupta, mas isso resulta numa extrema violência não só psicológica como física, em que há agressão mútua. Isso é impactante, ultrapassam-se muitos limites e barreiras. As pessoas precisam de ser empoderadas e sensibilizadas antes”, afirma Ivone Patrão.

Nos casos de adição a jogos de apostas, “o que mais leva as pessoas ao tratamento é a rotura financeira, as dívidas”, revela Pedro Hubert, que adianta que “há também critérios que são iguais para todos” e que levam a pessoa com adição a procurar ajuda: “cada vez que querem jogar e não podem ressacar”.

Segundo o psicólogo Pedro Hubert, a média de idade de pessoas problema patológico de jogo online é de 30 anos. De acordo com o dados recolhidos pelo especialista para a sua tese de doutoramento, “uma grande percentagem era licenciados ou com o ensino secundário completo, estavam empregados, gostavam muito de explorar sentimentos fortes, e tinham bastante stress”. (Fotografia: Associated Press)

Tal como aconteceu com este caso relatado por Pedro Hubert, numa grande parte dos casos, é a família quem faz soar os alertas e dá o primeiro passo na procura de ajuda. “50% das chamadas que recebemos do IAJ são feitas pelos familiares, pais ou mulheres. No caso do gaming é 100% dos familiares”, revela o psicólogo e coordenador do instituto.

Pedro Hubert considera que este passo dado pela família é importante, mas que não se deve ficar por aqui. “Tem de se fazer apelo à participação de familiares no tratamento” e, quando em causa está a adição online de jogos de apostas, “tem de haver algum controlo do dinheiro” também por parte de familiares.

Em alguns casos, continua, “sugerimos uma rede de apoio alargada, que é uma rede de apoio a jogadores anónimos, é uma rede de apoio, do ponto de vista do tratamento, tem acompanhamento e têm mais probabilidade de melhorar”.

Quando o internamento é único escape à adição digital

Atualmente, não existem dados de quantos portugueses foram internados para tratar uma adição digital e são poucas as clínicas que o fazem. 

O internamento acaba por ser a única opção nos casos em que as abordagens terapêuticas em clínica falharam, uma vez que, esclarece Eduardo Ramadas da Silva, “permite que o indivíduo seja retirado do seu ambiente usual no qual se encontram inúmeros gatilhos para o comportamento aditivo e oferece um ambiente alternativo em que são garantidos os fatores necessários para uma recuperação mais rápida e eficiente”.

Neste centro em Alcobaça, “é utilizado o modelo terapêutico Change & Grow, que utiliza e integra técnicas de diversos modelos teóricos da psicologia clínica, como por exemplo, o modelo cognitivo-comportamental, a psicologia positiva, humanista, gestalt, entre outros”. E, nos casos de reabilitação digital, há uma aposta no equilíbrio, uma vez que a internet estará sempre presente na vida da pessoa.

Não é realista esperar que os pacientes se comprometam a uma vida sem contacto com a mesma. Assim, procura-se promover um maior equilíbrio e desenvolver nos pacientes, estratégias que lhes permita lidar com, não apenas, a dependência, mas também qualquer situação menos positiva que possam encontrar. O objetivo não é apenas o tratamento da dependência, mas também a promoção de características positivas e o desenvolvimento pessoal”.

Nos internamentos, são trabalhadas ferramentas internas e externas para superar a adição, mas também há uma aposta no estilo de vida saudável e no suporte social, “através da inserção num grupo terapêutico”, conclui o diretor clínico do centro VillaRamadas

A adição de videojogos online já faz parte, desde 2013, do apêndice do Manual de Perturbações Mentais (DSM-5) da Associação Americana de Psiquiatria. Em 2018, a Organização Mundial da Saúde classificou os distúrbios com videojogos, distúrbios esses associados à adição e falta de controlo, como um problema de saúde mental na nova edição da Classificação Estatística Internacional de Doença. 

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